Desde “ET” e “Contatos Imediatos do Terceiro
Grau” Spielberg transformou os subúrbios de classe média dos EUA, com suas
bikes BMX e jovens aventureiros, em ícones da cultura pop, revividos de forma
retro em séries atuais como “Strange Things”. Na série Netflix “The OA” (2016)
esses ícones são retomados, porém de forma sombria: casas com famílias cada vez
mais vazias que tentam manter à força a coesão. Até surgir uma jovem que ficou
desaparecida por sete anos e mudar a vida de um grupo de inadaptados àquela
comunidade suburbana. Uma protagonista que sobreviveu a sucessivas Experiências
de Quase Morte (EQM) feitas por um cientista obcecado em provar cientificamente a
existência pós-morte. Mas por algum motivo ela pretende retornar àquele
pesadelo científico para recuperar alguma coisa de natureza espiritual que lhe
foi roubada. A série “The OA” é mais um exemplo de como o Netflix vem arriscando em
temáticas estranhas e gnósticas narradas em linguagens pouco convencionais.
A plataforma de filmes e séries em streaming Netflix cada vez mais demonstra que pretende apostar na ousadia. Além do seu fundador Reed Hastings
ter se antecipado ao perceber em 2007 que o negócio de aluguéis de DVDs estava
fadado ao fracasso diante da ascensão do streaming, seus executivos cada vez mais
arriscam exclusividade com produções próprias.
O que diminui a dependência com os estúdios
de cinema mas, por outro lado, assume muitos riscos comerciais. Por isso as
produções do Netflix têm se tornado uma área de produções surpreendentes: além
de investir em séries com temáticas nacionais (como Narcos, 2015, e, para o próximo ano, outra baseada na polêmica
brasileira da Operação Lava Jato) vem dando espaço para diretores e roteiristas
independentes, apostando no estranho e formas narrativas pouco convencionais.
A série The OA
é mais um exemplo das tacadas arriscadas do Netflix: produto de uma dupla independente
de criadores bem peculiar – Brit Marling (que co-escreve e atua) enquanto Zal
Batmanglij também escreve e dirige. A dupla esteve por trás de filmes de pouco
sucesso como Sound of My Voice (2011, clique aqui) e The East (2013) – foram filmes inteligentes compostos de grande ideias que
acabavam não sustentando nas resoluções finais. Filmes pretensiosos cujos
criadores simplesmente não conseguiam dar conclusão a excelentes ganchos
narrativos.
Marling e Batmanglij parecem sempre exigir
que o espectador se infiltre em um mundo estrangeiro e estranho, com uma
espécie de narrativa sempre claustrofóbica e incômoda. Em The OA não é diferente.
Percebemos que a série se ambienta em um
mundo aparentemente familiar para nós – o mundo dos subúrbios de classes média
norte-americanos (equivalente aqui no Brasil aos condomínios fechados) com
jovens em suas bikes BMX e famílias cada vez mais vazias que forçam pais e
filhos a se manterem coesos. Mas o olhar indie
de Marlin e Batmanglij não busca a visão spielbergiana desses subúrbios (pais
separados com filhos espertos e aventureiros) ou o viés retro dos anos 1970-80
como na série também Netflix Stranger
Things.
The OA vai buscar nesses ambientes familiares tudo
aquilo que pareça estranho e estrangeiro – famílias alternativas, jovens
inadaptados, tribalizados, pessoas que se unem por terem experimentado
Experiências de Quase Morte (EQM) e outras curiosidades de antropológicas.
E o que parece ser recorrente nas produções
recentes que lidam com a inadaptação e o estranho: experiências espirituais ou
religiosas repletas de elementos da mitologia gnóstica – talvez a mitologia que
atualmente melhor expresse as perplexidades contemporâneas. A experiência de
ser estrangeiro e inadaptado ao seu ambiente supostamente familiar como a
fagulha que despertará experiências espirituais.
Além disso, The OA faz o espectador embarcar em uma experiência fílmica que
apresenta um desprezo pela narrativa em episódios: o primeiro apresenta um prologo de 70 minutos antes dos créditos iniciais, para depois lançar
a história real.
Aliás, a narrativa lembra bastantes aquelas
bonequinhas russas (a “matriosca”, tão russa como a protagonista da série) ocas
e colocadas uma dentro da outra – em OA
acompanhamos uma espécie de narrativa em abismo na qual temos uma narrativa
sobre o passado sendo contada no presente (que para o espectador está
acontecendo em live-action ao longo
dos episódios da série) mas que, ao final, (essa é a moral da história)
percebemos que o drama dos inadaptados daquele subúrbio pode ser o drama das
nossas próprias vidas.
