Dos elogios de Caetano
Veloso nas páginas do jornal O Globo
aos “lindos olhos amendoados” do anarquismo à capa da revista Época com “Dani
Pantera”, temos a evidência de que mais uma bomba semiótica explode na opinião
pública nacional: a bomba da “good-bad girl black bloc”. Uma bomba linguística
de fragmentação semelhante às cluster bombs reais que explodem em pedaços com a finalidade de aumentar o número de
vítimas em um campo de batalhas: no caso da bomba da good-bad girl, explode em fragmentos semióticos da “mitologização”
e do “diversionismo”, vitimizando tanto à opinião pública quando os próprios black blocs
que se julgam alvos de uma suposta conspiração midiática.
Parece haver um erro metodológico
nas críticas sobre a forma como a mídia aborda os chamados black blocs. Segundo
as críticas, as grandes emissoras de TV e revistas de circulação impressa como Veja, Época e jornais como O Globo
tratariam os integrantes desse movimento como vândalos, baderneiros,
criminosos, bandidos etc. O último lance dessa crítica seria a matéria da
revista Época dessa semana que teria
entrevistado a suposta liderança dos black blocs, Leonardo Morelli, que falou
sobre o recebimento de verbas de ONGs nacionais e estrangeiras. A rápida reação
dos integrantes do movimento nas redes sociais foi de perplexidade, críticas e
opinião unânime: mais uma “globisse” para denegrir os black blocs.
Porém, saindo do campo textual e
analisando o conjunto texto/imagem não só dessa matéria, mas de diversos
veículos, temos uma mensagem exatamente contrária: glamourização, mitologização
e até erotização da ação e dos personagens desse movimento – Caetano Veloso
escrevendo loas sobre a foto de uma black bloc com “lindos olhos amendoados”
(“o anarquismo é lindo”, concluiu), imagens de ativistas em ação nas ruas em fotos
cuidadosamente escolhidas em composições míticas e heroicas etc. As críticas a
forma como a grande mídia vê a ação desse movimento fica apenas na análise
textual ou manifesta, esquecendo-se de perceber a embalagem dentro da qual
essas matérias são vendidas, o aspecto latente ou subliminar.
Greta Garbo: a antiga mulher vamp é desmontada para se transformar na "good-bad girl" atual |
Como explicar essa contradição
entre texto e imagem, conteúdo e embalagem (capa, fotos, legendas etc.), meio e
mensagem? Essa aparente contradição só começa a fazer sentido se começamos a
vê-las como bombas semióticas – recursos bélicos retóricos, linguísticos e semiológicos mobilizados
para saturar fotografias, vídeos e textos com significações cujo objetivo é de
se constituírem como relatos “jornalísticos” da instabilidade, caos e estado de
pré-insurgência civil que dominaria atualmente a Nação. Essa
dupla mensagem contraditória sobre os black blocs implica na construção de uma
espécie de uma cluster bomb que se
fragmenta em duas funções bem distintas:
(a) persuasiva com a construção de duas significações básicas: o black
bloc como mitologia e como good-bad girl.
(b) diversionista com textos e imagens relatando black blocs
protestando, criticando ou queimando para as câmeras exemplares de revistas
como Veja e Época como forma de desagravo a uma suposta manipulação midiática.
Good-bad girls e black blocs
Duas capas, uma da revista Veja (23/08/2013) e outra da última
edição de Época (10/11/2013) são
representativas dessa estratégia de significação: primeiro, ao destacar o
personagem feminino e, segundo, por caracterizá-lo como o clichê da good-bad girl.
