quarta-feira, fevereiro 10, 2016

O Universo foi criado por alguém que não nos ama em "Christmas On Mars"


Um filme estranho, trash e psicodélico que confirma que o rock é um gênero musical que sempre retirou suas energias da mitologia gnóstica contemporânea: Detetives, Viajantes e Estrangeiros sempre vagando em nowhere – o Espaço, o Deserto, o Lugar Nehum como símbolos da condição humana, assim como o Major Tom de músicas de David Bowie. Dessa vez no filme “Christmas On Mars” (2008, escrito e performado pela banda de rock indie “Flaming Lips”) vemos Major Syrtis tentando superar uma crise de niilismo, psicose e paranoia que se abateu sobre a tripulação de uma base marciana através da organização de uma festa natalina. Mas terá que superar a confrontação com a “realidade cósmica” – que o Universo foi criado por alguém que não nos ama.

“Ele está vivendo a terceira etapa de um episódio psicótico. Está observando algo que realmente não está ali... isso é causado pela confrontação com a realidade cósmica”, explicam personagens que habitam uma colônia em Marte sobre o comportamento do Major Syrtis – está parado, catatônico, olhando através de uma das janelas da colônia dois técnicos trabalhando no solo marciano.

Christmas On Mars inicia com o pensamento do Major Syrtis ao observá-los: “parecem duas mariposas lutando pela sobrevivência... nunca conheceram uma força do Universo que lhes mostrasse piedade”. A “realidade cósmica” para a qual o Major Syrtis catatonicamente olha é “uma estranha máquina onde todos estão presos”. O Espaço, para onde jamais o homem deveria ter ido porque lá são destruídas todas as nossas crenças internas. Onde a Criação não demonstra a menor piedade ou compaixão.


Qualquer semelhança com Major Tom, personagem do recém-falecido gnóstico pop David Bowie, não é mera coincidência – sobre a morte de Bowie e Gnosticismo clique aqui. O filme Christmas On Mars, concebido, escrito, produzido e performado pelos membros da banda Flaming Lips, é um mix das “esquesitices espaciais” de Bowie, 2001: Uma Odisséia no Espaço de Kubrick e Solaris de Tarkowsky. Com um toque retro que mistura fotografia PB granulada e cenas em technicolor psicodélico.


Flaming Lips é uma banda de indie rock com associações à subcultura psicodélica dos anos 60 e 70, space rock e space opera e seus shows ao vivo são marcados por elaboradas fantasias teatrais, projeções de vídeos, complexas configurações de luzes no palco e seu líder, Wayne Coyne, andando sobre a plateia dentro de uma grande bolha de plástico.

Flaming Lips e o projeto Christmas On Mars (longa metragem + álbum) são uma evidência de como o rock and roll está intimamente associado a uma mitologia gnóstica contemporânea traduzida pelos protagonistas do Estrangeiro, Detetive e do Viajante, presentes na poética e em filmes como esse.

Rock e o jovem como Estrangeiro


É inegável que o rock sempre representou o descompromisso e a rebeldia juvenil, mas em diversos subgêneros evoluiu para uma estética mais elaborada que incorporou essa mitologia gnóstica secularizada – o roqueiro como o arquetípico personagem do Estrangeiro: rebeldes sem causa, heroin heroes, punks gritando “no future”, ácido e música techno associadas a transes com conotações espiritualistas etc. Representações culturais dessa sensação de alienação e estranhamento experimentado pelo jovem antes de ser finalmente cooptado pela sociedade adulta.

É essa percepção de artistas como David Bowie que no marco musical Space Oddity cria uma imagem que o perseguirá por toda a carreira - a condição humana como a de um astronauta (Major Tom) que perdeu contato com o “ground control” e vaga perdido no espaço como um estrangeiro em um cosmos frio e hostil que não demonstra com nós a menor compaixão.


Essa é a repaginação da antiga mitologia gnóstica do anjo decaído onde Sophia e a humanidade caíram prisioneiros sob o jugo da Criação do Demiurgo e perderam contato com a Plenitude.

Christmas on Mars levou sete anos para ser lançado a partir de um filme que a mãe de Wayne Coyne teria supostamente assistido em uma madrugada na TV: um filme triste sobre uma espaçonave ou estação abandonada no espaço onde alguns trabalhadores largados no meio do nada enfrentando algum tipo de morte certa. Então, um evento mágico ocorreu, algo que lembrava Deus ou algum Superstar do espaço que veio ajudar, e todos se salvaram. Coyne buscou o nome desse filme e jamais encontrou – na verdade sua mãe deve ter dormido no início de um filme e acordado no final de outro e mentalmente fez uma síntese como tivesse assistido ao mesmo filme. Então a ideia surgiu naquele momento: “Eu vou fazer esse filme!”, pensou Coyne.

