Apesar das
previsões catastróficas a Copa do Mundo foi um evento bem sucedido. As grandes
manifestações de rua declinaram. E as eleições se aproximam, mostrando uma
oposição política cada vez mais inepta. Pressionada, a grande mídia lança a “piece
de resistance” do seu arsenal de bombas semióticas, testada durante a Copa: a não-notícia, blefe turbinado pelos “efeitos de realidade” - estratégia
semiótica de produzir uma sensação de verossimilhança através de imagens e sons
propositalmente “sujos” que, numa televisão de alta definição, ganha uma
conotação “investigativa” ou de “denúncia”. E as supostas denúncias da revista “Veja”,
repercutidas de imediato pela grande mídia, sobre a “farsa da CPI da Petrobrás”
são os primeiros estilhaços das não-notícias na opinião pública, apontando a
necessidade urgente de combate a um novo analfabetismo: o midiático-visual.
Em plena televisão digital de alta definição se repetem em telejornais e
congêneres imagens granuladas em preto e branco, câmeras com imagens desfocadas
e trêmulas e infográficos toscos reproduzindo supostos diálogos telefônicos e
microfones escondidos com áudios sujos e trechos inaudíveis acompanhados de
legendas.
Na medida em que as eleições aproximam-se, a Copa do Mundo foi
organizacionalmente bem sucedida (apesar das previsões catastróficas), as
grandes manifestações de rua acabaram e a oposição política ao Governo se
demonstra cada vez mais inepta, a grande mídia lança a piece de resistance do arsenal das bombas semióticas: o blefe das
não-notícias, turbinadas por uma estratégia que, em tempos de paz, a televisão
sempre utilizou de forma discreta e esparsa: aquilo que o semiólogo francês
Roland Barthes chamava de “efeitos de realidade” – detalhes semioticamente
estratégicos para produzir uma sensação de verossimilhança principalmente em
telejornais – leia BARTHES, Roland, S/Z - Um
Ensaio, Edições 70, 1999.
Harmonizar detalhes autenticadores que criam uma espécie de ilusão de
ótica de verdade que passa a ser mais importante do que o mero fato de que
esses detalhes existam.
O teste na Copa do Mundo
Essa nova bomba semiótica começou a ser testada durante a Copa do Mundo.
A grande mídia percebeu desde a partida inaugural na Arena Corinthians que o
evento seria um frustrante sucesso – tanto é verdade que depois de uma semana de Copa,
começou a transferir para a mídia internacional a responsabilidade pelas
previsões negativas, saindo de fininho pela porta dos fundos. Por isso, começou
a testar uma nova modalidade de bomba: a não- notícia.
Esforço investigativo! TV Globo descobre cambistas no Maracanã na Copa |
Quem não se lembra do telejornal do SPTV
que colocou seus “parceiros” para irem de carro à Arena Corinthians em dia de
jogo só para confirmar a recomendação contrária da CET. Presos no
congestionamento, os “parceiros” registraram imagens em tom de “denúncia”,
usando efeitos de realidade (câmeras trêmulas, imagens desfocadas, áudio picotado
etc.). Ou então as imagens precárias e granuladas em PB de microcâmeras para
denunciar a grande revelação nas imediações do estádio do Maracanã que comprovaria
o caos da organização da Copa no Brasil: cambistas (ah, vááá!!!), figura tão
comum no futebol brasileiro quanto pasteleiros nas feiras livres.
A bomba semiótica da CPI da Petrobrás
Pois agora, depois do período de testes, essa nova modalidade de bomba
semiótica entra em ação para valer na última edição da Veja e repercutida, como de hábito, pela grande mídia: a “Grande
Farsa da CPI da Petrobrás” – o “vazamento” das perguntas que seriam feitas
pelos senadores aos investigados.