O pesquisador alemão Dieter
Prokop descreve a forma como a mulher foi construída no cinema desde a sua fase
pré-monopolista nas décadas de 1910 e 1920. Ela era uma figura problemática:
era a mulher vamp (mulher fatal). Nos
filmes era representada na profissão, autônoma, arruinava-se a si mesma e
levava os homens à destruição através da sua sensualidade, como bem representou
o mito de Greta Garbo. Ao contrário, a partir dos produtos cinematográficos de
monopólio a partir dos anos 1930 temos um novo tipo de mulher: a good-bad girl (garota boa-má), uma
combinação de signos que jamais seria possível na realidade. Há um processo de
desmanche do antigo estereótipo da mulher vamp,
onde os pedaços dos filmes antigos (esquemas, sequências etc.) são juntados. A
mulher vamp, com personalidade forte,
é, no cinema moderno, tão má como a antiga, mas no decorrer da narrativa
transforma-se, reconciliando-se com o mundo - veja MARCONDES FILHO, Ciro. Dieter Prokop, coleção grandes cientistas sociais. São Paulo: Ática, 1987.
A good-bad girl fascina pela sua loucura, sensualidade e aparente
desajustamento, mas no fim descobrimos que podemos levá-la para casa e apresentarmos
às nossas mães. Personagem ambíguo e polissêmico, o grande exemplo é a vilã do
filme de Adrian Lyne “Atração Fatal” (1987) onde Glenn Close faz uma aparente
mulher fatal clássica (independente, sensual e má) que seduz um pai de família
(Michel Douglas) e ameaça levá-lo à destruição. Ao longo da estória,
descobrimos qual a motivação de tanta maldade: ela inveja a felicidade da família
de Douglas e, solitária, que ter a sua própria, porém usando um método
moralmente errado – chantagem e sexo. No fundo, ela quer ter uma família como
qualquer outra mulher e tem até boas intenções...
Os personagens das “musas black
bloc” Emma e Dani Pantera, respectivamente construídos pela revista Veja e Época, obedecem essa construção linguística polissêmica que permite
múltiplas identificações: o lado mau (fugir de casa para morar em favela,
ex-presidiária, roupa preta, olhar desafiador, depredadora de vitrinas de
bancos) instiga o fascínio pela combinação da sensualidade perigosamente fatal;
enquanto o lado bom (namoradeira, mãe preocupada com seus filhos e com o futuro
do País) reconcilia o personagem com a realidade: elas também estão cansadas
“de tudo que está aí”. No caso particular da personagem “Dani Pantera” tem o
elemento “moradora da periferia e favelada do Capão Redondo” que reforça o lado
bad, mas o seu sex appeal de uma foto sob o vão livre do MASP confere uma
familiariade de classe média – o lado good.
Acima à esquerda: Miss Atomic Bomb 1957. Acima à direita: oficial afegã em exposição fotográfica nos EUA. Abaixo: o nome Gilda, personagem de Rita Hayworth, pintado em uma bomba nuclear. |
A utilização de good-bad girls na propaganda política é
uma das estratégias semióticas mais manjadas na história das conexões entre
mídia e política. Desde que a personagem Gilda, do filme homônimo estrelado por
Rita Hayworth em 1946, foi utilizada para nomear a bomba nuclear que seria
testada no atol de Bikini no oceano Pacífico, a exploração do erotismo feminino
como estratégia de engenharia de relações públicas passou a ser comum na
propaganda política.
Lee Merlin vestindo um maiô na
forma de um cogumelo nuclear (a Miss
Atomic Bomb de 1957) fotografada na área de testes nucleares; o próprio
biquíni, criado pelo estilista francês Louis Réard, como referência a área de
testes nucleares do atol de Bikini; mulheres afegãs e norte-americanas
apresentadas como heroínas sensuais na guerra do Afeganistão (invadido pelos
EUA como resposta aos atentados de 11 de setembro) mostradas em exposições
fotográficas patrocinadas pela propaganda governamental, são alguns exemplos
dessa estratégia sistemática: tornar determinada agenda aceitável para a
opinião pública por meio do sex-appeal
ambíguo da garota boa-má.
