sexta-feira, março 16, 2012

Uma Estranha Distopia no Filme "O Homem Que Incomoda"

É uma alegoria religiosa? Uma declaração política? Um filme de horror e fantástico? Ou uma sátira surrealista sobre a superficialidade da sociedade de consumo? Certamente é tudo isso, o que torna o filme norueguês “O Homem Que Incomoda” (Den Brysomme Mannen, 2006) uma estranha distopia: um homem sem memórias preso em uma espécie de mundo alternativo que, de tão perfeito e correto, a comida não tem sabor ou cheiro e o álcool não embriaga. Não temos o tom de crítica política explícita sobre estados totalitários como em livros ou filmes como “1984” ou “THX 1138”. Mas presenciamos o esgarçamento da noção de realidade ao representá-la como algo fabricado, artificial e essencialmente corrompido (um simulacro), como uma armadilha cósmica criada por alguém que não nos ama. O resultado do ardil de alguma divindade maquiavélica.

Com seu terno amarrotado, despenteado barba e boné de beisebol puxado para baixo sobre os olhos, Andreas Ramsfjellf (Trond Fausa Aurvaag) desembarca de um ônibus em um posto de gasolina em ruínas no meio do nada. Ele não lembra como veio parar ali e quem ele é. Ao chegar é saudado por um estranho sob uma faixa estendida escrito "Bem Vindo". O estranho leva Andreas em um carro, passando por arredores rochosos e áridos até chegar a uma cidade nas cercanias de um verde luxuriante, onde os casais felizes jogam badminton e todos sorriem e passam o tempo discutindo sobre consumo e decoração. O estranho entrega para Andreas as chaves do seu novo apartamento e o endereço do seu novo emprego.

Tudo sobre a vida nova Andreas parece perfeito, mas durante a sua hora de almoço, ele começa a sentir que algo não está certo. Ninguém parece notar um homem morto, brutalmente empalado pelas grades da cerca de um prédio. Os transeuntes passam indiferentes diante do sangrento cenário, enquanto calmamente o corpo é removido por estranhos agentes que nunca demonstram emoções.

Naquela noite em um bar, Andreas percebe que não importa o quanto ele consuma bebidas alcoólicas: ele permanece sempre sóbrio.  Alimentos não têm qualquer gosto ou cheiro. No dia seguinte no trabalho, Andreas submete-se a um impulso perverso de enfiar o dedo em uma máquina trituradora de papéis. Seus colegas de trabalho reagem com uma estranha calma. Quando volta a si, Andreas percebe que o dedo de alguma forma foi recolocado no lugar e está completamente curado. 


Com desconfiança e paranoia crescentes Andreas retorna ao posto de gasolina abandonado e tenta seguir um ônibus recém-chegado de volta para fora do deserto. Descobre que o ônibus simplesmente some em um rastro de poeira e as marcas de pneus na areia simplesmente desaparecem. Que estranho lugar é esse e por que Andreas está ali?

Curiosamente essas questões não são respondidas, mas percebemos que a cidade para onde Andreas foi levado tem uma estranha atmosfera opressiva de onde o protagonista não consegue fugir, nem através de tentativas de suicídio. Um mundo totalmente desprovido de individualidade, sensualidade e interesse. Não há música, o sexo é superficial e sem alma, e as conversas giram inevitavelmente sobre design e interiores. 

Qualquer disfuncionalidade ou acidente é imediatamente resolvido pelos estranhos agentes trajando jaquetas cinzas. Percebemos que há uma espécie de “governança” nessa cidade onde autômatos funcionários públicos certificam-se de que tudo esteja funcionando bem: pessoas acidentadas, mortas ou que, simplesmente, estejam disfuncionais ao ambiente são recolhidas para um carro e levadas para um lugar não identificado. 

Prédios, objetos, ruas e roupas parecem desprovidos de textura. Tudo parece liso e brilhante, ou seja, sem alma e vida.

Definitivamente, Andreas não consegue adaptar-se: é o único que aspira a emoções e sabores. Ela trás aspirações de uma outra existência da qual não consegue lembrar. Tenta escapar da cidade, mas logo descobre ser impossível. Andreas acaba encontrando uma outro pessoa chamada Hugo com as mesmas aspirações. No porão de um prédio descobrem uma rachadura na parede de onde sai uma estranha e maravilhosa música. O que há do outro lado? Começam a escavar na parede na última e desesperada tentativa de encontrar uma outra realidade além daquela.

Esta é a sinopse desse instigante filme “O Homem que Incomoda” ganhador do prêmio ACID – Agência de Difusão do Cinema Independente – em Cannes). Dentro da categorização que Eric Wilson apresenta no seu livro sobre gnosticismo no cinema (Secret Cinema: gnosticism in film), esse filme é daqueles que têm um “sabor gnóstico”: não apresenta propriamente simbolismos, iconografias ou narrativas explicitas de elementos do gnosticismo, como o fazem filmes como Matrix (Matrix, 199), A passagem (Stay, 2005) ou Show de Truman (The Truman Show, 1998). 

