quinta-feira, julho 20, 2017

"Perfeitos Desconhecidos": negociamos com a verdade através dos celulares e smartphones


Celulares e smartphones se transformaram em verdadeiras caixas-pretas das nossas vidas – registros de ligações, mensagens, nossos segredos e pecados mais íntimos estão nesses dispositivos. Passamos cada vez mais tempo fazendo dupla tela nas mais diversas situações. Se a vida social funciona dentro do triângulo público/privado/segredos, qual o impacto desses dispositivos na vida conjugal e pessoal? Esse é o tema da comédia dramática italiana “Perfeitos Desconhecidos” (Perfetti Sconosciuti, 2016). Sete amigos reúnem-se para um jantar quando alguém na mesa sugere uma nova versão do velho “Jogo da Verdade”. Só que agora, com os smartphones de todos colocados no centro da mesa – todos terão que compartilhar com os presentes as mensagens e ligações recebidas naquela noite. Mais que confusões e mal entendidos, o filme aborda como a função da mentira é, muitas vezes, mais do que iludir: é negociar com a verdade. Filme sugerido pelo nosso leitor Eduardo G.

Em Fedro de Platão há uma história sobre o chamado Julgamento de Thamus, rei de uma grande cidade do Egito. Platão relata essa história contada por Sócrates ao seu amigo Fedro: um dia, Thamus recebeu o deus inventor chamado Theuth – ele inventou o número, o cálculo, a geometria, a astronomia. E agora, apresentava a sua mais nova invenção: a escrita.

“Aqui está uma invenção que irá aperfeiçoar tanto a sabedoria quanto a memória dos egípcios”, afirmou Theuth. Mas Thamus foi inflexível no seu julgamento: “o que criou é a receita para a recordação, não para a memória. Quanto a sabedoria, seus discípulos terão a reputação dela e não a realidade. Receberão muita informação e, como consequência, serão vistos como muito instruídos. Quando, na verdade, serão bastante ignorantes”, finalizou o julgamento o rei Thamus.

Há nesse julgamento uma séria advertência à atual sociedade tecnológica: graças a Internet, navegadores, smartphones etc. temos à nossa disposição um estoque infinito de informação, acessível a qualquer instante, praticamente de qualquer lugar. Esquecemos de algo, dá um Google.

Porém, confundimos essa disponibilidade com sabedoria ou conhecimento. Se a vida social pode ser dividida na tricotomia Público/Privado/Segredo (a nossa vida política e profissional; a vida pessoal e conjugal; e nossos segredos íntimos), o que exige sabedoria e discernimento para lidar com essa ilusão necessária que é a sociabilidade, as novas tecnologias de informação parece que enfraquecem essa responsabilidade.


A caixa-preta


Se nas redes sociais criamos nossa imagem pública a partir das ilusões narcísicas pessoais, é no smartphone que colocamos todos os nossos segredos, transformando o dispositivo em uma verdadeira caixa-preta.

A comédia italiana de humor dramático (e por que não dizer, negro) Perfeitos Desconhecidos (Perfetti Sconosciuti, 2016) trata exatamente disso: a forma como lidamos com as redes sociais, a relação de dependência e ansiedade com o celular. Mas, principalmente, como os celulares viraram o depósito dos nossos segredos que escondemos tanto da vida pública quanto privada.

Sete amigos, formando três casais, reúnem-se em um jantar quando alguém na mesa sugere um jogo muito parecido com o velho “Jogo da Verdade”. Só que agora, com os smartphones de todos colocados no centro da mesa – todos terão que compartilhar com os presentes as mensagens e ligações recebidas naquela noite.

São esperados mal-entendidos e confusões entre os casais. Mas, principalmente, é revelada a ironia de como uma sociedade como a nossas cujos avanços tecnológicos são voltados quase totalmente à comunicação e informação, é capaz de produzir incomunicabilidade nas relações mais íntimas.


O Filme


Acompanhamos logo no início o casal anfitriões do jantar – a psicanalista Eva (Kasia Smutniak) e seu marido Rocco (Marco Gigliani), cirurgião plástico. A filha adolescente prepara-se para sair e tem um forte atrito com a mãe, enquanto  seu pai é mais compreensível. Logo percebemos que o relacionamento do casal está bem desgastado por conta disso.

Enquanto preparam o jantar, os amigos vão chegando: Cosmo (Edoardo Leo) e Bianca (Alba Rohrwacher), recém-casados, apaixonados e tentando uma gravidez; outro casal, Lele (Valerio Mastandrea) e Carlota (Anna Fogliella), já com um relacionamento frio, mas mantendo as aparências. E um sétimo convidado, Peppe (Giuseppe Batiston), aguardado com impaciência por todos pois apresentará sua nova namorada – expectativa frustrada porque chega sozinho, alegando que sua companheira estava doente e com febre.