O Filme


A trama inicia com o Major Syrtis (Steven Drozd, o gênio musical da banda Flaming Lips) que está tentando organizar uma festa de Natal para elevar a moral da tripulação de uma base científica chamada Solis, remota e em ruínas em Marte. Há um problema técnico que pode ser fatal para todos: um condensador quebrou e o oxigênio está ficando cada vez mais rarefeito, provocando aos poucos alucinações, psicoses e paranóias.

Ao mesmo tempo, há um experimento científico que pode ser redentor: no interior de uma bolha incubadora transparente está uma mulher que alimenta, por meio de um tubo que emula um cordão umbilical, o primeiro bebê humano concebido no Espaço.


Mas as coisas não estão nada boas: Ed Fifteen (Kenny, irmão de Coyne) comete suicídio depois de sair correndo da base vestido de Papai Noel ao invés do traje espacial. Para Syrtis a comemoração natalina em Marte se reveste de grande importância: é a forma de afirmação simbólica humana de tudo aquilo que o cosmos não reserva ao homem no Espaço: piedade, amor e compaixão.

Sem o seu Papai Noel, Syrtis começa a sofrer efeitos da demência com o ar rarefeito: imagina em alucinações uma banda marcial cujas cabeças dos músicos são substituídas por vaginas. A banda marcha e esmaga um bebê em uma sequência perturbadora.

Então, do meio da noite marciana pousando no planeta numa estrela cadente (uma referencia à estrela de Belém do nascimento de Cristo) surge um ser verde, com antenas e uma luz pulsante no peito (Wayne Coyne) que transformará o filme num festivo caos psicodélico. Esse Super-ser viajante ocupará o papel de Papai Noel nas comemorações organizadas pelo Major Syrtis.

Detetives, Viajantes e Estrangeiros em Marte


Há deficiências óbvias em Christmas on Mars: más atuações (afinal, são roqueiros) e roteiro confuso onde o espectador terá que mobilizar uma massiva suspensão da incredulidade para embarcar na viagem do filme. Há cenas que lembram os filmes trash de Ed Wood como, por exemplo, uma “pesada” escotilha metálica que percebemos claramente ser confeccionada com algum material leve como isopor ou papelão.


Viajantes (o Super-Ser do espaço que alterará a vida de todos como fosse um messias), Detetives (a busca pela solução não só dos problemas técnicos – o condensador - , mas solucionar o enigma das alucinações psicóticas e paranoicas) e Estrangeiros (todos como estranhos prisioneiros em um cosmos que não nos ama) perdidos em um lugar que os enigmáticos planos de câmera transformam a colônia marciana em um nowhere.

Filmadas em uma fábrica de cimento abandonada em Oklahoma City (cidade natal do Flaming Lips), as cenas são poeticamente áridas, desoladas como um deserto – se contarmos o número de vídeo-clips de rock ambientados em desertos e locais desolados, entenderemos esse simbolismo recorrente. A conexão do rock com a mitologia do Estrangeiro.

O “Star Child”


Outra imagem marcante é a do bebê na grande bolha transparente. Todo o visual lembra 2001 de Kubrick e o bebê o simbolismo do Star Child desse filme de 1968 – o ser transdimensional que no final olha fixo para a Terra, resultante do contato final na nave Discovery com os criadores da raça humana em uma das luas de Júpiter.


Lembrando que o simbolismo do Star Child para Kubrick se revestia de um caráter gnóstico que aproxima-se bastante de Christmas On Mars: as crianças possuem um imaculado sentido de admiração, capacidade de alegria e criação de sentido. Na medida em que crescem começam a ver a morte e a dor em todos os lugares e começam a perder a fé e percebem como o Universo é frio e indiferente, corroendo nossa capacidade de viver – clique aqui para ler entrevista com Kubrick.

Major Syrtis quer combater o niilismo e desesperança da colônia marciana com uma típica comemoração natalina para fazer a tripulação esquecer de que o homem jamais deveria ter ido ao Espaço. E o nascimento do bebê-Star Child que coincide com o Natal é o simbolismo gnóstico cristão não de salvação, mas de transcendência de um cosmos criado por alguém não nos ama. 



Ficha Técnica


Título: Christmas On Mars
Diretor: Wayne Coyne
Roteiro: Wayne Coyne
Elenco:  Steven Drozd, Wayne Coyne, Steve Burns, Kenny Coyne
Produção: Flaminglips.com
Distribuição: WEA (CD/DVD)
Ano: 2008
País: EUA

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