O episódio da ironia incompreendida do texto da coluna de Antonio Prata no jornal Folha de São Paulo que arrancou
uma entusiasmada solidariedade de neoconservadores, revelou um mecanismo mais profundo no qual se baseia a
eficiência da ferramenta da simulação como arma para combater bombas
semióticas: tanto a pegadinha do falso estudante atrasado do Enem quanto a de Antonio Prata que simulou ter se convertido ao machismo, racismo e homofobia, têm como elemento comum aquilo que pesquisadores como Frederic Jameson apontam na cultura pós-moderna - a sensibilidade pastiche, paródia lacunar porque perdeu o
senso de humor, demonstrado em situações como essas quando leitores e repórteres se reconhecem refletidos na sua
própria caricatura.
Está comprovado. A estratégia da
simulação é a principal ferramenta para desarmar e neutralizar (desmoralizar)
as bombas semióticas que semanalmente estão explodindo no contínuo midiático
nacional. Na semana retrasada acompanhamos a simulação do estudante atrasado do
Enem que sem querer acabou desarmando e expondo à opinião pública o modus operandi de montagem das bombas
semióticas (pautas pré-estabelecidas e “hipóteses” definidas à espera de
fragmentos de eventos que se transformem em evidências por si mesmas).
Pois nessa última semana
acompanhamos a “pegadinha” do colunista do jornal Folha de São Paulo Antonio Prata: simulando ter se convertido
definitivamente aos argumentos neocons
(abreviação de “neoconservador”), escreveu uma coluna raivosa intitulada “Guinada
à Direita” onde denuncia uma suposta conspiração para “levar o País ao
abismo”, perpetrada por “gays, negros, índios, vândalos, maconheiros, comunistas,
aborteiros, feministas rançosas e velhos intelectuais da USP”. Prata fez um
texto que é praticamente um inventário dos principais clichês direitistas e neocons, com o mesmo estilo grosseiro e
raivoso.
A resposta de alguns leitores
foi espantosa: entusiasmado, o roqueiro Roger da banda Ultraje a Rigor congratulou o articulista pela coragem (pelos
“culhões”, para ser mais exato). E muitos outros leitores não entenderam o
texto ironicamente provocativo e repleto de frases neocons prontas, e passaram a fazer elogios entusiasmados: Sim! O
mundo está sendo dominado por gays, comunistas e feministas!
O surpreendente nessa história é
o motivo pelo qual os neocons não
entenderam a ironia: por que o próprio raciocínio da direita atual é retrofascista: um pastiche de fragmentos
de doutrinas, ideologias e discursos conservadores do passado, fragmentados e
reunidos em um raciocínio construído como uma colcha de retalhos.
Na verdade, Antônio Prata atirou
no que viu e acertou no que não viu: quis provocar a Direita, mas colocou a nu
o cerne da mentalidade neocon. Não
entenderam o texto porque o raciocínio deles é exatamente como o texto foi
construído: uma série de fragmentos de frases prontas e clichês cujas sinapses
são feitas por meio de teorias conspiratórias – não é à toa que a maioria dos
sites especializados em teorias de conspirações na Internet é ligado a grupos
conservadores, fascistas, neonazis e de Direita.
Por isso, dentro dessa série de
postagens sobre o monitoramento das bombas semióticas midiáticas atuais, temos
que entender duas novidades trazidas nesse episódio:
(a) a confirmação da simulação como ferramenta de
contra-ataque;
(b) o retrofascismo como um conceito que explica o mecanismo semiótico do
raciocínio não apenas neocon:
refletiria, na verdade, uma sensibilidade mais ampla que o pesquisador inglês
Frederic Jameson chamava de “pós-moderna” porque baseada no pastiche e na
esquizofrenia da cultura contemporânea.
Simulação paródica e da Fonte
Frederic Jameson: o pastiche é uma paródia que perdeu o senso de humor |
No caso da ironia má
compreendida da coluna de Antônio Prata, teríamos a simulação paródica: para Frederic Jameson, na paródia há uma
simulação das idiossincrasias e singularidades do original através do exagero e
do senso de humor. Reside na paródia uma norma cultural que se quer romper ou
criticar. Porém, essa forma de simulação transforma-se numa ferramenta poderosa
para a neutralização (desmoralização) como a que ocorreu com os leitores de
Prata: ocorre que no raciocínio pastiche dos neocons não há senso de humor, e tudo se torna literal. Isto é,
perderam o componente “meta” da linguagem e tudo é lido ao pé da letra, em seu
sentido literal. Acompanhemos essa passagem de Frederic Jameson para clarearmos
essa questão:
“O pastiche é, como na paródia, a imitação de um estilo singular ou exclusivo, a utilização de uma máscara estilística, uma fala em língua morta: mas a prática desse mimetismo é neutra, sem as motivações ocultas da paródia, sem o impulso satírico, sem a graça, sem aquele sentimento latente da qual ainda existe uma norma, em comparação com a qual aquilo que está sendo imitado é, sobretudo, cômico. O pastiche é paródia lacunar, paródia que perdeu o senso de humor” (JAMESON, Frederic. “Pós-Modernidade e Sociedade de Consumo” IN: Novos Estudos Cebrap, São Paulo, número 12, junho de 1985, p. 18).
