“Margin Call – O Dia
Antes do Fim” (Margin Call, 2011) é um filme de reação ideológica às graves
denúncias sobre as origens da crise financeira global de 2008 (cujos
desdobramentos ainda continuam) feitas por documentários como “Trabalho Interno” de
Charles Ferguson ou “Capitalismo: Uma História de Amor” de Michael Moore. “Margin
Call” despolitiza os fundamentos da crise ao se levar a sério como um “thriller”
matemático-financeiro. Embarca no hermetismo dos números para subliminarmente
provar ao espectador leigo que, no final, toda a turbulência econômica surgiu por
“erros de estimativa de volatilidade”
colocando entre parêntesis os fatores demasiadamente humanos: relações
promíscuas das elites financeiras com o Estado e a Política.
É bastante conhecido o papel ideológico que Hollywood sempre
desempenhou, desde os esforços patrióticos durante a Segunda Guerra Mundial até
a chamada “Política de Boa Vizinhança” durante o governo do presidente
Roosevelt quando foi incentivada a promoção de artistas latino-americanos ao
estrelato cinematográfico como tática de cooptação política.
O que impressiona atualmente é o “timing” da
contra-propaganda ideológica dos filmes hollywoodianos.
Depois da explosão da bolha imobiliária e dos empréstimos
hipotecários que arrastaram os mercados globais para a crise em 2008, assistimos
às denúncias expostas por documentários como Trabalho Interno (Inside Job,
2010). Premiado com o Oscar de melhor documentário, o diretor Charles Ferguson deu
os nomes de diretores, executivos e empresas (de seguros, bancos de
investimentos etc.) e descreveu a engenharia financeira irresponsável que
torrou dinheiro público e fez poucos ficarem milionários com a explosão da
“bolha” financeira. E, o que é mais grave, demonstrou que os artífices dessa
engenharia estiveram conscientes o tempo todo, ao jogar em dois lados: ao mesmo
tempo em que apostavam deliberadamente na inadimplência das hipotecas,
asseguravam aos seus clientes a “saúde” financeira dos papéis podres que
comercializavam.
Em seguida
Hollywood contra-ataca com duas produções ficcionais: uma que glamouriza a
produção de fortunas nos mercados finananceiros; e a outra que traduz as
origens da crise financeira global em um “erro de cálculo”.
A primeira reação
foi o filme “Sem Limites” (Limitless, 2011) onde toda a suspeita da engenharia financeira de Wall Street é
“naturalizada” ou “matematicizada” através da estória da descoberta do
algoritmo de sucesso que garante a fortuna e o sucesso. Se o documentário
“Trabalho Interno” denunciava que todas as fortunas do mercado financeiro
provinham de “bolhas” criadas por falcatruas possibilitadas pela
desregulamentação e relações promíscuas entre Estado e especuladores, em “Sem
Limites”, ao contrário, o sucesso provém de fórmulas matemáticas e a utilização
total do cérebro através de “smart drugs”.
A segunda reação é o recente filme “Margin Call – O Dia
Antes do Fim”. Se no filme “Sem Limites” temos a história do algoritmo de
sucesso inventado por uma mente esperta, em “Margin Call” temos a estória de
algoritmos que produzem “números que não se somam” reduzindo a explicação da
crise financeira global a um “erro de estimativa dos índices de volatilidade”.
A narrativa
começa quando um andar inteiro de uma firma de investimentos é sobressaltada
com a notícia de que a maioria do quadro de funcionários será demitida. Eric
Dale (Stanley Tucci) é um dos demitidos que, ao sair, entrega uma “pen drive”
para um jovem operador financeiro e avisa: “de uma olhada e tome cuidado!” Na
verdade, Dale entrega dados sobre uma verdadeira bomba- relógio financeira
armada nas duas últimas semanas de operações: negócios com papéis cujos níveis
de volatilidade extrapolaram os limites de risco. Previsão: as perdas serão
maiores que o valor da própria empresa, condenando-a à falência a curtíssimo
prazo!
Reúne-se a cúpula
da empresa para uma reunião emergencial que atravessa a madrugada. Gerentes de
avaliação de risco, diretores, executivos e o próprio dono da empresa, John Tuld
(Jeremy Irons), todos parecem ter sido pegos de surpresa. Todos em estado de
choque e envolvidos numa atmosfera de tensão, tentando encontrar o demitido
Dale para que ele não vaze a informação ao mercado no dia seguinte e tentando
articular alternativas para se livrar dos títulos hipotecários podres: ou
eliminam as informações dos livros contábeis através de uma falcatrua ou empurram
a bomba mercado a baixo, arrasando a credibilidade da empresa junto aos
clientes.
E na Cúpula ninguém sabia de nada...
Para uma
organização tão verticalmente hierárquica como ambientado na narrativa, o filme
apresenta uma curiosa divisão que subverte todos os preceitos de qualquer
empresa real: de um lado os operadores de financeiros, com muitos engenheiros
(civis e até espaciais) que usam seus conhecimentos matemáticos para criar
modelos algorítmicos herméticos; do outro gerentes, diretores e o próprio dono
da empresa que nada entendem sobre o hermetismo das operações, como fala um dos
gerentes ao operador que descobriu o conteúdo da “pen drive”: “Céus. Sabe que
não entendo essa coisas. Traduza para o inglês”.
