Sensação no Festival de Sundance desse ano, o filme independente “Escape
From Tomorrow” (2013), rodado sem autorização no parque da Disney World e Epcot
Center, foi lançado mesmo com a ameaça de possíveis ações judiciais. Em um
cruzamento do messianismo do grotesco de David Lynch com o surrealismo de Buñuel e filmado em preto e branco,
vemos um protagonista que tenta viver o último dia de férias na Disneylândia como
um dia memorável, mesmo depois de saber que perdeu o emprego e esconder a
notícia da família. Mesmo estando dentro do mundo de sonhos criado pelo imaginário do parque, aos poucos ele cria um pesadelo paranoico: cabeças decapitadas, princesas da
Disney que se transformam em prostitutas para empresários japoneses e uma
gigantesca conspiração por trás da marca Disney sob o apoio tecnológico da
corporação Siemens.
A estreia de “Escape from
Tomorrow” no Festival de Sundance de cinema independente esse ano foi
impactante. “É o melhor filme que talvez você jamais tenha a chance de ver”,
diziam os críticos no festival. Isso porque o filme foi rodado sem autorização
na Disney World e Epcot Center e que, certamente, a pata corporativa de Mickey
iria cair pesada com ações judiciais e a produção jamais seria lançada. O filme
agora ocupa uma posição análoga no cinema independente ao lançamento do filme
“A Bruxa de Blair” realizado há mais de uma década.
Pois o filme foi lançado comercialmente nesse
semestre e surpreendentemente verificou-se muito pouca reação da Walt Disney, o
que criou uma espécie de decepção nos críticos que esperavam muito sangue e
batalhas jurídicas, levando a supor que talvez a crítica do filme em relação ao
“maravilhoso mundo de Disney” não tenha sido dura o suficiente. Claro, isso em
um país como os EUA onde o termômetro do sucesso corresponde ao sensacionalismo
da quantidade de processos contra um produto cultural, o que determinaria o
sucesso de bilheteria pelo escândalo.
Em uma narrativa que parece um
cruzamento do messias do grotesco David Lynch com o cinema surrealista de
Buñuel, o filme cria uma iconografia sombria em um lugar reconhecido pelas
diversões infantis e contos de fadas: tudo se transforma em um universo
paranoico de cabeças decapitadas, princesas da Disney que se transformam em
prostitutas para empresários japoneses e uma gigantesca conspiração por trás da
marca Disney sob o apoio tecnológico da corporação Siemens. Para o leitor
perceber a diversidade de leituras possíveis acompanhe a compilação de sinopses
desses três críticos:
(a) “Um dia na vida de uma família
em férias na Disneylândia. Apenas o dia começa quando Jim (Roy Abramsohn)
recebe um telefonema de seu chefe dizendo que quando retornar das férias não
encontrará mais trabalho. A partir daí as coisas só podem ir de água abaixo,
mas tudo é filtrado através da aparência alegre do parque. Ao longo da
narrativa temos uma epidemia da gripe do gato, lavagens cerebrais feitas por ciborgues
e o flerte por adolescentes francesas, o que só serve para demonstrar que
‘coisas ruins acontecem em qualquer lugar, mesmo no local mais feliz da Terra’”
(L. Rob Hubbard).
(b) “O perturbado homem de família,
Jim White, tenta aproveitar seu último dia na Disney World, mas ele se distrai
com um par de adolescentes francesas, desmaios e visões de acontecimentos
sinistros em um idílico parque. Na medida em que a intensidade das visões de
Jim cresce, assim também aumentam as tensões entre ele e sua família e logo
parece que poderá perdê-los ao estranho poder da Disney World. Será que
realmente sentirá falta deles, ou a Disney lhe oferecerá algo melhor?” (Bem
Sunde).
(c) “Um homem de meia idade (que se
parece muito com Tom Cruise) é demitido por telefone no meio das férias com sua
família na Disney World, e começa a se despedaçar física e mentalmente com a
sua família, enquanto secretamente começa a flertar com duas adolescentes francesas
durante a valsa no lugar mais feliz da Terra” (Ryan Aarset).
Pesadelo no “lugar mais feliz da Terra”
“Escape From Tomorrow” é o
pesadelo tragicômico do inconsciente, e a aparição da paranoia e tensão sexual
no “lugar mais feliz da Terra”. Tudo começa com uma típica situação corporativa
onde as relações profissionais flexíveis e descompromissadas criam situações
como essa: ser demitido pelo telefone, e no meio das suas férias. E ainda o
chefe termina com uma frase eufemística que é a chave de compreensão do filme:
“Jim, me escute. Não deixe sua imaginação correr solta. É apenas um período de
transição”. Típico consolo motivacional dos discursos corporativos que
pretendem transformar situações de crise em oportunidade de crescimento pessoal.
Jim vai esconder da família essa
notícia para não estragar o último dia de férias. Mas ele provavelmente nem
poderá pagar a conta no final, seu filho tem problemas com ele e sua esposa não
o vê mais como o companheiro para passar alegremente os dias. Aos poucos, a
narrativa vai misturando as preocupações adultas (desejos proibidos por
ninfetas, a sexualidade, a doença, o envelhecimento e morte entrelaçados) com
referências a lendas urbanas sobre a Disney World (decapitações em
montanhas-russas, sticks de peru que seriam na verdade feitos de carne de emu,
empregadas do parque que seriam, na prática, prostitutas para estrangeiros
ricos, salas secretas no subsolo do parque, robôs etc.) e problemas reais que
surgem nesses parques (vômitos, filhos extraviados etc.).
