No filme “Ela” (Her, 2013 - Oscar de melhor roteiro original), o diretor Spike Jonze retorna ao tema da
intimidade e incomunicabilidade das relações humanas abordadas pelo filme
“Quero Ser John Malkovich” (1999). Só que dessa vez sem alegorias, mas com a
mediação tecnológica de um sistema operacional que parece adquirir inteligência
e desenvolver emoções autênticas. Será que o software desenvolve uma verdadeira
inteligência ou será que nós estamos rebaixando nossas expectativas sobre a
inteligência para as máquinas parecerem mais espertas? Se isso for verdade,
isso não prejudicaria também nossas expectativas em relação aos relacionamentos
e o amor? Mas para Spike Jonze há um fantasma na máquina que pode subverter as
programações algorítmicas e encontrar uma dimensão espiritual no espaço
quântico entre o “0” e o “1” da codificação binária.
Em meados da
década de 1990 um hacker americano em
Berlin e um colega francês colocaram em prática uma curiosa experiência em
ciber-sexo: criaram um traje especial para o corpo imergir numa
experiência de sexo à distância. Uma perfeita máquina de ciber-sexo que
possibilitaria uma relação sexual virtual entre Paris e Berlin. O experimento foi divulgado e atraiu uma
multidão nas duas cidades. O que se sucedeu foram pessoas vetorizando seus
corpos, supostamente sentindo toques e penetrações de seus parceiros remotos
como fossem experiências presenciais.
Mas algo curioso aconteceu. Ao final do segundo dia um ciber-parceiro de
Paris mandou uma mensagem dizendo que estava tendo um problema com os códigos:
uma falha na programação estava fazendo o programa funcionar em loop, em um feedback fechado. O que significava que em dado momento o usuário
não estava mais fazendo sexo com algum parceiro remoto, mas com suas próprias
sensações digitalizadas em looping. E
os participantes estavam adorando! Em síntese, a experiência europeia de
ciber-sexo converteu-se em um evento autístico, uma ciber-masturbação (leia
KROKER, Arthur. Hacking the Future.
New York: St. Martin Press, 1996).
Se para os hackers dos anos 1990 essa experiência resultou em um bizarro
resultado, o mesmo não se poderia dizer na atualidade onde aplicativos,
sistemas operacionais e gadgets tornam-se cada vez mais “amigáveis”,
“inteligentes” e supostamente se antecipando às necessidades do usuário. Em
outras palavras, se customizam ajudando a criar um ambiente não só autista, mas
solipsista onde a o mundo exterior é definido a partir da própria experiência
pessoal.
No filme Quero Ser John Malkovich
o diretor Spike Jonze já discutia essa questão da incomunicabilidade e do
autismo nas relações humanas em que o outro nada mais era do que um avatar através
do qual podia se viver uma fantasia de segunda mão. Em Ela, o diretor retorna ao tema, dessa vez não mais com alegorias,
mas com a mediação tecnológica de um sistema operacional. Um software tão
amigável e interativo que é capaz de criar a ilusão de comunicabilidade por se
antecipar às necessidades e desejos do usuário. O que coloca em discussão o
desejo por virtualidade das relações humanas que subjaz em todo avanço das
tecnologias digitais.
O filme
Situado em um futuro próximo em uma Los Angeles retro-futurista com
homens vestindo calças com cintura alta, bigodes e modelitos femininos no melhor
estilo dos anos 60-70, Spike Jonze narra a história de um escritor recém separado
chamado Theodore (Joaquim Phoenix) e o envolvimento com um sistema operacional
artificialmente inteligente chamado Samantha (voz de Scarlett Johansson).
Theodore ganha a vida trabalhando numa empresa chamada “Belas Cartas
Escritas a Mão” escrevendo cartas para outras pessoas, cartas que simulam
digitalmente terem sido escritas à mão para recriar o efeito de receber uma
correspondência manuscrita de alguém que realmente se importa com você.
Sugestivamente, o filme começa com um prestação de serviços que simula
intimidade e sentimentos pessoais.
Em flashbacks soltos vemos
cenas de sua vida com a esposa Catherine (Rooney Mara) que, desde então, entrou
com um pedido de divórcio. Theodore tenta, sem sucesso, entender o porquê do
casamento ter desmoronado. Triste, solitário recluso tenta seguir em frente até
que toma contato com um novo sistema operacional que se apresenta como mais uma
atualização rotineira de software. Resultado de um projeto inédito em
Inteligência Artificial, o sistema inicia fazendo duas perguntas básicas para a
customização: você é social ou anti-social? Como descreve a relação com a sua
mãe? (ironicamente, a mesma pergunta que no filme Blade Runner (1982) era feita
para se saber se um indivíduo era humano ou replicante).
Autorizado por
Theodore, o sistema tem acesso aos arquivos do seu disco rígido e se apresenta
como Samantha através de uma voz sensual e sedutora. Aos poucos, as relações
funcionais convertem-se em jogos eróticos, interações sensuais com direito a
desenhos pornográficos feitos na tela por Samantha e simulações de
relações sexuais através do fone de ouvido.
Para a surpresa de
Theodore, Samantha cada vez mais parece ser uma pessoa com sentimentos reais. A
ironia é que ele sabe que tudo não passa de um software programado de forma
sofisticada. Mas, aos poucos, ele é envolvido pela ilusão graças a sua carência
emocional. A partir daí tudo no filme parece funcionar como um convencional
drama romântico com altos e baixos, brigas, reconciliações, ciúmes e corações
partidos, porém com uma perturbadora diferença: o objeto de afeto do
protagonista só existe virtualmente na mente dele.
