Por que um filme tão odiado pela crítica especializada na sua época como “Em Algum Lugar do Passado” (Somewhere in Time, 1980) em pouco tempo tornou-se um novo clássico e um fenômeno cult? Diferente de outros filmes sobre viagem no tempo com forte ênfase social, “Em Algum Lugar do Passado” é uma tragédia amorosa, melodramática sob a trilha onipresente de Rachmaninoff. Porém, há algo mais pulsando por trás de camadas e camadas de romantismo hollywoodiano: o primeiro filme a aproximar o tema do amor aos paradoxos quânticos do tempo, assim como hoje fazem filmes como “Interestelar” de Nolan ou “Amantes Eternos” de Jarmusch.
Massacrado pela
crítica e amado pelo público, o filme Em
algum Lugar no Passado é um desses fenômenos cult: produções que na época
foram mal vistas pela crítica especializada, depois de uma década tornam-se
novos clássicos. Exemplos parecidos não faltam: Ghost, Curtindo A Vida Adoidado, A Vingança dos Nerds etc.
Era um filme sobre
amor e viagem no tempo, mas sem tornar-se uma ficção científica. Ao contrário
de A Máquina do Tempo (The Time Machine, 1960) ou Um Século em
43 Minutos (Time After Time,
1979), produções com abordagens mais sociais, Em Algum Lugar do Passado é uma tragédia amorosa, uma produção de época
com toda pompa e circunstância. Um filme bem conservador, que abre uma década
de forte acento de conservadorismo moral e político (era Thatcher-Reagan)
marcado pela AIDS e o retorno aos valores tradicionais. O auge dessa década foi
o filme Atração Fatal (Fatal Attraction, 1987) – a traição pode
ser punida pela ameaça de uma solteirona enlouquecida.
Mas se Em Algum Lugar do Passado fosse apenas
isso cairia facilmente no esquecimento. Por que em pouco tempo o filme
tornou-se um novo clássico? Para além da onipresente música “Rapsódia sobre um
Tema de Paganini” de Rachmaninoff (em nove de cada dez restaurantes da época
era possível, a qualquer momento, ouvir essa música) e o drama de um amor
impossível com direito a um final estilo Ghost, o filme apresenta curiosas
ambiguidades e paradoxos sobre a viagem no tempo.
Além disso, é um
dos poucos filmes que aborda o tema da viagem no tempo sem o recurso de
máquinas ou tecnologias avançadas – tudo que temos é a auto-hipnose e a caixa
preta da mente. O que tornou ainda mais ambígua a experiência no tempo do
protagonista.
O Filme
A narrativa inicia
em 1972 acompanhando a estreia de uma peça do jovem dramaturgo Richard Collier
(Christopher Reeve) na pequena Millfield. Ele é abordado por uma mulher idosa e
misteriosa que aperta em suas mãos um antigo relógio de bolsa e implora: “volte
para mim!”.
Richard passa então a ficar obcecado em
descobrir a identidade daquela mulher, até descobrir que era uma famosa atriz
do início do século XX chamada Elise McKenna (Jane Seymour).
Hospedado no
clássico Grand Hotel, Richard descobre uma antiga foto da atriz exposta no
salão histórico e que ali esteve apresentando uma peça teatral em 1912, o que
faz aumentar ainda mais a paixão e obsessão. Mas a maior surpresa foi descobrir
que aquele relógio que possuía na verdade era dela.
Intrigado, Richard
começa a empreender uma pesquisa sobre as reais possibilidades de se fazer uma
viagem no tempo, até conhecer um professor de Filosofia que lhe passa um método
simples, baseado em auto-hipnose: tudo que Richard precisa fazer é se isolar em
um quarto e remover todos os objetos modernos que lembrem o presente. Vestido
com trajes de época e deitado em uma cama, Richard é transportado para aquele
momento da apresentação da jovem e radiante Elise, 60 anos atrás no tempo.
A viagem no tempo
através da mente abre a primeira grande discussão para os aficionados do filme:
será que houve de fato um transporte real para o passado ou tudo não passou de
um sonho? Ou, de fato, houve um deslocamento no tempo, mas através de uma
auto-hipnose de regressão a vidas passadas.
Essa hipótese
teosófica é ainda corroborada com o episódio da moeda de 1972 que Richard acha
em seu bolso em 1912, quebrando abruptamente o transe temporal fazendo-o
retornar involuntariamente ao presente, abandonando a mulher amada. A
consciência da moeda lembra as técnicas de sonho lúcido (indução de
metalinguagem no próprio sonho). Porém, aqui a meta-consciência quebrou o
“encanto” ou a crença que de fato está em 1912.
