Você foi criado pela ilusão ou a ilusão foi criada por você? Você é
parte de um corpo ou o corpo é parte de você? Há espaço dentro da casa ou a
casa está dentro do espaço? Para o filme hindu “Lucia” (2013) essas perguntas
não são meros jogos de palavras: escondem a estranha natureza da realidade
despertada por uma droga chamada “Lucia”. O filme “Lucia” não é um produto de
Bollywood, mas do cinema canará da Índia que procura conciliar a estética bollywoodiana
(muita música, carrões e mulheres) com séria crítica social e filosófica. Um
lanterninha de cinema com sérios problemas de insônia experimenta uma droga
chamada “Lucia” que produz sonhos lúcidos – a tal ponto que ele não mais saberá quando está acordado ou dormindo. Filme sugerido pelo nosso leitor Felipe Resende.
A indústria de
cinema hindu é a maior do mundo em termos de vendas de ingressos, entre os mais
baratos do planeta. A cada três meses um número correspondente da toda
população da Índia visita as salas de cinema, de multiplex a pequenos teatros
de subúrbios das grandes cidades – os “talkies”.
Paradoxalmente, o
cinema hindu (com muitos romances, melodramas e musicais que
vendem sonhos de realizações e felicidade) se estabeleceu em uma sociedade com
uma antiquíssima divisão religiosa em castas – grau social transmitido por
herança que determina toda a existência de um indivíduo. Embora considerado
ilegal pela Constituição, a divisão em castas mantém sua força na Índia e já
registra mais de três mil classes e subclasses.
O filme Lucia (2013) do diretor Pawan Kumar é um
bom exemplo de como essa contradição entre a realização dos desejos nos sonhos
e o determinismo das castas é representada pelo cinema daquele país – um filme
intrigante que mistura a lógica onírica dos sonhos com o imobilismo da
realidade do protagonista. Tudo isso com uma narrativa não linear com montagens
paralelas de diversos pontos de vista que se sobrepõem, interrompidas com
muitos cenas musicais com são verdadeiros vídeo-clipes dentro do filme.
Lucia é uma tentativa corajosa de conciliar temas
filosóficos e crítica social: eutanásia, drogas, questões familiares combinados
com a discussão sobre as fronteiras que separam o mundo dos sonhos e da
realidade – “Você foi criado pela Ilusão ou a Ilusão foi criada por você?”, é a
frase que abre o filme. E tudo isso misturado com muitos números musicais,
carrões, mulheres glamorosas e muito luxo em mais de duas horas de filme.
Lucia não é uma produção de Bollywood (baseada em
Mubai), mas do cinema canará (baseado na região de Kamataka). Ao contrário de
Bollywood (visto por muitos como uma violação dos valores culturais indianos
pela liberalidade), o cinema canará ainda tenta conciliar a linguagem
bollywoodiana com temas mais filosóficos e críticos.
Por isso, o
espectador ocidental (e do “Cinegnose”) deve ter uma certa dose de paciência
para colocar entre parêntesis as cenas bollywoodianas e extrair a parte filosoficamente
instigante de Lucia – assistir ao filme no computador ajuda em adiantar as
cenas supérfluas, o que reduz o tempo do filme em mais de 1/3.
O Filme
Lucia foi um
projeto crowndfunding que resultou
num modesto orçamento com 110 investidores, mas apesar disso a produção do
filme é brilhante: o trabalho de câmera do cinegrafista Siddart Nuni camufla
todas as deficiências com um visual maravilhoso em câmera 5D.
O filme é um conto
aparentemente simples: a história de Nikki, um despretensioso lanterninha de um
“talkie” (sala de cinema popular) na periferia de Bangalore. Leva uma vida sem
ambição e sofre de terríveis insônias nas quentes noites da região. Em uma
dessas noites insones sai pelas ruas até topar com vendedores ambulantes de
drogas que lhe prometem um produto que o fará dormir.
Nikki chega a um
estranho lugar: um corredor decorado com luzes, monitores de TV e adereços
místico-religiosos que o leva a um sinistro chefe do negócio com sua namorada
punk. O Então, o homem oferece-lhe uma amostra grátis da viciante “pílula
mágica” chamada “Lucia” que lhe garantirá muito mais do que noite de sono –
Nikki terá sonhos lúcidos.
Aqui, há uma
evidente referência a forma como a Alice de Lewis Carroll encontra a Wonderland.
Nos seus sonhos lúcidos Nikki realizará todos os seus desejos, desde que cada
vez que acorde escreva seus sonhos como fosse um roteiro de um filme, para dar
continuidade à narrativa onírica na próxima noite.
