Um filme estranho, trash e psicodélico que confirma que o rock é um
gênero musical que sempre retirou suas energias da mitologia gnóstica
contemporânea: Detetives, Viajantes e Estrangeiros sempre vagando em nowhere –
o Espaço, o Deserto, o Lugar Nehum como símbolos da condição humana, assim como o
Major Tom de músicas de David Bowie. Dessa vez no filme “Christmas On Mars”
(2008, escrito e performado pela banda de rock indie “Flaming Lips”) vemos
Major Syrtis tentando superar uma crise de niilismo, psicose e paranoia que se
abateu sobre a tripulação de uma base marciana através da organização de uma
festa natalina. Mas terá que superar a confrontação com a “realidade cósmica” –
que o Universo foi criado por alguém que não nos ama.
“Ele está vivendo
a terceira etapa de um episódio psicótico. Está observando algo que realmente
não está ali... isso é causado pela confrontação com
a realidade cósmica”, explicam personagens que habitam uma colônia em Marte
sobre o comportamento do Major Syrtis – está parado, catatônico, olhando
através de uma das janelas da colônia dois técnicos trabalhando no solo
marciano.
Christmas On Mars inicia com o pensamento do Major Syrtis ao observá-los:
“parecem duas mariposas lutando pela sobrevivência... nunca conheceram uma
força do Universo que lhes mostrasse piedade”. A “realidade cósmica” para a
qual o Major Syrtis catatonicamente olha é “uma estranha máquina onde todos
estão presos”. O Espaço, para onde jamais o homem deveria ter ido porque lá são
destruídas todas as nossas crenças internas. Onde a Criação não demonstra a
menor piedade ou compaixão.
Qualquer semelhança com Major Tom, personagem do recém-falecido gnóstico
pop David Bowie, não é mera coincidência – sobre a morte de Bowie e Gnosticismo
clique
aqui. O filme Christmas On Mars,
concebido, escrito, produzido e performado pelos membros da banda Flaming Lips, é um mix das “esquesitices
espaciais” de Bowie, 2001: Uma Odisséia
no Espaço de Kubrick e Solaris de
Tarkowsky. Com um toque retro que mistura fotografia PB granulada e cenas em
technicolor psicodélico.
Flaming Lips é uma banda de indie rock com associações à
subcultura psicodélica dos anos 60 e 70, space rock e space opera e seus shows
ao vivo são marcados por elaboradas fantasias teatrais, projeções de vídeos,
complexas configurações de luzes no palco e seu líder, Wayne Coyne, andando
sobre a plateia dentro de uma grande bolha de plástico.
Flaming Lips e o projeto Christmas On Mars (longa metragem + álbum) são uma evidência de
como o rock and roll está intimamente associado a uma mitologia gnóstica
contemporânea traduzida pelos protagonistas do Estrangeiro, Detetive e do
Viajante, presentes na poética e em filmes como esse.
Rock e o jovem como Estrangeiro
É inegável que o rock sempre representou o descompromisso e a rebeldia
juvenil, mas em diversos subgêneros evoluiu para uma estética mais elaborada
que incorporou essa mitologia gnóstica secularizada – o roqueiro como o
arquetípico personagem do Estrangeiro: rebeldes sem causa, heroin heroes, punks
gritando “no future”, ácido e música techno
associadas a transes com conotações espiritualistas etc. Representações
culturais dessa sensação de alienação e estranhamento experimentado pelo jovem
antes de ser finalmente cooptado pela sociedade adulta.
É essa percepção de artistas como David Bowie que no marco musical Space Oddity cria uma imagem que o
perseguirá por toda a carreira - a condição humana como a de um astronauta
(Major Tom) que perdeu contato com o “ground control” e vaga perdido no espaço
como um estrangeiro em um cosmos frio e hostil que não demonstra com nós a
menor compaixão.
Essa é a repaginação da antiga mitologia gnóstica do anjo decaído onde
Sophia e a humanidade caíram prisioneiros sob o jugo da Criação do Demiurgo e
perderam contato com a Plenitude.
Christmas on Mars levou sete anos para ser lançado a partir de
um filme que a mãe de Wayne Coyne teria supostamente assistido em uma madrugada
na TV: um filme triste sobre uma espaçonave ou estação abandonada no espaço
onde alguns trabalhadores largados no meio do nada enfrentando algum tipo de
morte certa. Então, um evento mágico ocorreu, algo que lembrava Deus ou algum Superstar
do espaço que veio ajudar, e todos se salvaram. Coyne buscou o nome desse filme
e jamais encontrou – na verdade sua mãe deve ter dormido no início de um filme
e acordado no final de outro e mentalmente fez uma síntese como tivesse
assistido ao mesmo filme. Então a ideia surgiu naquele momento: “Eu vou fazer
esse filme!”, pensou Coyne.