E a prova do “crime” repetida nos telejornais: imagens precárias (isso é
retoricamente importante) de 2 min40 seg feitas por uma caneta espiã onde um
chefe da Petrobrás e o advogado da estatal discutem estratégias dos convocados
que iriam depor na CPI. E para a revista, a estratégia se consistia em soprar
aos convocados perguntas que os senadores fariam.
Agora, o esforço investigativo da "Folha": descobriu o media training |
Se na escaladas das grandes manifestações de rua iniciadas em junho do
ano passado presenciamos as estratégias de dissimulação
da grande mídia (turbinar os acontecimentos através de estratégias de edição,
montagem e angulação de textos e imagens), agora com essa nova bomba passamos a
uma tática radical: a simulação ou
blefe – a revista diz que possui algo que na verdade não existe.
O que a grande mídia “descobriu” foi uma prática corporativa muito comum
nas grandes empresas nos seus relacionamentos com a mídia: o media training,
aliás, fonte de complementação de renda para muitos jornalistas: treinar
empresários e executivos a lidar com as perguntas de repórteres e saber se
posicionar diante de câmeras e microfones. E mais: o media training da
Petrobrás se baseou em informações públicas disponíveis no site do Senado
Federal – perguntas centrais (que vão gerar outras perguntas durante as
sabatinas), nomes dos convocados e documentos que servem de base para a
investigação.
O sexo dos anjos e o analfabetismo midiático-visual
Esse episódio lembra também a grande “revelação” da mídia após a vitória
de Lula nas eleições de 2002: a imagem do candidato na campanha foi criada por
um marqueteiro chamado Duda Mendonça. Num esforço investigativo a grande mídia
“descobriu” o sexo dos anjos: a existência do marketing político, tão comum na
chamada democracia Ocidental quanto a existência de hóstias em igrejas e
divulgou isso como uma espécie de “denúncia” de um suposto artificialismo de
Lula.
A bomba semiótica da não-notícia lembra a gíria jornalística do “dar
pernas prá notícia”. Mas aqui temos algo mais: uma sofisticada articulação de
efeitos de realidade para a criação de impacto.
O ponto de partida do blefe dessa bomba é, como não poderia deixar de
ser, a ignorância do leitor/espectador de subsetores midiáticos especializados
como o mídia training e o marketing político – e por isso se faz cada vez mais
necessária uma espécie de alfabetização midiática-visual como disciplina
curricular para além da alfabetização tradicional.
A semiótica dos efeitos de realidade
Vídeos de "denúncias" fazem metalinguagem de programas como "Profissão Repórter" da Globo |
A retórica dessas “denúncias” é semioticamente tão carregada ou
canastrona que acaba expondo duas realidades: o desespero da grande mídia
diante de uma oposição política tão impotente e a incapacidade de amplos
setores da opinião pública em perceber o artificialismo de notícias construídas
com operações linguísticas tão artificiais. Sem muito esforço analítico, de
imediato se percebe os seguintes efeitos de realidade recorrentes nas notícias:
(a) em um ambiente televisivo com imagens em alta definição, telejornais
com cenografias futuristas e muita metalinguagem das sofisticadas tecnologias
de edição e transmissão, paradoxalmente imagens “sujas”, preto e branco, desfocadas
e tremidas ganham um inesperado efeito de realismo. Algo como o movimento back to vinil no rock e o som sujo de
guitarras grunge em um ambiente de produção musical sofisticado das grandes
gravadoras. O realismo vem de imagens supostamente produzidas em condições
precárias, difíceis, dando um tom “investigativo” ao trabalho jornalístico.
No fundo estes vídeos de denúncias são metalinguagens de programas
globais como Profissão Repórter de
Caco Barcelos ou Cena Aberta dirigido
por Guel Arraes, Jorge Furtado e Regina Casé. São herdeiros da onda da estética
reality show que domina a TV mundial
contemporânea. O pesquisador norte-americano Robert Stam já descrevia como os
atuais telejornais se transformavam ao narrar notícias em linguagem ficcional
cinematográfica onde os apresentadores são atores (com estudadas conotações de
solidez e sobriedade) e as escaladas transformam-se em teasers hitchcockianos.
