Certa vez Louis Armstrong disse a um jornalista: "Cara, se você for perguntar o que é o Jazz, então nunca saberá". Algo semelhante ocorre com termos como "Gnosticismo" ou "Gnose" na história das religiões: devem ser mais experimentados do que compreendidos. Pelas suas próprias origens sincréticas (uma fusão de platonismo, neo-platonismo, estoicismo, budismo, antigas religiões semíticas e cristianismo), o Gnosticismo poderia ser facilmente comparado ao Jazz que, pelas suas origens, também foi resultante de intensas misturas e adaptações.
O que é Gnosticismo?
Seja pelo ponto de vista histórico (conjunto de seitas sincréticas de religiões
iniciatórias e escolas de conhecimento nos primeiros séculos da era cristã) ou
pelo ponto de vista dos renascimentos na era moderna (grupos e, por analogia, a
todos os movimentos que se baseiam no conhecimento secreto da “gnose”) são definições
que podem levar à generalização e confusão.
Mesmo com a
descoberta, em 1945, de textos gnósticos do século IV em Nag Hammadi (Egito),
muitos concordam que o tema ainda continua com muitos pontos dúbios.
Hoeller e Conner
preferem abordar o Gnosticismo como uma “atitude da mente” ou uma “predisposição
ideológica” que surge em ambientes de grande agitação artística e cultural. “Se
você é um artista sério, já é meio gnóstico”, afirma Conner. Nessas condições,
o Gnosticismo está fadado a um novo renascimento.
Mas há um consenso: o Gnosticismo e seus derivados
esotéricos nunca fizeram parte da cultura sancionada pelas instituições. Desde
o triunfo do cristianismo ortodoxo após Constantino, a tradição gnóstica entrou
para o subterrâneo dos movimentos sociais. Bem sucedido em seus canais subterrâneos,
eventualmente ofereceu a pensadores revolucionários e artistas subsídios
importantes para críticas aos sistemas opressivos políticos, sociais ou
culturais.
É por esse caminho que Miguel Conner (escritor
norte-americano de sci fi e editor/apresentador do programa radiofônico "Aeon
Bytes Gnostic Radio" - programa de debates e
entrevistas semanais sobre temas do Gnosticismo, literatura e cultura pop)
vai focar o Gnosticismo ao compará-lo ao Jazz no campo musical. Impossível de
ser definido, o Jazz escapa a qualquer descrição ou análise mecanicista. Para
Conner, o Gnosticismo se enquadraria nessa mesma natureza. Pelas suas próprias origens sincréticas (uma fusão de platonismo, neo-platonismo, estoicismo, budismo, antigas religiões semíticas e cristianismo), o Gnosticismo poderia ser facilmente comparado ao Jazz que, pelas suas origens, também foi resultante de intensas misturas e adaptações.
Para corroborar com essa ponto de vista, Conner faz uma
referência a um texto do escritor de sci fi norte-americano Philip K. Dick
sobre “Os Dez Princípios da Revelação Gnóstica”.
Reproduzimos abaixo essa
análise de Miguel Conner.
QUAIS SÃO OS PRINCÍPIOS DE UM GNÓSTICO CRISTÃO?
Tentar explicar o Gnosticismo é como tentar explicar o Jazz.
Ensinar toda a história, tradição e
mecânica do Jazz é ficar apenas na superfície. Para realmente apreciar
essa forma de arte, é necessário que o coração e a mente estejam imersos na
música. Só assim poderemos não apenas
entender o Jazz, mas experimentá-lo.
O escritor Philip K. Dick escreveu "Os Dez Maiores Princípios da Revelação Gnóstica" |
Gnosticismo é o Jazz de todas as religiões. São igualmente
individualistas, embora sua disseminação seja coletiva; extrovertidos e
selvagens nas suas mais íntimas paixões, embora aparentemente contidos em contextos
surreais; propensos à adaptações e, dependendo do público, tendem à
apropriações para melhorar suas performances. Jazz e Gnosticismo sempre
vicejaram nas nevoas, nos cantos escuros da sociedade, assim como nos locais de
explosão artística.
Quando pensamos que encostamos os dedos no Gnosticismo ou no
Jazz, fogem do nosso toque para reaparecerem em outra divertida manifestação,
porém em tons graves e reflexivos provenientes das suas sombrias origens.
No livro “The Gnostic Religion”, Hans Jonas escreveu que para
entender o Gnosticismo é necessário uma espécie de ouvido musical que deve ser
continuamente treinado.
Não é fácil viver em um mundo onde a fé dominante requer
pessoas que executem as regras de um mecânico Salieri ao invés de um etéreo
Mozart, tal como apresentado no filme “Amadeus”. Fica difícil compreender uma
religião esotérica em um mundo desatento que sempre busca coisas de fácil
digestão.