O sintoma cultural do pastiche
Para Jameson o pastiche e o remake são verdadeiros sintomas
culturais que expressariam a maneira específica como o indivíduo pós-moderno
experimenta o espaço e o tempo. Jameson chama essa experiência especificamente
de esquizofrênica: as referências culturais de todas as épocas e signos
(símbolos, estilos e fragmentos culturais) tornam-se, assim, um estoque
aleatório de referencias que são pilhadas para formar verdadeiras colchas de
retalhos (pacthworks) ou colagens
estéticas sob uma roupagem de modernidade e inovação.
O caso do neoconservadorismo
atual parece refletir essa sensibilidade cultural abrangente expressa, por
exemplo, na arquitetura como nos prédios neoclássicos fake com pilastras em gesso colocadas ao lado de palmeiras para dar
um toque tropical e acabamento com esquadrias de alumínio. Seguindo a mesma
lógica, discursos sobre cidadania e de sustentabilidade convivem tranquilamente
com ataques às cotas de negros nas universidades; a defesa dos direitos humanos
e da igualdade se coloca ao lado das críticas ao Estado de bem estar social
como populista e assistencialista, e assim por diante; um roqueiro que faz nos
shows covers da banda punk Ramones e ao mesmo tempo defende uma
agenda política conservadora. O filósofo Peter Sloterdijk chamava esse fenômeno
de “cinismo esclarecido”: espécie de autodistanciamento irônico, onde todos
demonstram ter conhecimento de princípios ético e morais universais embora, na
prática, os neguem.
A ferramenta da ironia paródica
parece desmascarar publicamente esse cinismo, ao fazer os neocons incautos cometerem o ato falho de se revelarem.
Mas o mecanismo semiótico do
pastiche vai para além disso. Mesmo no campo das ideias conservadoras há o
fragmento sígnico. Por exemplo, o fenômeno do racismo, homofobia e xenofobia no
passado, pelo menos, era justificado ou inserido em um discurso doutrinário que
procurava dar um sentido histórico. O caso da doutrina da raça ariana como um
conjunto de seres humanos superiores e predestinados que seriam descendentes da
elite de seres da antiga Atlântida fez parte de um esforço (delirante) de dar
sentido a impulsos instintivos de destruição do outro. Os gastos que o Terceiro
Reich despendeu para enviar arqueólogos e antropólogos da SS para o Tibete no
Himalaia em busca de provas de que ali estavam os sobreviventes de Atlântida e
a prova da existência dos ancestrais dos arianos, foram esforços para tentar
racionalizar o preconceito e o ódio.
Banda "Massacration": outra paródia levada a sério pelos parodiados |
Consequências
O mecanismo semiótico do
pastiche, o fenômeno do retrofascismo e sua relação esquizofrênica com a História
e o tempo produz algumas consequências:
(a) a colcha de retalhos de
signos faz perder o nível “meta”, temporal, tornando tudo exagerado e clichê. A
sua repetição como farsa na atualidade é levada tão a sério ao ponto de se
perder o senso de humor da paródia. Um exemplo talvez distante da política, mas
que exemplifica esse mecanismo: a banda “Massacration”, paródia dos metaleiros posers criado no extinto programa Hermes e Renato da MTV passa a ser
levada a sério por metaleiros reais, chegando, inclusive, a abrir festivais do
estilo musical como mais uma atração: talvez por que eles sejam tão caricatos
quanto a caricatura e acabam, por isso, se reconhecendo nela;
(b) Esses comportamentos clichês
e saturados decorrentes do pastiche generalizado na cultura, produz um problema
sério para o Jornalismo: repórteres começam a acreditar que os acontecimentos
são sempre estrondosos, exagerados, aberrantes, bastando o jornalista abrir os
olhos e registrá-los. Rapidamente começa a se perder o “faro jornalístico”, o
instinto de achar que é necessário checar a fonte, pressentir armadilhas.
Comportamentos exagerados e copiosos de protagonistas de acontecimentos atraem
repórteres que, ingenuamente, podem cair em simulações na ansiedade de que esses
fatos confirmem pautas.
(c) entre a simulação da fonte e a simulação
paródica há um ponto comum: a caricatura e o exagero, sejam dos textos ou de
acontecimentos que tanto leitores como jornalistas passam a levar ao pé da
letra, porque perderam o senso de humor. Acreditam que a realidade é assim
mesma: clichê e exagerada. Por isso, a paródia está perdendo a graça para se
transformar em uma poderosa ferramenta de simulação.
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