A série
The OA abre com um vídeo feito pelo celular de uma
transeunte que filma uma mulher loura que pula de uma ponte. A mulher sobrevive
e descobrimos que chama-se Prairie Johnson (Brit Marling). Ela esteve
desaparecida por sete anos. Quando deixou seus pais adotivos (Alice Krige e
Scott Wilson)ela estava cega, mas agora pode enxergar.
Repórteres cercam a família e a mídia começa
a chama-la de “o milagre de Michigan”. Todos querem saber o que aconteceu, onde
esteve. Mas Prairie mantém-se calada sobre o que aconteceu naqueles anos todos
e o porquê de estranhas cicatrizes nas suas costas.
A polícia e o FBI acreditam que ela vive uma
neurose pós-traumática, o que faz os pais cercarem de cuidados, remédios e
observação quando está reclusa em seu quarto. Mas tudo o que ela quer é um Wi-Fi
e a senha para encontrar na Internet alguém chamado Homer.
Todos querem “curá-la”, mas Prairie é
enfática: não se trata de cura, mas o início de uma descoberta. Estranhamente
ela voltou para casa mas quer retornar para onde esteve desaparecida. São seus
pais, seu quarto, sua casa, seu bairro, mas sente-se estrangeira ali.
Aos poucos, outros inadaptados vão se
juntando ao redor dela: a menina transexual, o valentão cujos pais querem
despachá-lo para um internato militar, uma professora solitária, um estudante
latino filho de mãe solteira alcoólatra e um menino freak, drogado com um
cabelo ao estilo Ramones.
Há alguma espécie de ligação entre essas
pessoas tão díspares, lembrando o argumento da série Sense8 (2015) dos Wachowski – clique aqui.
Prairie os reúne toda noite no sótão de uma
casa abandonada para relatar em episódios a sua verdadeira história daqueles
sete anos. Mas ela precisa de algo mais deles: que compreendam sua jornada
espiritual e aprendam com ela cinco movimentos – uma espécie de dança com
alusões gestuais a ioga, viagens em buracos de minhoca, abertura de portais
dimensionais etc. A fixação de Prairie é, através desse portal aberto, retornar
a esse lugar que esteve.
Mas o que intrigará o espectador é que esse
lugar não é nada bonito. Prairie era uma menina russa que viveu uma EQM muito
cedo e retornou cega e com estranhos sonhos premonitórios. De repente tornou-se
órfã aos cuidados de uma tia irresponsável nos EUA que a vende para os seus
pais adotivos.
Já adulta e obcecada em retornar para seu
pai, que aparece sempre em seus sonhos, foge de casa até cair nas mãos de um
cientista (Dr. Hunter Hap – Jason Isaacs) com uma obsessão: provar a existência
da vida pós-morte estudando casos de EQM em um laboratório subterrâneo em uma
mina abandonada em algum lugar remoto dos EUA.
Para Hunter, em todos os casos de retorno de
EQM, as pessoas retornam com habilidades especiais (artísticas, musicais,
cognitivas, premonitórias etc.). De onde trouxeram essas habilidades? É o que
Hap quer entender, da maneira mais cruel possível: mantendo prisioneiros cinco
“cobaias” humanas em seu laboratório, “matando-os” sucessivas vezes para tentar
acompanhar suas EQM por um dispositivo eletrônico – por aproximação acompanhar
o “som” emitido pelas partículas da alma fora do corpo.
Estrangeiros nesse mundo
Assim como os ouvintes da narrativa de
Prairie em Michigan, as “cobaias” de Hap têm algo incomum: também a inadaptação
existencial com esse mundo.
O mais emblemático é o gás que Hap obriga
suas cobaias inalarem antes da EQM – um gás de esquecimento. Dessa forma, Hap
terá as informações só para si, evitando que perca o controle da experiência
por possíveis insubordinações.
Um argumento que lembra muito a série HBO Westworld (clique aqui) na qual os androides tem
sucessivas mortes, para depois serem reparados nos laboratórios e retornar para
suas “vidas” no parque temático como se nada tivesse ocorrido, garantindo a
disciplina dos robôs.
Todos os elementos da mitologia gnóstica
estão colocados em The OA para traduzir a
própria condição humana: estranhamento, alienação, prisão e esquecimento.