Mas se buscamos uma definição de Gnosticismo, pode vir muito
bem de uma pessoa cuja primeira paixão foi a música – Philip K. Dick,
considerado por muitos o último e maior bandleader do Gnosticismo.
O Gnosticismo visionário de K. Dick é bem conhecido em seus livros “Valis” e
“The Divine Invasion” e nas adaptações cinematográficas como “Blade Runner” e
“Minority Report”. Ainda que K. Dick tenha gasto a maior parte da sua vida
expressando suas descobertas místicas em seu “Exegesis”. Embora “Exegesis” seja
um trabalho pesado, K. Dick acabou conseguindo produzir uma sintética de
princípios do Gnosticismo que pode atender às necessidades daqueles que querem
aprimorar o ouvido musical.
Aqui estão os “Os Dez Maiores Princípios da Revelação
Gnóstica”:
Os gnósticos cristãos do século II acreditavam que, mais do
que a fé, somente uma forma especial de revelação pelo conhecimento poderia
trazer a salvação. Os conteúdos dessa revelação não poderiam ser recebidos
empiricamente ou derivado de algum a
priori. Consideravam essa especial gnosis
tão valiosa que achavam necessário mantê-la em segredo. Aqui estão os dez
principais princípios da revelação gnóstica:
- O criador desse mundo é louco;
- O mundo não é o que parece ser, pois encobre o mal contido nele através de um véu de ilusão que obscurece a existência da divindade enlouquecida;
- Existe outro reino, com um Deus melhor, e todos os esforços devem ser direcionados para: Retornar para lá; Trazê-lo aqui;
- Devemos recordar das nossas origens nas estrelas que remonta há milhares de anos;
- Cada um de nós possui uma contraparte divina que pode ser encontrada para nos fazer despertar. Essa outra personalidade é o nosso autêntico self desperto; o outro, aquele que nós possuímos, está adormecido. Estamos de fato dormindo e nas mãos de um perigoso mágico disfarçado de Bom Deus, mas na verdade uma divindade criadora demente. A desolação, o mal e a dor nesse mundo, o fato de vivermos em uma prisão controlada por um criador demente, produzem em nós, desde o início, um princípio de realidade dividido que nos faz adormecer de bom grado na ilusão;
O Demiurgo: o criador desse mundo enlouqueceu |
- Você pode sair dessa delirante prisão para ingressar no reino da paz se o verdadeiro Bom Deus colocá-lo sob sua Graça e permitir que veja a realidade através dos seus olhos;
- Ao invés de receber, Cristo deu revelação; ensinou seus seguidores a entrar, ainda vivos, no Seu reino, enquanto as outras religiões trazem apenas o esquecimento sobre o conhecimento de um “outro tempo” em um “outro reino” que não é daqui. Ele nos faz retornar a viver como o Deus Único (isto é, o Logos);
- Provavelmente a real Igreja Cristã ainda exista secretamente no subterrâneo, sob a chefia ou governo do Corpus Christ vivo, onde seus membros são absorvidos por Ele. Razão pela qual provavelmente têm um vasto e quase mágico poder;
- A divisão entre dois tempos e dois reinos (o Bem e o Mal) terminará abruptamente com a vitória do Bem, que tornará visível um reino que atualmente é mantido invisível. Não podemos saber quando isso acontecerá;
- Até lá estaremos como em uma ponte, sendo julgados se fomos fiéis ao enlouquecido demiurgo criador desse mundo ou fiéis ao Deus Único e Seu Reino, o qual conhecemos através de Cristo.
“Os Dez Maiores Princípios da Revelação Gnóstica” é uma importante lista de princípios de um indivíduo que possua um apurado ouvido musical para
entender o Gnosticismo. Mas na atualidade todos os princípios desta artística fé são
apenas notas musicais soltas diante de um cenário em preto e branco. A melodia não
pode ser apenas compreendida, mas tem que ser experimentada para podermos
receber plenamente suas recompensas.
Se uma pessoa não consegue entender o Gnosticismo depois de
repetidas sessões, então talvez seja melhor render-se a uma frase que certa vez
Louis Armstrong disse a um repórter:
“Cara, se você perguntar o que é o Jazz, então nunca
saberá”
De qualquer forma, aqui está um simples princípio em uma
única linha que um ortodoxo ou fundamentalista poderá entender:
“Gnosticismo toca uma música infernal, figurativamente e
literalmente”
E “All That Jazz”.
(CONNER, Miguel. "What are the Main Principles of a Christian Gnostic?" In: Examiner.com).
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