Ou ainda, o apelo
feito por John Tuld, diante dos olhares atônitos de toda a cúpula: “Talvez
possa dizer o que está havendo aqui. E, por favor, fale como com uma criança...
ou um golden retriever!”
Ou seja,
informações estratégicas, táticas e, principalmente, de engenharia financeira
passam longe da cúpula hierárquica. Inacreditavelmente, todos da cúpula parecem
leigos, assim como os espectadores. E, mais do que isso, a narrativa glamouriza
e, ao mesmo tempo, reduz a crise financeira a modelos matemáticos extrapolados
pela insensibilidade de “nerds” obcecados por números.
Em uma
inacreditável manobra ideológica, a irresponsabilidade ética ou moral é
invertida: se no documentário “Trabalho Interno” o foco está na irracionalidade
nas relações promíscuas entre Estado e diretores/presidentes de empresas e na
desregulamentação irresponsável dos mercados financeiros, em “Margin Call” a
culpa são dos operadores que desenvolvem modelos financeiros com excessiva
volatilidade aplicados sem a cúpula da empresa ter conhecimento e muito menos
entender as consequências já que são completamente leigos sobre a engenharia do
negócio.
O presidente John
Tuld dá ainda uma lição de moral a todos na reunião que, calados e assustados,
não conseguem encontrar uma saída: “Existem três formas de ganhar a vida nesse
negócio: ser o primeiro, o mais esperto ou trapacear. Eu não trapaceio. Embora
ache que tem pessoas bem espertas nesse edifício”.
Rogers e Tuld terminam
ainda como pessoas que se sacrificaram “por um bem maior” ao fazer a crise
começar pela própria empresa. “Tenho fé que em um panorama mais amplo, nossas
habilidades não foram desperdiçadas. Realizamos muito, e os nossos talentos
serviram a um bem maior”, como afirma ao final o gerente de risco Sam Rogers
(Kevin Spacey).
Da Ética Protestante ao Hermetismo
Financeiro
Porém, o filme
“Margin Call” tem a virtude de apresentar uma descrição quase etnográfica dos
profissionais que atuam nos mercados financeiros, suas motivações e orientação
de valores. Ainda mais sabendo que o diretor estreante J. C. Chandor
desenvolveu o roteiro baseado nas experiências que viu e ouviu de seu pai, corretor
de bolsa por vários anos.
O que chama a
atenção no filme é a relação dos personagens com os números, dinheiro e a
própria matemática. O operador Sullivan diz que tem doutorado em engenharia de
propulsão pela MIT. O que um “cientista espacial faz ali?” “Afinal tudo são
números. Só muda o que você está somando”, justifica. Parece que todos nutrem
indiferença em relação ao que os números representam de fato, na vida real.
Mesmo os altos
rendimentos e bônus recebidos pelas operações bem sucedidas são encarados como eventos
rotineiramente efêmeros: a certa altura um operador diz que ganhou 2,5 milhões
de dólares. “Acaba rápido. Aprende a gastar se está no bolso”. E vai listando
os seus gastos: hipoteca, o “cara do imposto”, carro, bebidas, dançarinas,
prostitutas etc"., uma longa lista descrita em um tom de indiferença e
banalidade.
Enquanto isso, em
um monólogo de John Tuld para convencer seu gerente de riscos a permanecer na
empresa após a crise: “É tudo dinheiro. É inventado. Pedaços de papel com
imagens só para não termos que matar um ao outros para termos o que comer”.
O cinismo final de
Tuld revela a profunda transformação do imaginário do Capitalismo. Como Max
Weber demonstrou as origens do Capitalismo estiveram fundamentadas na ética
religiosa protestante (a renúncia e o sacrifício como propulsor da atividade
econômica cujo principal resultado seria obras deixadas na Terra para a
posteridade para comprovar-se merecedor das graças de Deus). Capital, dinheiro
e todos os signos da atividade econômica representavam princípios éticos,
morais e religiosos. Ficção ou não, pelos menos eram signos imbuídos de forte
sentido social: a ciência econômica como uma ciência moral.
No cenário da
financeirização profunda do Capitalismo, a ética cede lugar ao esoterismo,
magia e feitiço. Tudo são números, não importa o quê está sendo somado. Modelos
algoritmos, “cabeças de planilha”, tomam o lugar da ciência moral da Economia
Política. A atividade econômica real transforma-se em engenharia financeira,
atividade hermética só compreensível para iniciados, assim como cabala ou
alquimia. Iniciados que, de tão distantes do mundo real, operam os números como
fins em si mesmo, como fetiches ou entidades mágicas.
Porém, parafraseando
Karl Marx, esses novos feiticeiros repetem a história como farsa: o hermetismo
dos seus modelos matemáticos de cenários serve apenas como ideologia para
ocultar as relações promíscuas das elites financeiras com o Estado e a Política.
Elites que o
filme “Margin Call” não só deixa ilesa como até idealiza como alguém que se
sacrificou “por um bem maior”.
Ficha Técnica
- Título: Margin Call: O Dia Depois do Fim (Margin Call)
- Direção: J. C. Chandor
- Roteiro: J. C. Chandor
- Elenco: Kevin Spacey, Paul Bettany, Jeremy Irons, Zachary Quinto, Demmy Moore, Stanley Tucci
- Produção: Before The Door Pictures, Benaroya Pictures
- Distribuição: Lionsgate
- Ano: 2011
- País: EUA
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