Um cientista demiurgo que submete seus
espécimes ao esquecimento para tentar arrancar deles um conhecimento que, se
for apropriado pelos cinco prisioneiros, poderá libertá-los. Esse é o
conhecimento (a gnose) que Prairie a duras penas conseguiu codificar em cinco
movimentos que agora pretende repeti-lo com os jovens suburbanos para retornar
por um portal dimensional e libertar seus amigos prisioneiros.
Por isso Hap corre contra o tempo: ele terá
que compreender os cinco movimentos antes das “cobaias”, para conseguir a maior
descoberta humana – a natureza da existência pós-morte.
O gás do esquecimento e o Wi-Fi
Esquecimento é a palavra-chave na série The OA. Do gás do sinistro laboratório de
Hap aos tratamentos de cura pós-traumática que tanto o FBI (para arrancar
informações) quanto os pais (para prendê-la à vida inautêntica daquele
subúrbio) querem submeter a pobre Prairie está o elemento-chave do
esquecimento: com o esquecimento dormimos para acordar como se tudo fosse um
novo dia cheio de esperanças, escondendo a estrutura geral que nos aprisiona.
As mesmas formas de “cura” que os pais
pretendem submeter os filhos inadaptados: o colégio militar para “curar” o
valentão, a bolsa de estudos para fazer o filho escapar da mãe alcoólatra, a
cura à trans-sexualidade da filha etc.
Uma das melhores coisas de The OA é a metáfora da senha e do Wi-Fi.
Prairie reaparece depois de sete anos, em busca de uma conexão Wi-Fi e a senha.
Uma interessante metáfora de busca da conexão espiritual que todos nós
procuramos – ou pelo menos aqueles que sentem a relação de estranhamento com o
mundo, assim como os protagonistas da série.
O hardware descoberto pelo desumano cientista
(o dispositivo que permite sucessivas experiência controladas de EQM) é a
conexão Wi-Fi e a dança dos cinco movimentos a senha.
Meta-narrativa - aviso de spoilers à frente
Ao longo dos oito episódios acompanhamos a
busca de cada um desses movimentos e o desenvolvimento de uma linguagem de
códigos que permite os cinco prisioneiros no laboratório de Hap protegerem o
conhecimento secreto do cientista-demiurgo louco.
Embora a crítica tenha ridicularizado a
inserção repentina no meio da série dessa “dança” e gestuais como um elemento
arbitrário enfiado no roteiro (um “deus ex-machina” - termo usado para designar
soluções arbitrárias, sem nexo ou plausibilidade para solucionar becos sem
saída encontrados em roteiros mal conduzidos.), principalmente no episódio final, passa a ter sentido nesse argumento
dos criadores em criar uma ligação entre o tecnológico e o espiritual.
Porém, o mais instigante é a meta-narrativa
proposta por The OA: assim como as cinco
almas perturbadas que acompanham a narrativa de Prairie a cada noite, nós
espectadores também criamos uma relação empática com aquela narrativa. Aqueles
cinco jovens “freaks” na verdade somos nós acompanhando cada um dos episódios
da série.
A dupla de criadores Marling e Batmanglij
parece querer nos lembrar que também nós espectadores podemos estar vivendo em
nossas vidas uma situação análoga a dos prisioneiros da série – as cobaias
humanas e os inadaptados suburbanos. Todos nós respirando em pequenas doses o
gás do esquecimento e acordando cada dia como fosse um novo dia, apesar da
estranha sensação de estrangeiros em uma terra estranha.
E como o leitor perceberá, a série termina de forma ambígua não só para dar continuidade na segunda temporada - terminamos em dúvida se toda a história contada por Prairie foi real ou o resultado de uma mente bem inventiva alimentada pela leitura de livros como Os Oligarcas (sobre a elite russa), Enciclopédia de EQM ou Odisséia de Homero, encontrados no seu quarto.
Novamente, a série lança mão da meta-narrativa: a Hipótese dos Muitos Mundos criada pela interpretação da Física Quântica (a experiência pós-morte correspondente a criação de uma pluralidade de mundos) se equivale a possibilidade das múltiplas interpretações que o espectador poderá fazer sobre Praire.
A mesma estratégia narrativa que também o filme Sound of My Voice utilizou no seu final em 2011.
Ficha Técnica |
Título:
OA (série)
|
Direção:
Zal Batmanglij
|
Roteiro:
Brit Marling, Zal
Batmanglij
|
Elenco:
Brit Marling, Jason Isaacs, Scott Wilson,
Alice Krige, Patrick Gibson, Brendan Meyer, Phyllis Smith
|
Produção: Plan
B Entertainment, Anonymous Content
|
Distribuição:
Netflix
|
Ano:
2016
|
País:
EUA
|
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