quinta-feira, novembro 14, 2013

A bomba semiótica da "black bloc good-bad girl"


Dos elogios de Caetano Veloso nas páginas do jornal O Globo aos “lindos olhos amendoados” do anarquismo à capa da revista Época com “Dani Pantera”, temos a evidência de que mais uma bomba semiótica explode na opinião pública nacional: a bomba da “good-bad girl black bloc”. Uma bomba linguística de fragmentação semelhante às cluster bombs reais que explodem em pedaços com a finalidade de aumentar o número de vítimas em um campo de batalhas: no caso da bomba da good-bad girl, explode em fragmentos semióticos da “mitologização” e do “diversionismo”, vitimizando tanto à opinião pública quando os próprios black blocs que se julgam alvos de uma suposta conspiração midiática.

Parece haver um erro metodológico nas críticas sobre a forma como a mídia aborda os chamados black blocs. Segundo as críticas, as grandes emissoras de TV e revistas de circulação impressa como Veja, Época e jornais como O Globo tratariam os integrantes desse movimento como vândalos, baderneiros, criminosos, bandidos etc. O último lance dessa crítica seria a matéria da revista Época dessa semana que teria entrevistado a suposta liderança dos black blocs, Leonardo Morelli, que falou sobre o recebimento de verbas de ONGs nacionais e estrangeiras. A rápida reação dos integrantes do movimento nas redes sociais foi de perplexidade, críticas e opinião unânime: mais uma “globisse” para denegrir os black blocs.

Porém, saindo do campo textual e analisando o conjunto texto/imagem não só dessa matéria, mas de diversos veículos, temos uma mensagem exatamente contrária: glamourização, mitologização e até erotização da ação e dos personagens desse movimento – Caetano Veloso escrevendo loas sobre a foto de uma black bloc com “lindos olhos amendoados” (“o anarquismo é lindo”, concluiu), imagens de ativistas em ação nas ruas em fotos cuidadosamente escolhidas em composições míticas e heroicas etc. As críticas a forma como a grande mídia vê a ação desse movimento fica apenas na análise textual ou manifesta, esquecendo-se de perceber a embalagem dentro da qual essas matérias são vendidas, o aspecto latente ou subliminar.


Greta Garbo: a antiga mulher
vamp é desmontada para se
transformar
na "good-bad girl" atual
Como explicar essa contradição entre texto e imagem, conteúdo e embalagem (capa, fotos, legendas etc.), meio e mensagem? Essa aparente contradição só começa a fazer sentido se começamos a vê-las como bombas semióticasrecursos bélicos retóricos, linguísticos e semiológicos mobilizados para saturar fotografias, vídeos e textos com significações cujo objetivo é de se constituírem como relatos “jornalísticos” da instabilidade, caos e estado de pré-insurgência civil que dominaria atualmente a Nação. Essa dupla mensagem contraditória sobre os black blocs implica na construção de uma espécie de uma cluster bomb que se fragmenta em duas funções bem distintas:

(a) persuasiva com a construção de duas significações básicas: o black bloc como mitologia e como good-bad girl.

(b) diversionista com textos e imagens relatando black blocs protestando, criticando ou queimando para as câmeras exemplares de revistas como Veja e Época como forma de desagravo a uma suposta manipulação midiática.

Good-bad girls e black blocs


Duas capas, uma da revista Veja (23/08/2013) e outra da última edição de Época (10/11/2013) são representativas dessa estratégia de significação: primeiro, ao destacar o personagem feminino e, segundo, por caracterizá-lo como o clichê da good-bad girl.

O pesquisador alemão Dieter Prokop descreve a forma como a mulher foi construída no cinema desde a sua fase pré-monopolista nas décadas de 1910 e 1920. Ela era uma figura problemática: era a mulher vamp (mulher fatal). Nos filmes era representada na profissão, autônoma, arruinava-se a si mesma e levava os homens à destruição através da sua sensualidade, como bem representou o mito de Greta Garbo. Ao contrário, a partir dos produtos cinematográficos de monopólio a partir dos anos 1930 temos um novo tipo de mulher: a good-bad girl (garota boa-má), uma combinação de signos que jamais seria possível na realidade. Há um processo de desmanche do antigo estereótipo da mulher vamp, onde os pedaços dos filmes antigos (esquemas, sequências etc.) são juntados. A mulher vamp, com personalidade forte, é, no cinema moderno, tão má como a antiga, mas no decorrer da narrativa transforma-se, reconciliando-se com o mundo - veja MARCONDES FILHO, Ciro. Dieter Prokop, coleção grandes cientistas sociais. São Paulo: Ática, 1987.

A good-bad girl fascina pela sua loucura, sensualidade e aparente desajustamento, mas no fim descobrimos que podemos levá-la para casa e apresentarmos às nossas mães. Personagem ambíguo e polissêmico, o grande exemplo é a vilã do filme de Adrian Lyne “Atração Fatal” (1987) onde Glenn Close faz uma aparente mulher fatal clássica (independente, sensual e má) que seduz um pai de família (Michel Douglas) e ameaça levá-lo à destruição. Ao longo da estória, descobrimos qual a motivação de tanta maldade: ela inveja a felicidade da família de Douglas e, solitária, que ter a sua própria, porém usando um método moralmente errado – chantagem e sexo. No fundo, ela quer ter uma família como qualquer outra mulher e tem até boas intenções...