O que é instigante nessa estreia
do diretor Randy Moore é a sua sensibilidade gnóstica pela narrativa em abismo:
vemos o protagonista criar um pesadelo paranoico dentro do mundo de sonhos
criado pelo imaginário do parque. Sequências ousadas, a estranha fotografia em
preto e branco (que às vezes produz bizarras profundidades de campo), cortes
rápidos, efeitos de animatronics, alusões às releituras dos contos de fadas de
Walt Disney tudo em meio a misteriosas luzes piscando... pesadelo dentro de
sonhos. Impossível dizer que o personagem mistura ficção e realidade, pois ele
já está no imaginário corporativo da Disney que já fez essa fusão há muito
tempo.
Origens míticas de “Escape From Tomorrow”
“Escape From Tomorrow” vai se
inspirar em três fontes míticas: primeiro, a origem sombria dos parques de
diversões nos chamados freak shows dos séculos XVIII-XIX; segundo, as origens
psiquicamente cruéis e sexualmente ambíguas dos antigos contos de fadas; e
terceiro, o mundo da fantasia e da imaginação como fuga da realidade.
Se observarmos em toda história
do cinema, encontraremos a recorrência da associação simbólica do mundo dos
parques de diversões e circos (assim como seus subprodutos como palhaços,
bonecos ventríloquos e mágicos) com o terror, mortes, monstros, manipulações
das mentes, sequestros e assassinatos – de filmes como “O Gabinete do Dr. Caligari”
a Chucky, “O Boneco Assassino” ou “Jurassic Park”. Por que espaços destinados à
diversão e fantasia são simbolizados pelo cinema de uma forma tão negativa?
Nas suas origens, sempre a
atração principal de circos e parques de diversões foram os chamados freak shows: atrações onde eram expostas
anomalias e aberrações humanas e zoológicas como a mulher gorda e barbada,
xipófagos, gigantes, animais com duas cabeças, fetos humanos e animais
mutantes, hermafroditas e toda uma variedade da fauna de coisas bizarras. Essa
capacidade ambígua de ao mesmo tempo atrair e repelir tornou os freak shows na atração central desses
espaços. Com o avanço das ciências e da medicina que passaram a dar uma
explicação racional para essas anomalias, o appeal
sobrenatural da atração entrou em declínio. Mas o imaginário permaneceu no
cinema a cada cena de perigo em montanha russa ou imagens de palhaços freaks e assassinos.
Outra questão são as origens dos
contos de fada explorados pelo mundo Disney. No século XIX os Irmãos Grimm
foram responsáveis por reunir muitas lendas e histórias que circulavam
oralmente pela Europa e publicaram-nas filtrando muito dos elementos sombrios
que as marcavam como a crueldade com crianças, sexualidade e mortes. Nos
séculos XVIII-XIX não existia o conceito de “infância” tal como partilhamos
hoje através da mídia associado à pureza e inocência. Visto como um adulto em
miniatura, a criança era exposta a todas as mazelas do mundo adulto, e isso era
visto como algo natural. A livre exploração do trabalho infantil nos teares da
indústria têxtil na Inglaterra, por exemplo, era apenas a faceta de uma exploração mais cruel de toda
a força de trabalho, tão bem descrita por Karl Marx na obra “O Capital”.
Contos
como “A Bela Adormecida”, “Chapeuzinho Vermelho” ou “João e Maria” nas suas
origens expõem explicitamente assassinatos, canibalismo, estupros e tensão
sexual como retrato de um cotidiano que não era escondido das crianças. Mais do
que isso, as crianças participavam dessas cenas, como bem explora filme “Escape
From Tomorrow”.
Mesmo nas versões recicladas e
assépticas dos contos de fadas feitas pela Disney, é perceptível a latência
desse lado sombrio nas narrativas, mesmo com todos os finais felizes.
E por último, a sátira que o
filme faz com o slogan da Disney “Walt Disney World Magical Beginnings”. Sem
querer fazer um gigantesco spoiler, o
máximo que podemos comentar é que o filme explora a possibilidade de o mundo
dos sonhos industrializados, de fato, nos dar a possibilidade de uma
segunda chance, de ser concedida a nós a oportunidade de sermos uma outra pessoa mais feliz e realizada. Quer dizer, se de fato as
fantasias da indústria do entretenimento podem transformar as nossas vidas ou
são, apenas, uma fantasia escapista que apenas nos afunda ainda mais na
realidade frustrante.
Por isso ficamos com a visão do
filósofo francês Jean Baudrillard sobre a Disneylândia:
“O imaginário da Disneylândia não é nem verdadeiro nem falso, é uma máquina de dissuasão encenada para regenerar no plano oposto a ficção do real. Daí a debilidade deste imaginário, a sua degenerescência infantil. O mundo quer-se infantil para fazer crer que os adultos estão noutra parte, no mundo ‘real’, e para esconder que a verdadeira infantilidade está em toda parte, e é a dos próprios adultos que vêm aqui fingir que são crianças para iludir a sua infantilidade real” (BAUDRILLARD, Jean. “Simulacros e Simulações. Lisboa: Relógio d’Água, 1991, p. 21.
O filme pode ser
adquirido pelo site da Amazon e também disponível em torrent na rede, assim como legendas em português. Sem data
prevista para distribuição no Brasil.
Ficha Técnica:
- Título: Escape From Tomorrow
- Diretor: Randy Moore
- Roteiro: Randy Moore
- Elenco: Roy Abramsohn, Elena Schuber, Katelyn Rodriguez, Jack Dalton.
- Produção: Mankurt Media
- Distribuição: Spotlight Pictures
- Ano: 2013
- País: EUA