Mas possui o ponto de partida da “atmosfera gnóstica”: a desconfiança de que a realidade é falsa, um mero “constructo”. Essa desconfiança vai levar o protagonista aos estados de paranoia, melancolia ou suspensão, condições psicológicas que propiciam a gnose."O Homem que incomoda" trás uma novidade: é um dos raros filmes europeus (o filme é uma co-produção Islândia/Noruega) a abordar essa temática metafísica. Em geral no cenário cinematográfico europeu ou temos uma crítica social ou política ou filmes sobre o “humano, demasiado humano” (narrativas que versam sobre impasses éticos, morais ou dúvidas existenciais sobre “o sentido da vida”). Ao contrário, temos neste filme uma verdadeira crítica metafísica: a realidade é negada in totum e, a única forma de escapar é negá-la (no filme representada pela possibilidade de fuga por meio de uma fresta na parede do porão).


O que torna a narrativa a descrição de uma estranha distopia: não temos o tom de crítica política explícita sobre estados totalitários como em livros ou filmes como “1984”, “Admirável Mundo Novo” ou “THX 1138”. Mas o que assistimos é ao esgarçamento da noção de realidade ao ser representada como algo fabricado, artificial e essencialmente corrompido (um simulacro), como uma armadilha cósmica criada por alguém que não nos ama. A resultante do ardil de alguma divindade maquiavélica.

Esquecimento e Exílio

A crítica especializada tende a interpretar o filme como uma metáfora da sombria perfeição das sociedades nórdicas que, de tão perfeitas, supostamente induziriam à depressão e suicídio; ou ainda uma crítica à superficialidade e frieza das relações humanas na sociedade de consumo.

Porém, o filme vai mais além ao abordar temas nitidamente gnósticos como, por exemplo, a caracterização do protagonista como um “estrangeiro”: o sentimento de exílio ou de estranhamento em uma realidade que, no íntimo, sente não ser a dele. Uma estranheza acentuada pela perda da memória e a sensação de ter perdido ou deixado algo de muito importante no passado, que a realidade tenta fazer esquecê-lo. Filmes como “Amnésia” (Memento, 2000) ou “O Pagamento” (Paycheck, 2003) já exploraram esse tema do Estrangeiro cujo processo de conhecimento ou gnose é relembrar o que foi perdido para questionar o status quo atual.

No final, é a própria natureza da gnose: a lembrança do que foi perdido para que se transforme em ensinamento. O drama de Andreas no filme “O Homem Que Incomoda” seria a condição da própria humanidade exilada em um cosmos corrompido e decadente, onde a sociedade de consumo, o consumismo e o totalitarismo seriam formas diferentes de manifestação de uma eterna condição: a de estarmos em um exílio onde o esquecimento do que foi perdido é a única maneira para vivermos “bem”.

Simbolismo alquímico

Também é curioso no filme é como é apresentada a possibilidade da transcendência. O filme trás um profundo simbolismo alquímico: a transcendência não é procurada nos céus, correndo até o fim do mundo ou se matando, mas ... cavando, numa parede em um porão! A fresta aberta é um contato para um mundo paralelo onde as coisas têm cor e sabor.


O processo alquímico clássico envolve a dissolução de elementos até o caos para, por meio desse estado, separar massas indiferenciadas em espírito e matéria, unindo essas oposições em uma espécie de casamento alquímico – do qual surge a pedra filosofal.

Essa atividade alquímica reencenaria a atividade de Deus que separou o caos em elementos distintos para, mais tarde, reunificar essas antinomias na Revelação. Estes aspectos simbolizariam o processo através do qual o adepto consegue refinar a sua alma.

Portanto “O Homem Que Incomoda” apresenta dois aspectos aparentemente opostos da iluminação espiritual ou gnose: de um lado a busca no interior de si mesmo os vestígios daquilo que foi esquecido (Andreas sente que há algo errado naquele mundo porque, de alguma forma, ele pressente que a sua origem não está ali); e, do outro, através da experiência sensual e física (cheiros e música) ele sabe ser possível um mundo que transcenda àquele. Paradoxalmente, o mundo em que se encontra prisioneiro é tão imaterial (um simulacro de um mundo verdadeiramente físico, sem textura, cheiro e embriaguez) que a transcendência somente é possível pela via alquímica: através da manipulação bruta da matéria no fundo de um porão.

Ficha Técnica

  • Título: O Homem Que Incomoda (Den Brysomme Mannen)
  • Diretor: Jens Lien
  • Roteiro: Per Schreiner
  • Elenco: Trond Fausa Aurvaag, Petronella Barker, Per Schaaning
  • Produção: Sandrew Metronome Norge, Icelandic Filmcompany
  • Distribuição: Film Movement
  • Ano: 2006
  • País: Islândia, Noruega




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