O problema é que o
sono da noite evolui para cochilos durante o dia, fazendo a narrativa paralela
dos sonhos (onde Nikki é um famoso ator de cinema com carros, mulheres e muito
dinheiro) interferir na vida real até o momento em que as fronteiras entre
sonho e realidade começam a desaparecer.
Mas o diretor
Pawan Kumar não conta essa narrativa de maneira simples: sobrepõem-se passado,
presente e futuro, além das múltiplas camadas narrativas oníricas que são
contadas de forma não-linear.
O filme começa com
Nikki em coma. Ele parece ser famoso e seu caso transforma-se num intenso
debate público sobre a Eutanásia. Por que ele ficou assim? Um investigador de
polícia assume o caso: Nikki supostamente foi vítima de um atentado, mas há uma
suspeita com o envolvimento com algum tipo de droga. Daí começa, em flashback, a história do humilde
lanterninha e o seu mergulho no mundo mágico da droga “Lucia”.
Para diferenciar
os planos narrativos o diretor optou por fotografias em diferentes matizes:
preto e branco para os sonhos, esverdeada para a narrativa do passado, mais
alaranjada para o presente, e assim por diante.
Lucia e a teoria freudiana das “sentinelas”
O mais
interessante em Lucia é a solução
encontrada pelo roteiro para que sonhos e realidade se misturem
progressivamente no filme, a ponto de entrarem em estado de looping que levará à revelação do porquê
da cena inicial que apresenta Nikki em coma. Pawan Kumar apresenta um
“mecanismo de defesa” dos sonhos diante da realidade análogo ao que Freud
apresentou na abertura do seu livro A
Interpretação dos Sonhos: a chamada “teoria das sentinelas”.
O que primeiro
chamou a atenção de Freud em relação aos sonhos não foi o conteúdo simbólico,
mas os elaborados mecanismos de proteção do sono contra fatores perturbadores
internos (dores de cabeça ou preocupações) ou externos - barulhos de trovões ou
sons de relógios despertadores.
Por exemplo, nos
sonos lúcidos induzidos pelas pílulas Lucia personagens do mundo real de Nikki
(a namorada, os amigos etc. em diferentes papéis) ou situações (a cena do filme
que via enquanto cochilava em uma poltrona do “talkie”) são incorporados
engenhosamente na narrativa onírica da mente de Nikki. Ao ponto de criar um loop entre realidade e ilusão: se na vida real ele está apaixonado
por uma garota, no sonho a garota torna-se uma bela atriz famosa onde, ao
contrário, é ela que procura conquistar o amor de Nikki.
Dado o estímulo, o sonho cria o
cenário, fornece atores e adereços para as cenas, tudo isso extraído das
experiências e impressões do dia-a-dia de quem está dormindo. O sono é uma
necessidade fisiológica e o sonho tenta protegê-lo.
Cinema e neoplatonismo gnóstico
O filme Lucia abre
os créditos iniciais declarando-se uma homenagem aos cem anos da indústria
cinematográfica hindu. E nada melhor do que homenagear a sétima arte com
associações à metafísica de Platão, como faz o diretor em vários momentos do
filme.
Por exemplo a
forma como o personagem Nikki define o trabalho de lanterninha (“alguém que
anda na escuridão com uma lanterna ajudando as pessoas a chegar ao lugar certo”)
é essencialmente platônica.
Mas Lucia avança para o neoplatonismo
gnóstico ao criar o jogo de sombras entre ilusão e realidade: você é criado
pela ilusão ou a ilusão foi criada por você? Você é parte de um corpo ou o
corpo é parte de você? Há espaço dentro da casa ou a casa está dentro do
espaço? Seria a nossa pequena vida parte de um grande sonho de alguém?
Nós sonhamos ou fazemos parte do sonho de
alguém? Essa é a reflexão que Pawan Kumar propõe ao espectador, em meio a
muitos números musicais e comentários críticos a certas convenções sociais
hindus como, por exemplo, corretores que agenciam casamentos para casais dentro
de uma mesma casta.
Se na antiguidade
Platão tinha certeza em diferenciar entre o que era simulacro e realidade,
entre dentro e fora da caverna, em Lucia isso não é claro: a pílula mágica pela
qual Nikki torna-se dependente talvez não seja uma mera droga, mas algo como a
lanterninha acesa na escuridão que revela para nós não o “lugar certo”, mas que
o sonho e a realidade estão mais embaralhados do que imaginamos.
Ficha Técnica |
Título: Lucia
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Diretor: Pawan Kumar
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Roteiro: Pawan Kumar
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Elenco: Sathish Neenasam, Sruthi
Hariharan, Achyuth Kumar
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Produção: Audience Films, Creathma Productions
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Distribuição: Audience Films
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Ano: 2013
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País: Índia
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