Quando essas revistas realmente
pretendem criminalizar grupos ou movimentos, apelam para o clichê narrativo do
“feios, sujos e malvados”: o olhar de baixo para cima (de uma pessoa ao mesmo
tempo culpada e desafiadora), olhos ameaçadores e esbugalhados, barbas, figuras
masculinas mal vestidas, fotografias em preto e branco, fortes contrastes de
claro e escuro, luz e sombra. É assim com líderes sindicais, muçulmanos,
traficantes, assassinos, acusados no julgamento do mensalão etc.
Mitologização e diversionismo
É claro que essa bomba semiótica
é direcionada para a opinião pública, e não para a dos próprios Black blocs. A
reação deles é naturalmente de crítica e ódio contra a “manipulação midiática”
para “denegri-los”. Queimar exemplares dessas revistas para as câmeras
reverte-se, ironicamente, a favor daquilo que tentam criticar: transforma-se em estratégia de
diversionismo ao desviar o foco de atenção da saturação linguística da
estratégia good-bad girl para uma
suposta conspiração para criminalizá-los.
Mesmo mascarados, os black blocs são individualizados e personalizados dentro da estratégia midiática de mitologização |
Uma foto de capa de revista
visivelmente posada e bem produzida (no vão livre do MASP, embora “Dani
Pantera” seja moradora da periferia de São Paulo), deveria inspirar na opinião
pública uma impressão de saturação e artificialismo. Porém, a estratégia de
diversionista (destacar as reações raivosas dos black blocs) acaba conferindo um
significado “jornalístico” a uma estratégia que é pura propaganda.
O destaque aos desagravos dos black
blocks abre para um terceiro mecanismo de bomba semiótica: a mitologização.
Para o semiólogo francês Roland Barthes, as mitologias modernas seriam uma fala ou mensagem que pertence a um
sistema semiológico parasitário e extensivo a um primeiro sistema (fotografia,
pintura, cartaz, rito, objeto etc.) que passa a ser dominado por ela,
atribuindo-lhe um novo significado estereotipado e arbitrário e que deforma o
sentido original. Esse novo signo criado é consumido pelos receptores como um
sentido inato e harmônico, encobrindo-se a operação semiológica arbitrária que
lhe deu origem.
Em uma
amostragem aleatória de 400 fotos do Google Imagem, pode-se chegar a uma
porcentagem de quase 70% de fotos que tendem a individualizar os black blocs –
composições de imagens que privilegiam o indivíduo ao invés do grupo.
Composições em contra-plongee (ponto
de vista de baixo para cima por diversos ângulos de inclinação que
retoricamente atribui uma conotação heroica e idealista) alcançam um número significativo
em torno de 30% .
Esse princípio metonímico da
parte substituir o todo (ou o indivíduo no lugar do grupo) é até um princípio
jornalístico da definição de “notícia”: o drama individual é mais atraente do
que uma calamidade coletiva. Com isso, criam-se os clichês da mitologização do
coletivo – casais que demonstram ternura em meio aos quebra-quebras, o indivíduo
diante forças visualmente maiores que ele (massa de escudos da polícia de
choque, enormes labaredas das chamas etc. – quem não se lembra da imagem de um
indivíduo parando uma coluna de tanques nos protestos da Praça da Paz Celestial
na China em 1989, eleito pela revista Time uma das imagens mais marcantes do
século XX).
Mas o que finalmente concretiza
a mitologia é a sua dessimbolização: além da individualização e personalização,
o esvaziamento simbólico – nas fotografias há um privilégio no registro das
ações (agressões, depredações, confrontos etc.) do que na focalização nos
símbolos de identificação ideológica, seja anarquista, comunista,
anti-globalização etc.
O duplo vínculo contraditório
dessa bomba semiótica comprova a forma como a mídia vê os black blocs, com um
misto de condenação e fascínio. Mais uma evidência que se soma a uma impressão
de que a atmosfera política ficará ainda pior para o próximo ano.
Principalmente depois da ameaçadora profecia de Marina Silva de que “as
manifestações voltarão em 2014 e colocarão as coisas no lugar”.