A partir do bombástico lançamento do
Windows 95, tivemos o crescimento especulativo das potencialidades da Internet
e das tecnologias computacionais. Paralelo a isso, o crescimento das técnicas
motivacionais e de auto-ajuda explicitamente inspirados em modelos de
programação de computadores. Em 2.000 tivemos a quebra das empresas “ponto com” e
da bolsa Nasdaq e, com isso, a desaceleração de toda uma ciberutopia. Os filmes
gnósticos refletem essa mudança com a crise do "modelo Matrix" de gnosticismo pop
e a mudança na busca da gnose, cada vez mais focada em conflitos internos do
protagonista.
Para o historiador francês Marc Ferro todo filme é um documento porque
representaria o imaginário de uma determinada sociedade ou período histórico:
"o imaginário é tanto história quanto História, mas o cinema,
especialmente o cinema de ficção, abre um excelente caminho em direção aos
campos da história psicossocial nunca atingidos pela análise dos
documentos" Não importa se o filme refere-se a um passado remoto ou
imediato, pois sempre vai além do seu conteúdo.
Fortemente conectado com o imaginário social deste final e início de
novo século, a produção cinematográfica atual, em particular a norte-americana,
refletiria não apenas o imaginário tecnológico transcendentalista como, também,
questões existenciais, éticas e espirituais decorrentes de tal imaginário.
Percebe-se uma nítida alteração temática nos filmes gnósticos na
passagem de final de século para início de novo século. Os anos de 1999-2000
marcam uma mudança da representação da irrealidade do mundo no qual o
protagonista vive.
No primeiro período (1995-1999) temos um mundo simulado por poderosas
tecnologias onipresentes e oniscientes, capazes de criar uma contrafação da
realidade tão perfeita que se confunde com o original, pelos menos para a
percepção dos protagonistas. Temos nessa primeira fase a clássica narrativa
gnóstica de um mundo criado por um Demiurgo (a tecnologia) para aprisionar
seres humanos. A narrativa apresenta um caráter maniqueísta (no sentido
atribuído às narrativas gnósticas de Mani) e vemos um explícito e dramático
confronto do humano contra uma divindade enlouquecida pelo poder espiritual e
tecnológico.
A construção do "modelo Matrix"
Em "O Quarto Poder" (Mad City, 1997) vemos toda
uma supra-realidade criada pelo circo midiático envolta de um seqüestro
involuntário que aprisiona o protagonista. O filme salienta o poder tecnológico
onisciente e onipresente da mídia versus a inocência e pureza do protagonista,
seduzido pelo caráter meta dos monitores de TV colocados no interior do próprio
palco das ações (Sam via-se a si próprio no museu onde mantinha os reféns).
"Show
de Truman" (Truman Show, 1998) reforça essa visão da tecnologia
midiática, capaz de simular um mundo para criar um novo Adão. Explicitamente
inspirado na expriência tecnognóstica do Projeto Biosfera 2 (O projeto consistiu em
colocar em imensos hangares de vidros, erguidos numa área cm Tucson, no deserto
do Arizona, quatro homens e quatro mulheres, 3.800 espécies animais e vegetais
e simulações dos cinco principais biomas do planeta Terra. Lá ficaram durante
dois anos monitorados por dois mil sensores eletrônicos e assistidos por 600 mil
pagantes), esse filme é um nítido exemplo da representação do imaginário
tecnológico utópico e transcendentalista de final de século.
Em "A Vida em Preto e Branco" (Pleasantville,
1998) o poder, não exatamente tecnológico, mas mágico do Sr. Técnico de TV transporta
os protagonistas para uma série de TV dos anos 50, um microcosmo de simulação
da realidade perfeita de adãos e evas midiáticos. Indiretamente, "Vidas
em Jogo" (The Game, 1997)vai tocar nesse mesmo tema ao
apresentar uma empresa com tal onipotência e onisciência tecnológica que é
capaz de interferir nas transmissões de TV abertas (fazendo a programação
interagir com o protagonista) e produzir uma espécie de jogo que também
interage com a vida real.
O "modelo Matrix" de gnosticismo em"O Décimo Terceiro Andar |
Matrix e o "Décimo Terceiro Andar" (The
Thirteenth Floor, 1999) explicitamente representam o imaginário
tecnognóstico de final de século. Aproximam tecnociência e misticismo ao
apresentarem a tecnologia computacional como mediação possível para a
transcendência espiritual. A metáfora das unidades autônomas e autodidatas que
passam a ganhar consciência nos mundos simulados e a possibilidade dessa consciência
transcender de um mundo simulado inferior para um superior são, explicitamente,
tecnognósticas. Em ambos os filmes vemos criadores de simulações que se tornam
Demiurgos inebriados pelo poder que, novamente, procuram extrair de seus
prisioneiros a inocência ou energia de novos “adãos”.
O evidente simbolismo gnóstico maniqueo é "Cidade das Sombras" (Dark City, 1998). Novamente demiurgos (dessa vez uma raça alienígena)
aprisionam humanos em uma cidade-laboratório para buscar neles a essência da
alma humana. A cidade é uma gigantesca cenografia recriada a partir de
fragmentos das memórias humanas de todas as épocas, assim como a Seaheaven de
Show de Truman é a cópia da cópia da imagerie publicitária.
Embora sem referência explícita ao universo tecnológico, "Quero
Ser John Malkovich" (Being John Malkovich, 1999) é uma
verdadeira parábola dos destinos das identidades que buscam mediações ou
avatares, representados pela figuras das marionetes e do interior da cabeça de
John Malkovich. É o contexto midiático-tecnológico formado pela busca da fama
(somente pode se ficar 15 minutos na cabeça de Malkovich, irônica referência a
frase célebre de Andy Warhol sobre a fama) e da identidade por meio de avatares
em ambientes virtuais como Second Life.