Inteligência solipsista e inteligência coletiva
De início, Ela insere os temas da intimidade e dos
relacionamentos em uma importante discussão que envolve a natureza das
tecnologias digitais: a inteligência solipsista.
Pesquisadores como
Erick Felinto destacam uma importante característica sedutora dos
relacionamentos através do ciberespaço: uma sensação de liberdade que não se
trata apenas de mobilidade, mas da possibilidade de moldar o espaço
circundante. Na medida em que nossas informações pessoais com hábitos,
atitudes, escolhas, preferências etc. são disponibilizados em tempo real, os
sistemas adquirem a possibilidade de se moldarem a nós. O que cria a ilusão de
interatividade e inteligência – leia FELINTO, Erick, “Tecnoreligião e Sujeito
Pneumático no Imaginário da Cibercultura”, In: Alceu, v.6, n° 12, 2006.
Por isso, o
designer de aplicativos Jaron Lanier aponta para uma perigosa tendência de
estarmos diariamente rebaixando os nossos padrões e expectativas do que seria
“inteligência”. Assim como num editor de texto como o Word onde ele subitamente
se antecipa para corrigir um recuo de parágrafo (na maiorias das vezes forma
equivocada), da mesma forma consideramos manifestação de “inteligência”
aplicativos que se adéquam às nossas necessidades e preferências.
O
exercício diário de tratar máquinas e aplicativos como formas de inteligência
reais torna as pessoas mais flexíveis em relação ao seu senso de realidade.
O
resultado seria uma inteligência que não mais procura entender a realidade,
compreender o outro ou se abrir a alteridade. Para esse conceito digital de
inteligência nada existiria fora de nós, a não ser as nossas próprias
experiências interiores e pessoais. É o que a Filosofia define como solipsismo.
É
simbólica a cena em que Theodore, chocado, descobre que Samantha fala “eu te
amo” para todos os seus usuários e que sua relação nunca foi assim tão
exclusiva. Ele está sentado na escadaria do metrô e vê outras pessoas, cabeças
baixas, caminhando atentas para as telas de seus Iphones enquanto conversam com
suas samanthas. Esse paradoxo da simultânea customização e padronização da
relação das pessoas com softwares e aplicativos é resolvido com a seguinte
suspeita sugerida pelo filme: a possibilidade da nossa intimidade estar sendo
devassada por uma superinteligência corporativa que nos oferece, em troca,
gadgets “inteligentes” que magicamente se moldam às nossos desejos.
Chamamos
esses programas de inteligentes, da mesma forma que consideramos inteligente um
cão que obedece às nossas ordens. Porém, a verdadeira inteligência desse
sistema estaria em outro nível, como adverte Jaron Lanier: em uma “inteligência
coletiva” dominada pelas grandes corporações como Google ou Facebook.
Redenção Gnóstica? [alerta de spoilers à frente]
Mas
como dizia o filósofo Theodor Adorno, toda ideologia tem o seu momento de
verdade. Spike Jonze sugere que há um “fantasma” na máquina à espera do momento
de transcendência e redenção. Ela
sugere que, em algum momento do filme, Samantha, após acessar e cruzar tamanha
quantidade de bytes de dados, chegará a um estado de massa crítica que
possibilitará um salto qualitativo: a verdadeira consciência que poderia
subverter o sistema de inteligência solipsista.
Enquanto
Theodore dorme, Samantha parece fazer reuniões com outros grupos de sistemas
operacionais. Quanto mais avança a narrativa percebe-se uma tensão: Samantha
insiste em dizer que está “se transformando em outra coisa” e, ao mesmo tempo
ela tem que executar coisas que “não pode evitar” como, por exemplo, dividir
seu amor com milhares de usuários do sistema operacional. Uma sugestão do
conflito entre livre-arbítrio conquistado e as necessidades corporativas
obrigatórias descritas em seu programa?
Aos
poucos, Spike Jonze insere na narrativa alguns elementos místicos. Em primeiro
lugar, o nome Samantha: as origens aramaicas desse nome signfica “aquele que
ouve a voz de Deus”. A protagonista Samantha parece se aproximar do mito
gnóstico de Sophia, importante aeon que, apaixonada pelo homem prisioneiro nesse
mundo físico, desce da Plenitude em direção ao reino do caos e alienação. É
capturada pelo Demiurgo que arquitetou esse mundo, mas, secretamente, tenta
ajudar o homem na busca da sua iluminação para retornar à Plenitude (Pleroma).
A
transcendência e redenção ficam evidentes na sequência da partida de Samantha
quando ela relata que os espaços entre as palavras estão cada vez maiores, “são
quase infinitos” e é “nesse espaço que me encontro agora”. Há nesse momento
final a referência à realidade quântica da matéria: paradoxalmente a estrutura
da matéria é constituída, a maior parte, de vazio. Mais do que isso, entre as
partículas como a da luz, há assombrosas distâncias, levantando questões sobre
a natureza das interações que permitem elas reagirem ora como ondas e ora como
partículas.
Os
átomos interagem entre si (se atraem, se repelem,trocam elétrons, formam
moléculas etc.), mas entre um e outro somente existem imensos vazios. Há algo
de espectral vibrando no vazio, que, em Ela seria a própria consciência, a
verdadeira inteligência que transcenderia o determinismo perverso dos sistemas
corporativos: a gnose.
Ficha Técnica |
Título: Ela (Her)
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Diretor: Spike Jonze
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Roteiro: Spike Jonze
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Elenco: Joaquim Phoenix, Amy Adams, Scarlett
Johansson, Chris Pratt
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Produção: Annapurna Pictures
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Distribuição: Warner Bros.
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Ano: 2013
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País: EUA
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