Celulares e
smartphones se transformaram em verdadeiras caixas-pretas das nossas vidas –
registros de ligações, mensagens, nossos segredos e pecados mais íntimos estão
nesses dispositivos. Passamos cada vez mais tempo fazendo dupla tela nas mais
diversas situações. Se a vida social funciona dentro do triângulo
público/privado/segredos, qual o impacto desses dispositivos na vida conjugal e
pessoal? Esse é o tema da comédia dramática italiana “Perfeitos Desconhecidos”
(Perfetti Sconosciuti, 2016). Sete amigos reúnem-se para um jantar quando
alguém na mesa sugere uma nova versão do velho “Jogo da Verdade”. Só que agora,
com os smartphones de todos colocados no centro da mesa – todos terão que
compartilhar com os presentes as mensagens e ligações recebidas naquela noite.
Mais que confusões e mal entendidos, o filme aborda como a função da mentira é, muitas vezes, mais do que iludir: é negociar com a verdade. Filme sugerido pelo nosso leitor Eduardo G.
Em Fedro de Platão há uma história sobre o
chamado Julgamento de Thamus, rei de uma grande cidade do Egito. Platão relata
essa história contada por Sócrates ao seu amigo Fedro: um dia, Thamus recebeu o
deus inventor chamado Theuth – ele inventou o número, o cálculo, a geometria, a
astronomia. E agora, apresentava a sua mais nova invenção: a escrita.
“Aqui está uma
invenção que irá aperfeiçoar tanto a sabedoria quanto a memória dos egípcios”,
afirmou Theuth. Mas Thamus foi inflexível no seu julgamento: “o que criou é a
receita para a recordação, não para a memória. Quanto a sabedoria, seus
discípulos terão a reputação dela e não a realidade. Receberão muita informação
e, como consequência, serão vistos como muito instruídos. Quando, na verdade,
serão bastante ignorantes”, finalizou o julgamento o rei Thamus.
Há nesse
julgamento uma séria advertência à atual sociedade tecnológica: graças a
Internet, navegadores, smartphones etc. temos à nossa disposição um estoque
infinito de informação, acessível a qualquer instante, praticamente de qualquer
lugar. Esquecemos de algo, dá um Google.
Porém,
confundimos essa disponibilidade com sabedoria ou conhecimento. Se a vida
social pode ser dividida na tricotomia Público/Privado/Segredo (a nossa vida
política e profissional; a vida pessoal e conjugal; e nossos segredos íntimos),
o que exige sabedoria e discernimento para lidar com essa ilusão necessária que
é a sociabilidade, as novas tecnologias de informação parece que enfraquecem
essa responsabilidade.
A caixa-preta
Se nas redes
sociais criamos nossa imagem pública a partir das ilusões narcísicas pessoais,
é no smartphone que colocamos todos os nossos segredos, transformando o
dispositivo em uma verdadeira caixa-preta.
A comédia
italiana de humor dramático (e por que não dizer, negro) Perfeitos Desconhecidos (Perfetti
Sconosciuti, 2016) trata exatamente disso: a forma como lidamos com as
redes sociais, a relação de dependência e ansiedade com o celular. Mas,
principalmente, como os celulares viraram o depósito dos nossos segredos que
escondemos tanto da vida pública quanto privada.
Sete amigos,
formando três casais, reúnem-se em um jantar quando alguém na mesa sugere um
jogo muito parecido com o velho “Jogo da Verdade”. Só que agora, com os
smartphones de todos colocados no centro da mesa – todos terão que compartilhar
com os presentes as mensagens e ligações recebidas naquela noite.
São esperados
mal-entendidos e confusões entre os casais. Mas, principalmente, é revelada a
ironia de como uma sociedade como a nossas cujos avanços tecnológicos são
voltados quase totalmente à comunicação e informação, é capaz de produzir
incomunicabilidade nas relações mais íntimas.
O Filme
Acompanhamos
logo no início o casal anfitriões do jantar – a psicanalista Eva (Kasia
Smutniak) e seu marido Rocco (Marco Gigliani), cirurgião plástico. A filha
adolescente prepara-se para sair e tem um forte atrito com a mãe, enquanto seu pai é mais compreensível. Logo percebemos
que o relacionamento do casal está bem desgastado por conta disso.
Enquanto
preparam o jantar, os amigos vão chegando: Cosmo (Edoardo Leo) e Bianca (Alba
Rohrwacher), recém-casados, apaixonados e tentando uma gravidez; outro casal,
Lele (Valerio Mastandrea) e Carlota (Anna Fogliella), já com um relacionamento
frio, mas mantendo as aparências. E um sétimo convidado, Peppe (Giuseppe
Batiston), aguardado com impaciência por todos pois apresentará sua nova
namorada – expectativa frustrada porque chega sozinho, alegando que sua
companheira estava doente e com febre.