O Filme
A trama inicia com o Major Syrtis (Steven Drozd, o gênio musical da
banda Flaming Lips) que está tentando organizar uma festa de Natal para elevar
a moral da tripulação de uma base científica chamada Solis, remota e em ruínas
em Marte. Há um problema técnico que pode ser fatal para todos: um condensador
quebrou e o oxigênio está ficando cada vez mais rarefeito, provocando aos
poucos alucinações, psicoses e paranóias.
Ao mesmo tempo, há um experimento científico que pode ser redentor: no
interior de uma bolha incubadora transparente está uma mulher que alimenta, por
meio de um tubo que emula um cordão umbilical, o primeiro bebê humano concebido
no Espaço.
Mas as coisas não estão nada boas: Ed Fifteen (Kenny, irmão de Coyne)
comete suicídio depois de sair correndo da base vestido de Papai Noel ao invés
do traje espacial. Para Syrtis a comemoração natalina em Marte se reveste de
grande importância: é a forma de afirmação simbólica humana de tudo aquilo que
o cosmos não reserva ao homem no Espaço: piedade, amor e compaixão.
Sem o seu Papai Noel, Syrtis começa a sofrer efeitos da demência com o
ar rarefeito: imagina em alucinações uma banda marcial cujas cabeças dos
músicos são substituídas por vaginas. A banda marcha e esmaga um bebê em uma
sequência perturbadora.
Então, do meio da noite marciana pousando no planeta numa estrela
cadente (uma referencia à estrela de Belém do nascimento de Cristo) surge um
ser verde, com antenas e uma luz pulsante no peito (Wayne Coyne) que
transformará o filme num festivo caos psicodélico. Esse Super-ser viajante
ocupará o papel de Papai Noel nas comemorações organizadas pelo Major Syrtis.
Detetives, Viajantes e Estrangeiros em Marte
Há deficiências óbvias em Christmas
on Mars: más atuações (afinal, são roqueiros) e roteiro confuso onde o
espectador terá que mobilizar uma massiva suspensão da incredulidade para
embarcar na viagem do filme. Há cenas que lembram os filmes trash de Ed Wood
como, por exemplo, uma “pesada” escotilha metálica que percebemos claramente
ser confeccionada com algum material leve como isopor ou papelão.
Viajantes (o Super-Ser do espaço que alterará a vida de todos como fosse um
messias), Detetives (a busca pela
solução não só dos problemas técnicos – o condensador - , mas solucionar o
enigma das alucinações psicóticas e paranoicas) e Estrangeiros (todos como estranhos prisioneiros em um cosmos que
não nos ama) perdidos em um lugar que os enigmáticos planos de câmera transformam
a colônia marciana em um nowhere.
Filmadas em uma fábrica de cimento abandonada em Oklahoma City (cidade
natal do Flaming Lips), as cenas são poeticamente áridas, desoladas como um
deserto – se contarmos o número de vídeo-clips de rock ambientados em desertos
e locais desolados, entenderemos esse simbolismo recorrente. A conexão do rock
com a mitologia do Estrangeiro.
O “Star Child”
Outra imagem marcante é a do bebê na grande bolha transparente. Todo o
visual lembra 2001 de Kubrick e o
bebê o simbolismo do Star Child desse filme de 1968 – o ser transdimensional
que no final olha fixo para a Terra, resultante do contato final na nave
Discovery com os criadores da raça humana em uma das luas de Júpiter.
Lembrando que o simbolismo do Star Child para Kubrick se revestia de um
caráter gnóstico que aproxima-se bastante de Christmas On Mars: as crianças possuem um imaculado sentido de
admiração, capacidade de alegria e criação de sentido. Na medida em que crescem
começam a ver a morte e a dor em todos os lugares e começam a perder a fé e
percebem como o Universo é frio e indiferente, corroendo nossa capacidade de
viver – clique
aqui para ler entrevista com Kubrick.
Major Syrtis quer combater o niilismo e desesperança da colônia marciana
com uma típica comemoração natalina para fazer a tripulação esquecer de que o
homem jamais deveria ter ido ao Espaço. E o nascimento do bebê-Star Child que
coincide com o Natal é o simbolismo gnóstico cristão não de salvação, mas de
transcendência de um cosmos criado por alguém não nos ama.
Ficha Técnica |
Título: Christmas
On Mars
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Diretor: Wayne Coyne
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Roteiro: Wayne Coyne
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Elenco: Steven Drozd, Wayne Coyne, Steve
Burns, Kenny Coyne
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Produção: Flaminglips.com
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Distribuição: WEA (CD/DVD)
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Ano: 2008
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País: EUA
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