Na edição de dezembro a revista de moda “Elle
Brasil” figurou na capa a robô Sophia, um dos projetos de inteligência
artificial mais avançados do mundo. Clicada pelo fotografo Bob Wolfeson, a
ideia do editorial era apontar versões para o futuro da indústria da moda. Mas
um robô vestindo roupas vitorianas nada mais fez do que revelar as arquetípicas
e milenares origens da Moda, Estilismo e manequins na longa tradição esotérica
e hermética da Teurgia, Alquimia e a Cabala Extática – uma longa e secreta
história de seres artificiais mágicos como homúnculos, golens e frankensteins.
Até chegar aos atuais manequins das vitrinas de shoppings e modelos vivos das
passarelas – seres ainda “não formados”, à espera do “espírito” (o Estilo) que
lhes dê vida. Assim como o código binário que dá "vida" à robô Sophia. A atual agenda tecnognóstica se encontra com a Moda. Pauta sugerida pelo nosso leitor Nelson Job.
Em um catálogo de roupas 2004/2005 do estilista
sueco Otto Von Busch figurava um pequeno texto de introdução no qual ligava as
raízes da Moda à magia e hermetismo:
(...) Através de uma longa história e tradição, os sacerdotes se reúnem para uma cerimônia, convocando o próprio espírito da mística força da Estética para materializá-lo. Nesse momento místico de materialização do elevado ideal é produzido um ícone para adoração - a fotografia de moda. Uma guarda inteira de sacerdotes, geralmente da mesma rede de seita, é recolhida em um estúdio, os bastidores escondidos do templo da moda. Lá eles invocam o espírito da Beleza para se materializar em um modelo virgem.
Tratada pelo mais sagrado óleo e poções de lugares exóticos e com ingredientes secretos transforma-se em algo divino, para além da condenada carne humana. Na frente das lentes ela é transformada em uma representação fantasmagórica e na modelo mais bonita de uma raça humana imperfeita. Sem pelos indesejáveis, sem cheiro, sem pele irregular, sem características indesejáveis. São os elementos necessários para adorarmos um ícone.”
A Moda e o Estilismo como uma seita onde, nos
seus bastidores dos estúdios fotográficos da produção dos editoriais de moda, “sacerdotes”
transformam a “modelo mais bonita” em “raça humana perfeita”, “para além da
condenada carne humana”, pode ser a princípio visto como mera retórica de
propaganda do negócio da moda.
Mas ao longo da História, a Moda revela uma
origem, por assim dizer, secreta – uma narrativa que descreve como o corpo
humano foi aos poucos transformado em um “golem” (aquilo que ainda não foi
formado), um corpo inanimado à espera de um “espírito” (o “estilo”) que lhe
traga vida. Uma história que se confunde com a própria história dos manequins
com raízes míticas na Teurgia e na
chamada “Cabala Extática”.
A robô Sophia
Isso parece ficar ainda mais evidente na capa
da edição de dezembro da revista de moda Elle
Brasil na qual figura a robô Sophia, um dos projetos de inteligência
artificial mais avançados do mundo.
O propósito da edição é trazer as diferentes
versões do futuro na indústria da moda. O editorial da edição quis chamar a
atenção do contraste entre a imagem futurista da robô e o look vitoriano das
suas roupas.
Sophia tem a pele feita com tecido
nanotecnológico que permite expressões faciais, mas a parte do que seria o
couro cabeludo é transparente, deixando entrever que se trata de uma máquina. A
robô lembra muito o personagem Ava do filme Ex-Machina
(2015 – sobre o filme clique aqui). Sophia é um projeto da
Hanson Robotics, uma companhia norte-americana que cria robôs “capazes de criar
uma relação de confiança com pessoas”.
A robô foi clicada pelo fotógrafo Bob
Wolfeson.
Sophia e o caminho de retorno
A edição da revista de moda Elle Brasil pretende fazer futurologia,
mas nada mais fez do que confirmar as arquetípicas e milenares origens em
tradições místicas e herméticas. E o seu ar vitoriano retro apenas conectou com
mais um exemplo dessa tradição da “cabala extática”: a obra Frankenstein de
Mary Shelley, do século XIX.
Isso sem falar do próprio nome “Sophia” que
remete à mitologia gnóstica que simboliza simultaneamente o aspecto feminino de
Deus e a alma humana. Um aeon que decaiu
prisioneira no mundo material, mas que conseguiu fazer o caminho de volta à
Plenitude, deixando para o homem a fagulha de Luz interior (“Anthropos”) que
permite também traçar o caminho de retorno, escapando da prisão cósmica no
mundo físico.
Esse “caminho de retorno” foi buscado desde a
Antiguidade com a Teurgia, mais tarde na Idade Média com a Alquimia (a Teurgia
operativa) e a cabala extática – a qual é tributária toda a tradição dos
golens, frankenteins. Mais tarde os manequins e modelos vivos atuais da
indústria da moda.
