Pois bem, cabe agora traçarmos uma pequena história da espontaneidade na cultura de massas, procurando mapear as sucessivas fases e estratégias pelas quais a espontaneidade do público é apropriada e representada nos produtos
Mas, antes disso, temos que definir o que entendemos por “espontaneidade”. Para a mitologia gnóstica é a forma pela qual as partículas de luz (memórias das nossas verdadeiras origens não nesse cosmos, mas no Pleroma) se manifestam no cotidiano: alegria, boa-fé, disposição, brilho, vitalidade, confiança etc., isto é, sentimentos e disposições que põem em movimento nossas vidas não em um sentido instrumental (em função de metas, objetivos, eficiência, eficácia ou “pensamento positivo”, como preconiza a literatura de auto-ajuda). Pelo contrário, tomamos a espontaneidade no aspecto do “jogo” e do “lúdico”.
Ao remeter esse conceito a esse universo, lembramos de imediato das brincadeiras infantis, onde a espontaneidade ainda manifesta-se livremente. Mas tomamos o jogo e o lúdico não no sentido que o adulto faz como “irresponsabilidade feliz” ou “algo não sério”. Para Richard Sennett o jogo é uma coisa séria:
“(...) é o princípio que leva a criança a investir muita paixão numa situação impessoal comandada por regras e a pensar a expressão, nessa situação, como uma questão de refazer e aperfeiçoar tais regras para dar maior prazer e promover uma sociabilidade maior junto aos outros” (SENNETT, Richard. O Declínio do Homem Público, S. Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 384.)
Suas origens mais profundas talvez estejam no protestantismo evangélico cuja prática religiosa era em si bastante divertida: fiéis tomados por ataques de catalepsia, convulsões, visões, explosões de riso e cantorias, além de sermões carregados de histórias bizarras, relatos de assassinatos cruéis e deformidades para que os fiéis sentissem nos próprios ossos a esperança, convicção e culpa. Essas histórias, mais tarde massificadas em tablóides e literatura popular, seriam a extensão desse fenômeno religioso tipicamente norte-americano.
Aqui, o entretenimento está associado com as sensações: o inusitado, o bizarro, o inesperado. Estas manifestações espontâneas do cotidiano estão associadas ao Fantástico, ao Mistério. Circos e parques de variedades que expunham deformações humanas serão a base dos arquétipos e iconografia modernas dos filmes de terror e suspense que darão movimento às estruturas-clichê desses gêneros.
Com a entrada da fotografia, cinema e, mais tarde, TV, esse potencial sensacional, teatral e imagético do entretenimento realiza-se tecnologicamente. Nessa primeira fase dos meios visuais e audiovisuais, quando não havia ainda uma linguagem estruturada pelo mundo dos negócios, temos a presença do espontâneo pela relação ainda “desajeitada” ou “disfuncional” do homem com as novas tecnologias de então.
Por exemplo, nas fotografias do século XIX as pessoas parecem ser mais “feias” do que nas fotos atuais por elas ainda não terem em mente a noção de pose e iluminação. Na verdade, eram fotos mais espontâneas do que as atuais.
No cinema ainda havia espaço para uma relação diretor-ator ainda não codificada pelo ritmo da linha de montagem. Por exemplo, na autobiografia da atriz Mae Marsch ela faz um relato das instruções passadas pelo diretor D W Griffith em uma cena em que ela deveria representar medo e pânico. Um diretor convencional diria “Grite!”.
“O Sr. Griffith, ao contrário, perguntou-me se eu já tinha sentido alguma vez na vida medo ou susto. ‘Sim’, eu disse. ‘O que você fez então’,perguntou-me a seguir. ‘Eu comecei a rir’, respondi. Ele soube imediatamente do que se tratava (...) Eu creio que a risada histérica era muito mais expressiva do que os olhos virando ou as lágrimas.” (Citado por PROKOP, Dieter. “O Trabalho com Estereótipos: os filmes de D. W. Griffith”, In: MARCONDES FILHO (org.) Dieter Prokop. Coleção Grandes Cientistas Sociais, São Paulo: Ática, p.64.)
A primeira estratégia foi a criação do Star System ou a promoção dos atores como “estrelas” (para a visão gnóstica a expressão não é mera coincidência: expressa o desejo secreto de capturar a luz, “estrela”, brilho, para por em movimento o entretenimento). Os produtores logo perceberam que o público reconhecia seus atores preferidos e lhes dava apelidos afetuosos (Mary Pickford a “menina dos cachos” - veja foto ao lado -, Jane Harlow a “vênus platinada”). Não tardou transformar esses atores em estrelas ao explorar o fascínio do público pelas idiossincrasias ou características espontâneas ou únicas, transformando-os em deuses de um Olimpo, isto é, “olimpianos”.
Isso vai criar um ciclo vicioso, uma armadilha para a indústria do entretenimento na busca pela espontaneidade:
“O resultado foi transformar a sociedade num gigantesco efeito Heisenberg, em que a mídia não estava relatando o que as pessoas faziam; estava relatando o que as pessoas faziam para obter a atenção da mídia. Em outras palavras, à medida que a vida estava sendo vivida cada vez mais para a mídia, esta estava cada vez mais cobrindo a si mesma e a seu impacto sobre a vida” (GABLER, Neal. Vida, o Filme. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 97).
Na verdade, as celebridades, com suas poses, jeito de jogar o cabelo, bocas com os lábios entre-abertos etc., vão reproduzir os clichês imagéticos do cinema e da publicidade.
Se o cinema explorava a espontaneidade por meio do Star System, a Publicidade vai buscar o espontâneo no erotismo, crianças e animais. Quando Marilyn Monroe, talvez uma das primeiras celebridades, se expôs com o seu sex appeal para capturar a atenção das lentes e câmeras, já replicava caras e bocas, outrora espontâneos, do repertório imagético publicitário das pin ups.
A indústria do entretenimento cria uma cilada para ela mesma, um efeito secundário imprevisto: todo esforço em captar a espontaneidade de situações cotidianas no cinema e publicidade (como nas imagens de Norman Rockwell tentando capturar instantâneos da rotina da vida interiorana dos EUA nas capas da “Saturday Evening Post”) resultou num repertório de iconografias, verdadeiras táticas para atrair a atenção de repórteres, promoteurs e produtores. E isso não apenas no campo frívolo das celebridades. Eventos políticos e econômicos surgem em tons exagerados para se igualar ao script dos dramas ficcionais e atrair a atenção das mídias. Os eventos terroristas são aqueles que melhor comprovam essa tese.
A prática jornalista mais preocupada com a “linguagem” do que com o fato demonstra isso: o repórter vira um diretor de cena, conduzindo o entrevistado ou o fato para torná-lo mais “noticiável”, “telegênico” ou “emocionante”.
Em decorrência, a espontaneidade desaparece e a indústria do entretenimento alcança perigosamente o limite do tédio, inércia e perda de interesse. Era necessário renovar as estratégias midiáticas de busca por novos tipos, situações, instantâneos e sensações. Mas isso é assunto para a próxima postagem.