Mas hoje vai além dos atributos da ficção: eles são agora, literalmente, ficção
– leia STAM, Robert, “O Telejornal e Seu Espectador”, em Novos Estudos Cebrap número 13, outubro, 1985, p 74-87;
A estética da denúncia-dossiê: as transcrições de áudios |
(b) A precariedade do áudio das canetas espiãs ou microcâmeras digitais confere
ainda mais o tom “investigativo” ou de “denúncia”. O curioso é que mesmo quando
a voz é audível, são inseridas legendas para criar um evidente efeito de
realismo documental;
(c) Infográficos toscos onde didaticamente se transcrevem conversas
telefônicas ou áudios de microfones escondidos com muitos chiados e ruídos (o
precário como efeito de realidade). Os infográficos retoricamente dão um tom de
dossiê top secret;
(d) O tom patibular ou de gravidade dos apresentadores de telejornais
(por exemplo, os olhos apertados de William Bonner e as sobrancelhas erguidas
da Patrícia Poeta no Jornal Nacional). O mais importante é a ambiguidade de
declarações como “procurado pela reportagem o diretor fulano de tal não foi
encontrado...” sugerindo o ardil do acusado em fuga. Se o acusado emite uma
nota pública de resposta às supostas denúncias, como a Petrobrás o fez, ela é
lida como nota impessoal. A resposta anunciada de forma burocrática
evidentemente fica em desvantagem diante dos efeitos de realidade construídos
pela acusação;
(e) Pessoas dando depoimento para as câmeras e em contra-luz com a voz distorcida para impedir a identificação. Um poderoso efeito de realidade, pois dá uma conotação criminógena a qualquer suposta denúncia, além de criar a moderna estética do "jornalismo investigativo";
(e) Pessoas dando depoimento para as câmeras e em contra-luz com a voz distorcida para impedir a identificação. Um poderoso efeito de realidade, pois dá uma conotação criminógena a qualquer suposta denúncia, além de criar a moderna estética do "jornalismo investigativo";
(f) O efeito de realidade da consonância: o Jornal Nacional cita a revista
Veja e, logo depois, outros
telejornais e portais de Internet repercutem a citação do telejornal global.
Isso cria o efeito de acumulação, consonância e onipresença: se todas as mídias
dão a notícia, então é real. Essa estratégia semiótica é comum nos telejornais
quando da cobertura de acontecimentos importantes e a citação da sua repercussão
na imprensa internacional. Efeito de realidade = credibilidade.
Portanto a bomba semiótica da não-notícia revela não só o
problemático analfabetismo midiático-visual do público que se torna presa fácil
dos fragmentos da explosão dessa bomba, como também a natureza ilusória dos
telejornais atuais: o critério de verdade foi substituído pelo de
credibilidade.
O pesquisador Robert Stam já apontava que todos os telejornais são
agradáveis – eles são construídos para nos dar o prazer da ficção. Não importa se as notícias são boas ou más, elas são construídas para nos proporcionar o
prazer da linguagem ficcional, como em um filme ou novela – narrativas carregadas
de efeitos de realidade para que o roteiro faça o espectador esquecer, nem que
seja por duas horas, que o que ele vê não é real. Por isso os efeitos de
realidade criam muito mais credibilidade do que a certeza de que estamos vendo
a verdade dos fatos – se a TV falou, então é verdade.
Por isso, essa bomba semiótica da não-notícia, talvez a última do
arsenal da grande mídia, seja a mais frágil de todas: o efeito do prazer
ficcional é de curto prazo porque é especular e catártico – um prazer que se
consome após a sua exibição, ainda mais em momentos em que a credibilidade da
grande mídia tradicional experimenta declínio na concorrência com as mídias
digitais.
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