Recluso e avesso a jornalistas, o cineasta Stanley Kubrick revela em uma das suas poucas entrevistas um olhar bem particular para a vida: para ele, vivemos em um Universo indiferente e sem sentido que corrói a nossa vontade de viver. Nossa única saída seria desafiar essa indiferença ao suprir de Luz a "vasta escuridão" da existência. Esse olhar gnóstico pode ser a chave de compreensão da obra de Kubrick, principalmente da chamada "Trilogia Star Child": "Dr. Fantástico", "2001" e "Laranja Mecânica".
Semana passada li o livro "Stanley Kubrick Interviews". O diretor de clássicos como "Laranja Mecânica", "O Iluminado" e "Barry Lyndon" era avesso a entrevistas: preferia que os filmes falassem por ele. Esse livro reúne as poucas entrevistas do recluso cineasta falecido em 1999, abrangendo o período que vai de 1959 a 1987, revelando diversos interesses de Kubrick tais como a exploração espacial, psicanálise, efeitos da violência e religião.
O destaque é uma entrevista concedida a Eric Nordern para a revista "Playboy" em 1968. Na oportunidade Kubrick revelou uma surpreendente visão gnóstica da existência
cuja convicção pode ser a chave de entendimento na análise dos filmes do
diretor, principalmente das produções da trilogia dessa época iniciada com “Dr.
Fantástico” em 1964 e encerrada com “Laranja Mecânica” em 1971, a chamada trilogia
“Star Child”, como veremos abaixo.
Primeiro, vejamos esse trecho da entrevista de Kubrick a Eric Norden
onde discute uma especial forma de niilismo diante da existência: a maneira de
lidar com um Universo indiferente e sem sentido a partir do resgate do
“imaculado sentido de admiração das coisas simples” da infância, esquecido por
nós na medida em que desenvolvemos a consciência da morte na vida adulta:
Playboy: Se a vida é tão sem propósito, você sente que a sua vida vale a pena?
Kubrick: Sim, para aqueles que conseguem de alguma forma lidar com a nossa mortalidade. A falta de sentido da vida força o homem a criar o seu próprio significado. As crianças, é claro, começam a vida com um imaculado sentido de admiração, uma capacidade de sentir alegria total em algo tão simples como o verde de uma folha, mas à medida que envelhecem a consciência da morte e da decadência começa a colidir com a sua consciência e sutilmente corrói sua joie de vivre (a alegre fruição da vida), seu idealismo - e sua suposta imortalidade. Na medida em que a criança amadurece começa a ver a morte e dor em todos os lugares, e começa a perder a fé na bondade suprema do homem. Mas se é razoavelmente forte - e se tiver sorte - ele poderá emergir desse crepúsculo da alma e fazer renascer o élan pela vida. Tanto por causa e apesar da sua consciência da falta de sentido da vida, ele pode forjar um novo senso de propósito e afirmação. Ele pode não recuperar o mesmo sentido puro de admiração com o qual nasceu, mas pode moldar algo muito mais duradouro e sustentável. O fato mais terrível sobre o universo não é que é hostil, mas que é indiferente. Se pudermos entrar em acordo com esta indiferença e aceitar os desafios da vida dentro dos limites de morte – limites que o homem pode tornar mutáveis - a nossa existência como espécie pode ter significado genuíno e realização. Diante da vasta escuridão, precisamos suprir com nossa própria luz. (Stanley Kubrick , em entrevista para a Playboy, Kubrick Interviews , University Press of Mississippi, 2001, p.73).
O mito gnóstico da Queda |
Ver o universo físico como uma “vasta
escuridão” que somente pode ser iluminada pela nossa própria luz interior (a
“joie de vivre”) é uma afirmação com um nítido tom gnóstico. Só para
relembrarmos, o Gnosticismo (termo
usado para designar todo um conjunto de seitas sincréticas de religiões
iniciatórias e escolas de conhecimento nos primeiros séculos da era cristã)
parte de uma concepção totalmente herética do Gênesis bíblico ao ver a Criação,
na verdade, como uma Queda: a criação de um cosmos falso ou mal na sua essência
porque criado por um Demiurgo que, inebriado de poder, acredita ser o único
Deus. O Demiurgo tenta reproduzir um cosmos semelhante ao da Plenitude (o
Pleroma), mas tudo o que consegue é criar formas etéreas vazias que, para serem
animadas, é necessário aprisionar o ser humano na teia das sucessivas
encarnações para extrair dele a Luz que anime um universo inautêntico, hostil,
sem sentido e caótico. Porque o Mal está inscrito na própria Criação e não no
homem.