Peppe é um professor, recém demitido, mas que não fala muito nem dos motivos da sua demissão e muito menos sobre a sua nova namorada.

Logo de cara percebemos o mix de escaramuças, máscaras e aparências que mediam as relações entre amigos que se conhecem desde a infância.

Entre os primeiros aperitivos servidos, surge a fofoca sobre um casal que terminou o relacionamento após a descoberta de um e-mail da amante. Será que entre os participantes daquele jantar também há segredos comprometedores? Com o relaxamento e alegria das primeiras taças de vinho, alguém sugere uma variação do velho Jogo da Verdade: deixar todos os celulares no centro da mesa a noite inteira para que todos saibam quem liga ou manda mensagens.

Entre alguns mais decididos e outros mais resistentes, todos acabam concordando: naquele jantar, ninguém tem segredos para esconder e o jogo provará isso. Porém, todo casal tem suas pulgas atrás da orelha coçando: por que o seu companheiro olha tanto para o celular? O que há por trás desse fenômeno de dupla tela em todas as situações? – numa mesa de restaurante, no cinema, em casa.


A vida social é uma ilusão necessária


Nunca parece que estamos integralmente presente em alguma situação. O corpo pode estar presente, mas sempre alguma coisa faz a mente ser ejetada para fora dali, para algum lugar no ciberespaço.

É justamente sobre esse impacto dos dispositivos móveis nas relações humanas que trata o filme Perfeitos Desconhecidos.

A vida social é uma ilusão necessária. A sociabilidade funciona em primeiro lugar através de papéis sociais, verdadeiras máscaras públicas que nos faz poupar aos outros nossas idiossincrasias e humores diários – pelo menos mantém uma mínima e previsível regularidade nas relações humanas e profissionais.

Mas além dessa dialética público/privada, há ainda a esfera dos segredos – nossos pensamentos, perversões pessoais e as pequenas traições e mentiras nas relações pessoais e conjugais. É, por assim dizer, o inconsciente da vida social. O que torna a mentira uma espécie de “negociação com a verdade”.

Ou, como fala-se a certa altura do filme em uma das linhas de diálogo, “sem segredos a vida ficaria muito chata”.


A mentira é negociar com a verdade


 Essa linha tênue entre a ilusão socialmente necessária e a “verdade” é o que parece ser impactado não só pelas novas tecnologias. Mas também, como previu o rei Thamus, a falta de sabedoria em lidar com essas tecnologias de informação.

Ao contrário de tecnologias como o telefone fixo, esse dom da ubiquidade das comunicações ainda estava limitado à localidade para onde se dirigia para telefonar.

Bem diferente, os smartphones, aliado às redes sociais e massengers, que criam o sujeito das ciberutopias, um “sujeito pneumático” - forma de subjetividade que se pretende libertar dos limites do corpo, um self quase divino e de natureza espiritual (pneuma) com as seguintes características: a comunicação total (como anjos incorpóreos vagando pelo ciberespaço sem barreiras para comunicar-se) e a mobilidade total.

Essa transparência total (ubiquidade + mobilidade) das comunicações entra em choque com esse “inconsciente social” dos segredos privados – assim como na esfera política e pública a transparência se confunde com a espionagem de agências de segurança contra soberanias nacionais.

Além desse poder de ubiquidade somada à mobilidade criar a ilusão do controle sobre seus segredos íntimos, fazendo os usuários se descuidarem de seus rastros na redes sociais e comunicadores instantâneos, como mostra as situações constrangedoras do filme.

Mas, por que não? Que mal há em fazer cair as máscaras? Revelar as “mentiras” ou as pequenas mazelas por trás de cada um?

Certamente esse “inconsciente social” (os pequenos segredos e mentiras de todos nós, ou as “negociações com a verdade”) tem a mesma função da religião, segundo Freud – é uma ilusão, mas uma ilusão necessária para fazer o indivíduo suportar, com mais tranquilidade, o peso da vida – leia FREUD, S. O Futuro de uma Ilusão, L&PM.

Uma duplicidade (verdade e mentira) que faz da vida social um jogo em que a sociedade somente sobrevive graças à flexibilidade das aparências. Graças a essa estratégia imoral em relação a seus próprios valores.


Ficha Técnica

Título: Perfeitos Desconhecidos
Diretor: Paolo Genovese
Roteiro:  Filippo Bologna, Paolo Costella
Elenco:  Giuseppe Batiston, Anna Foglietta, Kasia Smutniak, Marco Gigliani, Valerio Mastandrea, Alba Rohrwacher, Edoardo Leo
Produção: Lotus Productions, Medusa Films
Distribuição: Outsider Films
Ano: 2016
País: Itália

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