O paradoxo do relógio
A história de Em Algum Lugar do Passado parece ser
auto-consistente, sem o chamado “paradoxo do avô” das viagens no tempo –
Richard apenas cumpre a predestinação. Todas as informações que descobriu em
1972 sobre o passado, cumpre em 1912: hospeda-se no mesmo número de quarto, a
mesma assinatura no livro de hóspedes do hotel e... devolve o relógio para
Elise que voltará a entregar a Richard 70 anos depois.
Essa é a questão
que assombra os fãs do filme: onde foi fabricado o relógio? Se o leitor
considerar a linha do tempo do relógio, irá formar um circuito fechado muito
parecido com um bambolê – Elise teria o “primeiro” relógio em 1912, e em
seguida entregaria para Richard em 1972, de modo que poderia dar-lhe de volta
em 1912. O relógio existiria sem nunca ter sido criado. Estaríamos diante
daquilo que em Física chama-se CTC – Closed Timelike Curve – linha de tempo
fechada.
O relógio viaja
através de uma CTC e, portanto, carece de qualquer início ou final. Assim
parece ter surgido do nada, criatio ex
nihilo. A melhor imagem para ilustrar esse conceito tão abstrato são as
figuras geométricas paradoxais como a fita
de Möbius (que não possui uma lado de dentro e de fora como uma fita
normal) ou as imagens recursivas como as escadas ascendentes e descendentes de MC
Escher (veja figura abaixo) onde não conseguimos afirmar se os monges
estão subindo ou descendo as escadarias do mosteiro.
Por isso, Em Algum Lugar do Passado talvez seja o
primeiro filme a fazer uma abordagem, por assim dizer, quântica do amor – o
relógio foi o objeto que uniu pessoas tão distantes no tempo. O relógio parece
ter sido criado por pura magia – ou pelo amor?
O "nada" quântico
Pode-se obter algo
do nada? As leis da mecânica quântica permitem fazer uma partícula (e sua
anti-partícula correspondente) a partir do “nada” (ou o que os cientistas
poderiam chamar de “vácuo”). A criação de um elétron (e a sua anti-partícula o
pósitron) seria um exemplo. Mas aplicar esse “entrelaçamento quântico” da
microfísica para um mundo macro onde relógios de bolso poderiam simplesmente
aparecer do nada é muito improvável.
Filmes recentes
como Interestelar
(Interstellar, 2014) de Nolan ou Amantes
Eternos (Only Lovers Left Alive,
2013) de Jarmuch são exemplos dessa aproximação do amor com a mecânica quântica
– assim como partículas distantes interagem criando padrões como se estivessem
conectadas, pessoas distantes que se amam adquirem alguns desses recursos e
reagem da mesma forma, ao mesmo tempo para as mesmas coisas.
Um amor eterno
que, assim como o relógio de bolso, contraria a segunda lei da Termodinâmica: a
Entropia – o Tempo é uma seta que aponta somente para o futuro, logo tudo se
deteriora e se decompõe e que, eventualmente, tudo deve morrer. Vamos dizer que
de alguma forma o relógio possui uma auto-existência: certamente a ação de 60
anos desgastará o relógio (riscos, batidas, oxidação etc.). O relógio de 1972
retorna para 1912 novinho em folha – deve haver alguma forma de energia que
obtenha a reparação do relógio, fechando a curvatura do tempo e abolindo a lei
da entropia.
Esse talvez sejam
os motivos secretos que ajudaram a tornar Em
Algum Lugar no Passado um cult e um novo clássico dentro da história do
cinema. Por trás das camadas e camadas de romantismo hollywoodiano, está lá
pulsando uma antiga mitologia gnóstica que a mecânica quântica parece ter
atualizado: a diferença entre criação e emanação – todo o cosmos jamais foi
criado. Simples foi “emanado” em um Eterno Presente.
Talvez aí esteja o
espírito da contestação atual ao clássico modelo do Big Bang feita por muitos
físicos atuais como Saurya Das (Universidade de Lethbridge, Canadá) que afirma
que a matemática e a teoria do Big Bang se anulariam por conta dos infinitos –
sobre isso clique
aqui.
O Universo sempre
existiu e qualquer questão sobre início ou fim é meramente religiosa ou
escatológica. E o cinema acrescentaria: assim como o Universo, o amor também é
eterno.
Ficha Técnica |
Título: Em
Algum Lugar no Passado (Somewhere in Time)
|
Diretor: Jeannot Szwarc
|
Roteiro: Richard Matheson
|
Elenco: Christopher Reeve, Jane Seymour, Christopher Plummer
|
Produção: Rastar Pictures
|
Distribuição: Universal Home Video
|
Ano: 1980
|
País: EUA
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