Kubrick parece partilhar desse niilismo gnóstico: discutir o “sentido
da vida” ou um “propósito para a existência” é vazio, pois o universo é
totalmente indiferente (Mal) em relação ao ser humano. Como diria o filósofo
alemão Theodor Adorno em uma sensacional tirada gnóstica no seu livro “A
Dialética Negativa”: “se a vida tivesse sentido não estaríamos fazendo essa
pergunta”.
Além disso, Kubrick reafirma o mito gnóstico da Queda ao ver na
trajetória da existência do indivíduo uma repetição, em escala micro, do drama
da Queda na Criação: nascemos com um “sentido imaculado de admiração” pela
existência (alegria,
boa-fé, disposição, brilho, vitalidade, confiança etc.) que começa a ser corroído ao vermos “a morte e a
dor em todos os lugares”. A vida não opera
com soma, mas por subtração, retirando o que há de melhor em todos nós.
Mais ainda, Kubrick propõe a sua gnose: aceitarmos o
desafio dessa indiferença da existência e a humanidade propor um sentido para a
existência, iluminando com a nossa Luz interior as trevas da Criação. A gnose
de Kubrick é a radical inversão Gnóstica: tudo o que precisamos já está dentro
de nós. Nada existe fora da consciência humana.
A Trilogia
“Star Child”
"Dr. Fantástico" (1964) |
A descoberta do olhar gnóstico de Kubrick ajuda
bastante no entendimento do conjunto da obra do cineasta, principalmente da sua
enigmática trilogia “Star Child”, como chama o escritor e cineasta canadense J.
F. Martel no seu texto “The Kubrick Gaze”
Em “2001: uma Odisséia no Espaço” há um evidente
insight gnóstico ao mostrar o duelo entre a tripulação da nave Discovery e o
supercomputador HAL: a representação de Deus como uma entidade alienígena, um
Demiurgo. O Deus/Demiurgo, tal como apresentado pelos gnósticos, é
verdadeiramente, uma espécie de supercomputador alienígena que tenta aprisionar
o homem.
Como afirma John Singh, “talvez seja uma oportuna
coincidência que a palavra copta [dos textos apócrifos gnósticos] para designar
a ideia de ‘simulação’ é hal,
lembrando o rebelde computador HAL em 2001 de Kubrick”(veja “Gnostic Insight on God as na Alien Supercomputer”).
O "Star Child" do filme "2001" |
Tal como o computador HAL, o universo dirigido por
um Deus alienígena é totalmente irracional, não apenas pelas religiões que o
promove, mas na própria existência física ou cósmica. O filme “Dr Fantástico”
inicia a chamada trilogia “Star Child” que vai desenvolver esse tema ao mostrar
através do humor negro o mundo acabando em um cogumelo nuclear como resultado
da absurda lógica do complexo governamental e militar. Os patéticos personagens
da narrativa nada podem fazer diante de uma máquina que enlouqueceu e se tornou
autônoma. É como se tudo devesse ser destruído para se tornar possível uma nova
humanidade.
Os primeiros planos do filme “2001” será a
continuidade do final de “Dr Fantástico”: a jornada do homem primitivo da África
pré-histórica ao novo homem que surgirá em uma das luas de Júpiter. Os demônios
mostrados em “Dr. Fantástico” somente podem ser confrontados retornando às
nossas origens para, mais uma vez, lutar com o Demiurgo enlouquecido (dessa
vez, o supercomputador HAL) para surgir, ao final a redenção através do
transdimensional “Star Child” com o olhar fixo para o planeta Terra.
Alex de "Laranja Mecânica" |
Esse mesmo olhar fixo será o do primeiro plano do
filme “Laranja Mecânica”: o “Star Child” agora é Alex que deve ser integrado a
uma sociedade cujo sistema é tão enlouquecido e fora do controle como o HAL de
2001 e o sistema militarizado da guerra fria no filme “Dr. Fantástico”:
“Alex é o ‘Star Child’, o super-homem nietzschiano que veio à Terra para expor a hipocrisia da sociedade enraizada através de uma rejeição de valores obsoletos. Seu amor pela música, seu uso da linguagem dramática, seus trajes e postura fazem dele uma espécie de artista, um malandro mercurial dançando sobre as ruínas da história. Sua cobra de estimação - um símbolo clássico xamânico - e sua capacidade de transe para receber visões de violência fazem dele um xamã. Mas este é o xamã como feiticeiro, em vez de curandeiro.” (MARTEL, J. F. “The Kubrick Gaze” disponível em http://www.realitysandwich.com/kubrick_gaze)
Agora o “Star Child” é um
feiticeiro, tão enlouquecido quanto o sistema. Ele não vem trazer a cura, mas a
destruição ao transformar-se numa máquina tão descontrolada (uma “laranja
mecânica”) quanto o sistema que tenta integrá-lo.