No filme "Beleza Americana"(1999) o diretor
Sam Mendes via em um saco plástico que girava ao vento um momento no qual uma
“força benevolente” mostrava o sublime por trás das coisas banais. Mas, e se
essa força não for assim tão benevolente e se revoltar contra a humanidade que
teima em banalizar as coisas através do descarte e obsolescência? O resultado
pode ser uma sangrenta perseguição protagonizada por uma sacola plástica em
busca de vingança. Esse é o curta “Beleza Americana 2” (2017) de Zak Stoltz,
uma bizarra e surreal releitura da poética sequência do filme original. O curta
se integra a uma tradição no cinema de objetos que ganham vida e parecem querer
se vingar do homem: tomates, carros, bonecos, pneus, árvores de natal. E agora,
sacos plásticos. Uma tendência que reflete o novo mal estar da civilização: de
ver na descartabilidade dos objetos a expressão da própria obsolescência
humana.
O leitor deve lembrar de uma célebre cena do
filme Beleza Americana, vencedor do
Oscar de Melhor Filme em 1999. Não, não é a sequência na qual Lester está na
cama e fica extasiado olhando para uma Mena Suvari rolando nua no teto em um
mar de pétalas de rosas vermelhas que caem gentilmente sobre seu rosto.
Mas sim a lírica cena do saco plástico que
gira no ar em um beco, cena capturada pelo vídeo caseiro do jovem Rick que,
para ele, era a síntese de tudo aquilo que buscava na vida - veja depois abaixo a sequência:
Você quer ver a coisa mais linda que eu já filmei? Foi um daqueles dias em que está a um minuto de nevar. E há essa eletricidade no ar, você quase pode ouvir, certo? .. dançando para mim ... como uma criança pedindo-me para brincar com ela. Por 15 minutos. Foi o dia no qual percebi que havia toda essa vida por trás das coisas, esta força incrivelmente benevolente que queria que eu soubesse que não havia Razão de estar com medo, nunca ... O vídeo é uma pobre pretexto, eu sei, mas me ajuda a lembrar ... Preciso me lembrar ... Às vezes há tanta beleza no mundo ... Eu sinto que não posso aguentar ... e meu coração vai sucumbir.
Tudo isso, o diretor Sam Mendes viu na dança
de um saco plástico branco girando no ar. Mas Zak Stoltz viu algo mais no curta
Beleza Americana 2 (2017): um conto
de vingança!
E se toda essa “força incrivelmente
benevolente” por trás das pequenas coisas no mundo quiser se vingar de alguém
que a simplesmente despreze?
Enquanto o personagem Rick no filme Beleza Americana reverenciou e
homenageou com um vídeo toda essa beleza por trás do mundo (que torna o banal
em um evento único, algo como a noção kantiana de sublime), ao contrário, o
protagonista de Beleza Americana 2
está imerso na banalidade da vida.
O curta
Enquanto ouve Limp Bizkit e Ace of Base,
ele joga com violência um copo com refrigerante sobre um pobre saco plástico
que voava livre em um beco. Depois de caminhar mais um quarteirões, o jovem de
repente para de dançar, tira os fones do ouvido, olha para trás e... lá está a
sacola plástica. Ofendida, com raiva e buscando vingança.
O rapaz tenta assustá-la, mas a sacola voa
sobre ele, iniciando uma bizarra e sangrenta perseguição através de ruas e
becos. As alças da sacola parecem braços que buscam alcançar a vítima enquanto
a força não mais benevolente impulsiona aquele simples objeto para um desfecho
típico de um slash movie.
Mais bizarro ainda é que o thriller do jovem
perseguido por uma sacola plástica será o início de uma inacreditável saga de ficção
científica: em 2274 todas as sacolas plásticas, descartadas no mundo e
condenadas a uma vida na pobreza e humilhação, travarão uma guerra contra a
espécie humana, forçando uma migração em massa para uma colônia no planeta
Erzska 9.
Objetos inanimados que matam
O cinema tem uma longa tradição de filmes
sobre objetos que repentinamente decidem se vingar da civilização: tomates que
matam (O Ataque dos Tomates Assassinos,
1978), um carro assassino (Christine, O
Carro Assassino, 1983), pneus que buscam vingança (Rubber, 2010 – clique aqui), boneco que mata possuído
por um espírito (O Brinquedo Assassino, 1988)
etc.
Porém filmes como Rubber ou curtas como Treevenge
(árvores de Natal descartáveis que decidem se vingar dos humanos nas festas
natalinas – clique aqui) apresentam uma tendência
em narrar a trajetória de objetos condenados ao descarte e aterros sanitários
se vingarem de uma civilização consumista que persiste num estilo de vida
ecologicamente incorreto.
Beleza
Americana 2 é mais uma produção que se insere nessa tendência que parece ser o
sintoma não da culpa de jogar no lixo pneus, sacos plásticos ou árvores de
Natal que perderam a validade. Mas o mal estar de que a noção de
“descartabilidade” ter se tornado um paradigma da civilização: um desperdício
não apenas de objetos mas também de seres humanos. Pessoas que, de repente,
perdem a validade e se tornam incômodos excluídos: velhos, pobres, refugiados,
aposentados, doentes, mortos etc.
Uma civilização que não consegue integrar,
reciclar e renovar. Mas que criou um modo de produção e consumo que apenas cria
restos e lixo – orgânico, humano, social, político etc. Do lixo eletrônico
(baterias, telas, carregadores de celulares etc.) produzido por uma tecnologia
supostamente limpa e enviada em contêineres para algum lixão na África, a
refugiados confinados em novos campos de concentração, o paradigma do descarte
e obsolescência se perpetua.
Curtas como Beleza Americana 2 são sintomas desse novo mal estar da civilização
bem diferente daquele que no passado Freud diagnosticou na civilização – a
neurose. Agora vivemos o mal estar do pânico ao vermos nos objetos ao nosso
redor o espelho das nossas próprias mazelas.
O infeliz rapaz perseguido por um saco
plástico sedento por vingança reflete os nossos próprios temores de que, como
afirmava Freud, o reprimido sempre retorna. Um dia, todos os excluídos,
descartados e obsoletos se levantarão em busca de revanche.
O que é o apocalipse zumbi, tão explorado
pela cinematografia, senão o sintoma desse pânico latente? – o medo da vingança
dos excluídos e descartados através de, por exemplo, pragas, pandemias ou
convulsões sociais.