Falecido aos 84 anos nessa sexta-feira em Milão, Umberto Eco criou um
projeto inédito: o encontro da Semiótica com o Medievalismo. Especialista em
Idade Média, Eco afirmava que procurava
encontrar aspectos medievais no presente. O que levou a criar o seu projeto
semiótico em uma simples definição: “é a disciplina que, a princípio, estuda
tudo aquilo que possa ser usado para mentir”. Por isso, o frade detetive do
livro/filme “O Nome da Rosa” tornou-se a síntese daquilo que Umberto Eco buscou
em toda vida: leitores críticos que conseguissem escapar dos labirintos
medievais das interpretações que fingem ser verdades e que apenas replicam
“autorictas”. Eco testemunhou no final a criação da nova versão desse labirinto
- a Internet. E alertou a necessidade de um novo leitor crítico que encontrasse
uma nova saída desse labirinto: a Teoria da Filtragem.
A Idade Média sempre foi uma constante obsessão para o chamado “mago de
Bolonha”. Embora Umberto Eco escrevesse com a mesma desenvoltura temas tão
diversos desde tratados de estética medieval, ensaios sobre histórias em
quadrinhos e cultura de massas, passando pelos fenômenos da significação na
Semiótica e linguística e chegando à ficção ao se tornar romancista de sucesso
mundial com livros como O Nome da Rosa
e O Pêndulo de Foucault, seus
conhecimentos de medievalista sempre serviram como uma lente através da qual
analisava qualquer tema.
O blog Cinegnose conheceu
Umberto Eco a partir do seu livro Viagens
na Irrealidade Cotidiana onde o texto “Televisão: A Transparência Perdida”
e seus conceitos de Paleotevê e Neotevê são preciosas ferramentas para dissecar
a atual irrealidade midiática.
Umberto Eco dizia que sua preocupação constante era ver aspectos
medievais em coisas que aparentemente eram modernas. Nesse livro isso fica
explícito no texto “A Nova Idade Média” – na irrealidade cotidiana a televisão
deixaria de ser uma janela aberta para o mundo na medida em que falaria apenas
de si mesma em um labirinto de metalinguagem e eventos-encenação.
Fechadas nas suas casas e inseguras com o mundo lá fora, as pessoas veriam
apenas TV tentando se conectar com a transparência perdida do mundo, mas apenas
se fechariam cada vez mais como estivessem em castelos medievais fortificados,
amedrontadas com as hordas bárbaras nômades.
A epifania da estrutura ausente
Seja estudando a estética medieval de Tomás de Aquino, a cultura de
massas, a Semiótica ou as chamadas “ciências banidas” (ocultismo, sociedades
secretas, mesmerismo, esoterismo e magia), Eco preocupava-se em entender a
sensibilidade de nossa época baseada na perda da integridade, da globalidade,
da troca da sistemacidade ordenada pela instabilidade, polidimensionalidade,
mutabilidade – uma cultura que expressa a catástrofe, teoria do caos,
estruturas dissipativas, relatividade, fragmentações quânticas. Aquilo que Eco
chamava de “epifania da estrutura ausente” que nos ensinaria algo sobre o
mundo.
Uma sensibilidade que um outro autor italiano, Omar Calabrese, chamava
de “sensibilidade neobarroca”. Umberto Eco via nessa sensibilidade uma espécie
de labirinto medieval (diferente do labirinto clássico grego onde o fio de lã
Ariadne é a solução para achar o caminho de volta), um labirinto maneirista
como múltiplas ramificações de uma árvore. Onde nos perdemos nas múltiplas
interpretações e tiramos prazer disso. O prazer em se perder e abandonar as
noções de verdade, fidelidade ou originalidade.
Obra Aberta
Eco fez seu doutorado na década de 1950 fazendo um leitura da estética
medieval em São Tomas de Aquino onde a obra de arte e o belo são analisado pela
“sensibilidade da época”, marcada pela luz e transcendência num mundo fugaz e
frágil.
Nos anos 1960 Eco publicou Obra
Aberta, coletânea de artigos sobre poética da arte contemporânea. Sua
obsessão pela Idade Média paradoxalmente o levou a arte de vanguarda onde o
objeto artístico se abre a múltiplas leituras ou interpretações pelo receptor –
obras de arte ambíguas e auto-reflexivas. Assim como Dante construiu a Divina Comédia antecipou certas
possibilidades de leituras, no entanto a obra deveria apontar para um sentido
unívoco.
Essa tensão entre fidelidade e liberdade interpretativa exigiria um leitor
crítico que se diferenciaria do ingênuo – apesar da ambiguidade e liberdade, a
arte exigiria uma competência para fruição estética.