A Crise do "Modelo Matrix"
O chamado “modelo Matrix” de gnosticismo pop parece se encerrar em 1999
com o próprio filme Matrix. Em 2000 temos a desaceleração da euforia utópica em
relação às tecnologias computacionais com a quebradeira das empresas “ponto
com” e a revelação de que a maioria dessas empresas jamais dera lucro e de que
o modelo utópico de uma internet com potencial socializante dentro do
capitalismo estava com seus dias contados . Segundo Erik Davis, temos uma perda
da euforia tecnocultural:
“O colapso da bolha das ‘ponto com’ pôs os visionários de volta para suas confortáveis casas, e esse ‘retorno ao real’ foi cimentado ainda pelo 11 de setembro. Euforia utópica e a vertigem pós-humana são out; estabilidade e valores familiares são in. Ao invés da ambição pela dissolução das fronteiras, vemos, pelo menos na política americana, a restauração da ansiedade pela defesa das fronteiras: nação, propriedade intelectual, religião cristã”. (DAVIS, Erik, Techgnosis: myth, Magic and mysticism in the age of information. London: Serpents Tail, 2004, p. 400).
"Amnésia" (2000): a busca interior da gnose |
Simultaneamente, a partir de Amnésia (Memento,
2000), apesar de Clube da Luta de 1999 já ser um prenuncio,
temos uma alteração quanto à natureza do mundo ilusório no qual o protagonista
é prisioneiro. Agora, a origem está na mente do próprio protagonista. O mundo
ilusório pode ser resultante de uma desordem neurológica ou psíquica (perda das
memórias de curto prazo como em Amnésia ou a esquizofrenia em Identidade – Identity,
2003), conflitos interiores (o sentimento de culpa como em A Passagem – Stay,
2005), poderes extra-sensoriais (como o dom da ubiqüidade espaço-temporal em Donnie
Darko, 2001) ou o mergulho em um mundo interior de memórias tal como em
Vanilla Sky (2001) e Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças (Eternal
Sunshine of the Spotless Mind, 2004).
A importância (ou o temor) simbólica das novas tecnologias e dos mundos
simulados parece deflacionar. Esse movimento de “retorno ao real” parece também
atingir os filmes gnósticos. Se, como Erik Davis observou, o gnosticismo pop do
“modelo Matrix” trazia uma reinterpretação paradoxal do gnosticismo (enquanto
no gnosticismo o mundo a ser transcendido é o material, no cinema o mundo que
aprisiona o homem é o das mediações, das simulações, e a transcendência é o
retorno à realidade física), após ano 2000 temos nos filmes gnósticos um
retorno a uma visão mais próxima do conceito de gnose: como salvação individual
e transformação íntima. Toda a narrativa mítica gnóstica (Queda e Ascensão) é
transposta para o interior do protagonista na procura do eu oculto aprisionado
que foi e que ainda é parte da Plenitude.
Embora em todos os filmes gnósticos esteja presente o tema da fé em si
mesmo (o que se opõe ao catolicismo onde a fé somente pode ser em Deus), somente
após o ano 2000 temos um aprofundamento desse aspecto da gnose. No modelo
Matrix a “fé em si mesmo” é tratada de forma rápida, próxima à filosofia de
auto-ajuda (libertar-se dos medos ou das limitações pessoais). Embora os mundos
simulados tecnologicamente sejam a prisão do protagonista, a tecnologia assume
um papel importante para essa libertação: a tecnologia da simulação que produz
consciência e transcendência em O Décimo Terceiro Andar ou os
jogos de simulação de lutas em Matrix que ajudam Neo a superar seus medos e
libertar a consciência.
Ao contrário, a safra dos filmes gnósticos pós-2000 apresentam essas
verdadeiras “tecnologias do espírito” de forma crítica chegando até ser
ridicularizadas. Elas não só são impotentes para possibilitar a reforma íntima,
mas constituem-se em verdadeiros Arcontes ou Demiurgos que aprisionam o
protagonista. A impotência dos psiquiatras em "A Passagem" e "Identidade"",
a perplexidade da terapeuta e a pedofilia do autor de livros de auto-ajuda em Donnie
Darko, a manipulativa forma terapêutica de apagamento de memórias em Brilho
Eterno de Uma Mente Sem Lembranças, o fracasso da tecnologia da empresa que
vende “sonhos lúcidos” por não prever a irrupção do inconsciente em seu cliente
no filme "Vanilla Sky".
A crítica apresentada a essas “tecnologias do
espírito” lembra as advertências de Mani de evitar as tentações consoladoras da
religião e do hedonismo como formas anestésicas de combater a melancolia. Em Donnie
Darko os seguidores do pedófilo escritor de auto-ajuda são apresentados
quase como fanáticos religiosos e a técnica de apagar memórias em Brilho Eterno
é, na verdade, uma forma de eliminar sentimentos de culpas para o cliente viver
a vida de forma hedonista.
Como já apresentou Sfez (Thomas Sfez, Crítica da Comunicação,
São Paulo: Loyola, 2000) , essas “tecnologias do espírito” possuem uma secreta
aliança com as novas tecnologias computacionais ao comparar o psiquismo humano
a um software, o cérebro a um hardware e a interioridade humana como uma máquina
expressiva governada pelo mesmo princípio das redes telemáticas: rede,
paradoxo, simulação e interação. Estas “tecnologias do Eu” chegam na crista da
onda eufórica em relação à Internet e às tecnologias computacionais e de
simulação. Aparentemente, as críticas em relação às tecnologias do espírito nos
filmes gnósticos pós-2000 se alinham ao refluxo dos sonhos utópicos
tecnocientíficos.
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