Os modernos manequins nas
vitrines dos shoppings e os modelos vivos nas passarelas são herdeiros de uma
longa tradição do fascínio humano por bonecos, fantoches, autômatos e demais
simulacros humanos.
O fascínio pela Teurgia
Victoria Nelson em seu
trabalho The Secret Life of Puppets defende que a origem desse fascínio
está na Teurgia e nos filósofos e sacerdotes helenísticos.
A Teurgia (theoi,
“deuses” + ergon, “obra”) surge no mundo helenístico como a primeira
forma de manipulação da matéria onde, assim como o Demiurgo, podemos dar vida e
alma a uma forma material e inferior. Se temos dentro de nós uma parte desse
Anthropos, podemos retornar a ele exercendo as mesmas habilidades reservada aos
deuses: imitatio dei por generatio animae, imitar
Deus criando vida.
Para a autora, é na Alquimia
que temos esse encontro decisivo entre gnosis
e epistemis, entre a ciência
experimental e a prática religiosa através de sucessivas operações que
reproduzem as etapas da criação do cosmos físico pelo Demiurgo até a redenção
da matéria representado pela criação da “Pedra Filosofal” ou da “criança/homunculus”
(“pequeno homem”, também chamado como “mannikin”).
Homunculus, Golem, Frankenstein - uma longa tradição dos "mannikins" |
Cabala Extática, Golem, Frankenstein
Dentro dessa tradição de
buscas de um “caminho de retorno” está também a tradição da chamada “Cabala
Extática” – a fusão da cabala profética (a experiência mística) com a cabala
dos “nomes divinos” (recitação dos nomes divinos e as várias combinações do
alfabeto hebreu).
Se trata de animar o
inanimado. Através do mito judaico do Golem, aquilo que é disforme e desprovido
de vida recebe o nome mágico e divino que o torna vivo – o nome de Deus escrito
na testa do ser artificial daria vida a ele. Imitar Deus criando vida. A forma
extática de retorno pela imitação de Deus.
Da combinação do alfabeto
hebreu às combinações do código binário na ciência computacional e inteligência
artificial, o princípio teúrgico é o mesmo: através do “nome sagrado” dar vida
a um ser com características humanoides, porém “liso”, informe, à espera de uma
combinação mágica de signos (um código) para lhe dar vida e forma.
Robôs e modelos - o corpo robótico tecnognóstico na Moda |
O tecnognosticismo da robô Sophia
Como na citação acima de Otto Von Busch, a
Moda condena a carne humana, que deve ser superada por “algo divino”. Assim
como a Teurgia da cabala extática, o estilista manipula as combinações da
signos da moda (o “sistema da moda”, como afirmava o semiólogo Roland Barthes)
para dar vida aos “manequins” – modelos vivos (ou nem tanto) cadavéricos,
anoréxicos, com aspecto de “heroin heroes”, “decadentes chics”, ar enfadado e inexpressivos,
à espera do “nome mágico” (o Estilo) que lhes dê vitalidade para desfilarem na
passarela.
Na verdade a capa da revista Elle Brasil não tem nada de futurista.
No máximo é o encontro da Moda com a encarnação mais atual dessa tradição
teúrgica cabalista: o tecnognosticismo,
expresso no projeto do robô Sophia.
Tecnognosticismo corresponde a agenda
tecno-científica atual: o esforço multidisciplinar envolvendo as neurociências, ciências
cognitivas, Cibernética, Inteligência Artificial e Teoria da Informação para
desvendar um dos últimos grandes mistérios da ciência: o funcionamento da mente
humana e a natureza da consciência. A procura de um modelo de simulação computacional,
uma interface gráfica que permita não só compreender a dinâmica dos processos
mentais e da consciência, mas, principalmente, manipulá-la e controlá-la.
Principalmente por meio de
projetos como o robô Sophia – um nome irônico que reflete a motivação mística
que anima o Tecnognosticismo: a morte como upload final para a vida eterna
pós-morte – a vida imortal da alma traduzida em dados digitais vivendo para
sempre no ciberespaço, longe da vida orgânica imperfeita, frágil e condenada à
finitude.
O robô Sophia é mais um revival dessa tradição de golens e frankensteins
cujo misticismo assombra a suposta racionalidade na qual vivemos. Assim como faz a indústria da Moda, a cada
coleção de roupas da estação, dando vida aos manequins das vitrines e aos
modelos humanos que ganham vida nas passarelas.
E aguarde para a próxima semana uma análise do Cinegnose sobre a série HBO Westworld.
Por enquanto, o leitor pode ficar com uma entrevista com a robô Sophia:
E aguarde para a próxima semana uma análise do Cinegnose sobre a série HBO Westworld.
Por enquanto, o leitor pode ficar com uma entrevista com a robô Sophia:
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