Os personagens das “musas black bloc” Emma e Dani Pantera, respectivamente construídos pela revista Veja e Época, obedecem essa construção linguística polissêmica que permite múltiplas identificações: o lado mau (fugir de casa para morar em favela, ex-presidiária, roupa preta, olhar desafiador, depredadora de vitrinas de bancos) instiga o fascínio pela combinação da sensualidade perigosamente fatal; enquanto o lado bom (namoradeira, mãe preocupada com seus filhos e com o futuro do País) reconcilia o personagem com a realidade: elas também estão cansadas “de tudo que está aí”. No caso particular da personagem “Dani Pantera” tem o elemento “moradora da periferia e favelada do Capão Redondo” que reforça o lado bad, mas o seu sex appeal de uma foto sob o vão livre do MASP confere uma familiariade de classe média – o lado good.

Acima à esquerda: Miss Atomic Bomb 1957.
Acima à direita: oficial afegã em exposição
fotográfica nos EUA.  Abaixo: o nome Gilda,
personagem de Rita Hayworth, pintado
em uma bomba nuclear.
A utilização de good-bad girls na propaganda política é uma das estratégias semióticas mais manjadas na história das conexões entre mídia e política. Desde que a personagem Gilda, do filme homônimo estrelado por Rita Hayworth em 1946, foi utilizada para nomear a bomba nuclear que seria testada no atol de Bikini no oceano Pacífico, a exploração do erotismo feminino como estratégia de engenharia de relações públicas passou a ser comum na propaganda política.

Lee Merlin vestindo um maiô na forma de um cogumelo nuclear (a Miss Atomic Bomb de 1957) fotografada na área de testes nucleares; o próprio biquíni, criado pelo estilista francês Louis Réard, como referência a área de testes nucleares do atol de Bikini; mulheres afegãs e norte-americanas apresentadas como heroínas sensuais na guerra do Afeganistão (invadido pelos EUA como resposta aos atentados de 11 de setembro) mostradas em exposições fotográficas patrocinadas pela propaganda governamental, são alguns exemplos dessa estratégia sistemática: tornar determinada agenda aceitável para a opinião pública por meio do sex-appeal ambíguo da garota boa-má.

Quando essas revistas realmente pretendem criminalizar grupos ou movimentos, apelam para o clichê narrativo do “feios, sujos e malvados”: o olhar de baixo para cima (de uma pessoa ao mesmo tempo culpada e desafiadora), olhos ameaçadores e esbugalhados, barbas, figuras masculinas mal vestidas, fotografias em preto e branco, fortes contrastes de claro e escuro, luz e sombra. É assim com líderes sindicais, muçulmanos, traficantes, assassinos, acusados no julgamento do mensalão etc.

Mitologização e diversionismo


É claro que essa bomba semiótica é direcionada para a opinião pública, e não para a dos próprios Black blocs. A reação deles é naturalmente de crítica e ódio contra a “manipulação midiática” para “denegri-los”. Queimar exemplares dessas revistas para as câmeras reverte-se, ironicamente, a favor daquilo que tentam criticar: transforma-se em estratégia de diversionismo ao desviar o foco de atenção da saturação linguística da estratégia good-bad girl para uma suposta conspiração para criminalizá-los.

Mesmo mascarados, os black blocs são
individualizados
e personalizados dentro da estratégia
midiática de mitologização
Uma foto de capa de revista visivelmente posada e bem produzida (no vão livre do MASP, embora “Dani Pantera” seja moradora da periferia de São Paulo), deveria inspirar na opinião pública uma impressão de saturação e artificialismo. Porém, a estratégia de diversionista (destacar as reações raivosas dos black blocs) acaba conferindo um significado “jornalístico” a uma estratégia que é pura propaganda.

O destaque aos desagravos dos black blocks abre para um terceiro mecanismo de bomba semiótica: a mitologização. Para o semiólogo francês Roland Barthes, as mitologias modernas seriam uma fala ou mensagem que pertence a um sistema semiológico parasitário e extensivo a um primeiro sistema (fotografia, pintura, cartaz, rito, objeto etc.) que passa a ser dominado por ela, atribuindo-lhe um novo significado estereotipado e arbitrário e que deforma o sentido original. Esse novo signo criado é consumido pelos receptores como um sentido inato e harmônico, encobrindo-se a operação semiológica arbitrária que lhe deu origem.

Em uma amostragem aleatória de 400 fotos do Google Imagem, pode-se chegar a uma porcentagem de quase 70% de fotos que tendem a individualizar os black blocs – composições de imagens que privilegiam o indivíduo ao invés do grupo. Composições em contra-plongee (ponto de vista de baixo para cima por diversos ângulos de inclinação que retoricamente atribui uma conotação heroica e idealista) alcançam um número significativo em torno de 30% .

Esse princípio metonímico da parte substituir o todo (ou o indivíduo no lugar do grupo) é até um princípio jornalístico da definição de “notícia”: o drama individual é mais atraente do que uma calamidade coletiva. Com isso, criam-se os clichês da mitologização do coletivo – casais que demonstram ternura em meio aos quebra-quebras, o indivíduo diante forças visualmente maiores que ele (massa de escudos da polícia de choque, enormes labaredas das chamas etc. – quem não se lembra da imagem de um indivíduo parando uma coluna de tanques nos protestos da Praça da Paz Celestial na China em 1989, eleito pela revista Time uma das imagens mais marcantes do século XX).

Mas o que finalmente concretiza a mitologia é a sua dessimbolização: além da individualização e personalização, o esvaziamento simbólico – nas fotografias há um privilégio no registro das ações (agressões, depredações, confrontos etc.) do que na focalização nos símbolos de identificação ideológica, seja anarquista, comunista, anti-globalização etc.

O duplo vínculo contraditório dessa bomba semiótica comprova a forma como a mídia vê os black blocs, com um misto de condenação e fascínio. Mais uma evidência que se soma a uma impressão de que a atmosfera política ficará ainda pior para o próximo ano. Principalmente depois da ameaçadora profecia de Marina Silva de que “as manifestações voltarão em 2014 e colocarão as coisas no lugar”.

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