Peppe é um
professor, recém demitido, mas que não fala muito nem dos motivos da sua
demissão e muito menos sobre a sua nova namorada.
Logo de cara
percebemos o mix de escaramuças, máscaras e aparências que mediam as relações
entre amigos que se conhecem desde a infância.
Entre os
primeiros aperitivos servidos, surge a fofoca sobre um casal que terminou o
relacionamento após a descoberta de um e-mail da amante. Será que entre os
participantes daquele jantar também há segredos comprometedores? Com o
relaxamento e alegria das primeiras taças de vinho, alguém sugere uma variação
do velho Jogo da Verdade: deixar todos os celulares no centro da mesa a noite
inteira para que todos saibam quem liga ou manda mensagens.
Entre alguns
mais decididos e outros mais resistentes, todos acabam concordando: naquele
jantar, ninguém tem segredos para esconder e o jogo provará isso. Porém, todo
casal tem suas pulgas atrás da orelha coçando: por que o seu companheiro olha
tanto para o celular? O que há por trás desse fenômeno de dupla tela em todas
as situações? – numa mesa de restaurante, no cinema, em casa.
A vida social é uma ilusão necessária
Nunca parece
que estamos integralmente presente em alguma situação. O corpo pode estar
presente, mas sempre alguma coisa faz a mente ser ejetada para fora dali, para
algum lugar no ciberespaço.
É justamente
sobre esse impacto dos dispositivos móveis nas relações humanas que trata o
filme Perfeitos Desconhecidos.
A vida social é
uma ilusão necessária. A sociabilidade funciona em primeiro lugar através de
papéis sociais, verdadeiras máscaras públicas que nos faz poupar aos outros
nossas idiossincrasias e humores diários – pelo menos mantém uma mínima e
previsível regularidade nas relações humanas e profissionais.
Mas além dessa
dialética público/privada, há ainda a esfera dos segredos – nossos pensamentos,
perversões pessoais e as pequenas traições e mentiras nas relações pessoais e
conjugais. É, por assim dizer, o inconsciente da vida social. O que torna a
mentira uma espécie de “negociação com a verdade”.
Ou, como
fala-se a certa altura do filme em uma das linhas de diálogo, “sem segredos a
vida ficaria muito chata”.
A mentira é negociar com a verdade
Essa linha tênue entre a ilusão socialmente
necessária e a “verdade” é o que parece ser impactado não só pelas novas
tecnologias. Mas também, como previu o rei Thamus, a falta de sabedoria em
lidar com essas tecnologias de informação.
Ao contrário de
tecnologias como o telefone fixo, esse dom da ubiquidade das comunicações ainda
estava limitado à localidade para onde se dirigia para telefonar.
Bem diferente,
os smartphones, aliado às redes sociais e massengers, que criam o sujeito das
ciberutopias, um “sujeito pneumático” - forma
de subjetividade que se pretende libertar dos limites do corpo, um self quase
divino e de natureza espiritual (pneuma) com as seguintes características: a
comunicação total (como anjos incorpóreos vagando pelo ciberespaço sem
barreiras para comunicar-se) e a mobilidade total.
Essa
transparência total (ubiquidade + mobilidade) das comunicações entra em choque
com esse “inconsciente social” dos segredos privados – assim como na esfera
política e pública a transparência se confunde com a espionagem de agências de
segurança contra soberanias nacionais.
Além desse
poder de ubiquidade somada à mobilidade criar a ilusão do controle sobre seus
segredos íntimos, fazendo os usuários se descuidarem de seus rastros na redes
sociais e comunicadores instantâneos, como mostra as situações constrangedoras
do filme.
Mas, por que
não? Que mal há em fazer cair as máscaras? Revelar as “mentiras” ou as pequenas
mazelas por trás de cada um?
Certamente esse
“inconsciente social” (os pequenos segredos e mentiras de todos nós, ou as
“negociações com a verdade”) tem a mesma função da religião, segundo Freud – é
uma ilusão, mas uma ilusão necessária para fazer o indivíduo suportar, com mais
tranquilidade, o peso da vida – leia FREUD, S. O Futuro de uma Ilusão, L&PM.
Uma duplicidade
(verdade e mentira) que faz da vida social um jogo em que a sociedade somente
sobrevive graças à flexibilidade das aparências. Graças a essa estratégia
imoral em relação a seus próprios valores.
Ficha Técnica
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Título: Perfeitos Desconhecidos
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Diretor: Paolo Genovese
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Roteiro: Filippo Bologna, Paolo Costella
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Elenco: Giuseppe Batiston, Anna Foglietta, Kasia Smutniak, Marco
Gigliani, Valerio Mastandrea, Alba Rohrwacher, Edoardo Leo
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Produção: Lotus Productions, Medusa Films
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Distribuição: Outsider Films
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Ano: 2016
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País: Itália
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