Apocalípticos e Integrados
Isso levou Eco à discussão sobre
a cultura de massas no livro Apocalípticos
e Integrados: examina o fenômeno da cultura de massas procurando mediar as
posições entre os frankfurtianos que acreditavam que a indústria cultural
levaria à alienação e dominação (os “apocalípticos”) e os funcionalistas
norte-americanos que ela favoreceria a democratização do saber (os
“integrados”).
Eco faz um exercício interpretativo e vê validades nos argumentos de
ambos os lados. Parece haver nesse livro uma linha de continuidade com Obra Aberta: também a própria cultura de
massas cria ambiguidade e auto-reflexividade – ela pode ser ao mesmo tempo
condenada e valorizada.
Guerrilhas Semiológicas
Essa ambiguidade do produto da indústria cultural de Apocalípticos e Integrados somada a
necessidade da existência de um leitor crítico leva Eco a escrever o pequeno
texto chamado Guerrilhas Semiológicas
em 1967. Nesse manifesto de política midiático, Eco vislumbrava a possibilidade
de organização educativa conseguir fazer um determinado público discutir a
mensagem que está recebendo da TV e inverter o seu significado. Ou mostrar que
a mensagem pode ser interpretada de diversos modos. Para Eco, pouco importava
dominar a fonte da informação: era necessário criar guerrilhas semiológicas de
“porta em porta” para inverter o sentido das significações e desarmar as
ideologias.
Essas possibilidades de interpretações infinitas das “obras abertas” o
fez mergulhar na crítica ao estruturalismo e na aproximação da Semiótica a
partir de 1968 com A Estrutura Ausente.
A partir desse livro derivariam todas as outras obras nos anos 1970: As Formas e os Conteúdos (1971), O Signo (1973) e depois a obra mais bem
elaborada sobre o tema: Tratado de
Semiótica Geral (1975).
No lugar do valor ontológico de estruturas e da referencialidade do
signo, Umberto Eco vai preferir estudar a noção de interpretante em Peirce e o
processo de semiose como contínua produção de sentido – Eco abandona a noção de
signo (como algo que está para algo), enfraquece a ideia de correspondência, e
passa a se debruçar na ideia de semiose como um processo virtualmente infinito
de interpretações e produção de novos significados.
Semiótica e a mentira
Diante da “falácia referencial” dos linguistas, Eco vai definir a
Semiótica como “a disciplina que, a princípio, estuda tudo que possa ser usado
para mentir” (Tratado Geral de Semiótica, p.8).
Haveriam no mundo diferentes interpretações ou “verdades semióticas”, o
que torna o estudante semiótico um detetive tal como o frade Guilherme de
Bascerville do seu livro O Nome da Rosa.
Um detetive que não busca o sentido último dos signo, mas denuncia como as
interpretações podem se fazer passar como verdade única – como fossem juízo de
fato e não um juízo semiótico, ou seja, uma significação social entre outras.
Dessa maneira, os signos podem matar, assim como os monges copistas em
Nome da Rosa envenenados pelo veneno colocado nas páginas do livro herético.
O detetive do livro O Nome da Rosa
que tenta resolver as mortes em série dos monges copistas em plena Idade Média
é a síntese do projeto semiótico de Umberto Eco associado a sua obsessão pela
estética medieval.
Por exemplo, o recurso da “Autorictas” na cultura medieval que
ressurgiria na “Nova Idade Média” atual: o discurso medieval era constituído
por grandes monólogos de citações de autoridades, mantendo o mesmo léxico, a
mesma retórica, o mesmo argumento. Era uma forma como o medieval reagia à
desordem e à dissipação cultural da decadência do Império Romano – leia “A Nova
Idade Média”, In: Viagens na Irrealidade
Cotidiana.
A semiose infernal
Hoje, esse recurso se repete sob a roupagem da “falácia referencial”:
através de maneirismos, bricolages, pastiches etc. produzem-se novas
significações através da repetição. Se na Idade Média a repetição da
“Autorictas”, hoje é escondida sob a patina das diferentes opiniões, métodos e
o monopólio econômico e midiático.
No seu recente livro O Cemitério
de Praga (2011) esse projeto semiótico fica evidente: como um texto forjado
como O protocolo dos Sábios do Sião
criou uma semiose infernal: serviu de base para o antissemitismo que fez
desembocar na doutrina nazista que se desdobrou em uma máquina de
propaganda.
Por isso, no final da vida Umberto Eco via a Internet como uma semiose
selvagem e perigosa: informações excessivas
e sem hierarquia, onde a criação de novas significações transformou-se
em replicações, como na autorictas
medieval.
Se nos anos 1960 Eco propunha as “guerrilhas semiológicas”, no final o
“mago de Bolonha” acreditava na urgência da criação de uma “Teoria da
Filtragem” diante da semiose selvagem nas novas tecnologias. Então, todos nós
nos transformaríamos no frade franciscano detetive Guilherme de Bascerville de O Nome da Rosa: encontrar o verdadeiro
conhecimento no meio das repetições que criam a falácia semiótica da verdade.
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