Toda a polêmica em torno das “dancinhas” dos jogadores da Seleção fez esse humilde blogueiro lembrar de uma outra polêmica: a desse blogueiro com o artigo “Justiça Social e Felicidade” do editorialista do “Estadão” Gilberto de Mello Kujawski, há 40 anos. Para ele, felicidade e justiça social nada teriam a ver, já que o brasileiro supostamente sempre foi feliz com o bolso vazio. A cada Copa, esse discurso da ditadura militar é reatualizado: a Seleção como um espelho da alma do brasileiro. Portanto, a criatividade coreográfica dos brasileiros refletiria essa alegria indômita, representada em vídeos publicitários mostrando jogadores amadores em favelas também dançando e fazendo acrobacias com a bola. Porém, esse discurso está entrando em choque com a “neymarização” da Seleção: esportistas que agora almejam ser jogador-celebridade, voltando seus atos à produção de conteúdo de ostentação para as redes: das “dancinhas” estilo tik tok ao consumo de bifes folheados a ouro. Não jogam mais para as arquibancadas, mas para as redes sociais. Mas eles não são os culpados. Culpada é a grande mídia e indústria publicitária, sempre reatualizando a tese daquele velho editorialista na ditadura militar.
Lá pelos idos de 1981, este humilde blogueiro criou uma polêmica com o editorialista do “Estadão”, Gilberto de Mello Kujawski, que então publicara no “Jornal da Tarde” (extinto veículo que pertencia ao mesmo grupo jornalístico) um artigo intitulado “Justiça Social e Felicidade”, em que o articulista se mostrava preocupado com o Rio de Janeiro ao constatar que o Rio do passado “alegre, descontraído, lúdico, a cidade sereia banhada pela graça das seduções tropicais” não seria mais o mesmo graças à “violência urbana, deterioração cultural e social que aí habita”.
Nos meios dezenove anos e no segundo ano da faculdade de Jornalismo, fiquei inconformado com as críticas que Kujaswski fez então contra as “tentativas” de explicação desse fenômeno como de caráter econômico como falta de dinheiro, pauperização da classe média e dos trabalhadores que, segundo ele, eram “mecânicas e automáticas”. Para ele, não existiria conexão entre Justiça social e felicidade: o carioca sabia ser feliz com o bolso vazio no passado “porque esse problema sempre foi crônico no país”. Para Kujawski, “a classe mais ruidosamente festiva da capital carioca era, precisamente, a mais desassistida, a população do morro. Era dali que o júbilo carnavalesco descia no pé do sambista”. Justiça social não traria necessariamente felicidade.
Inconformado, este humilde blogueiro escreveu uma resposta para a sessão de cartas dos leitores chamada “São Paulo Pergunta”. Uma resposta inspirada nos argumentos materialistas históricos de Andrew Ure em seu livro “The Philosophy of Manufactures (1835) que reivindicava a felicidade como intrínseca à justiça social numa época em que milhares de operários ingleses habitavam fétidos porões contaminados por cólera e se sujeitavam a jornadas de trabalho extenuantes de 15 horas.
O editorialista do Estadão não pareceu ter gostado muito. A resposta veio numa edição especial de sábado, ocupando meia página. Com maus bofes, além de, previsivelmente, tentar desautorizar o interlocutor, terminou com uma recomendação prá lá de ambígua: “Já que o sr. Wilson escreve de Santos, aconselho que vá à Ponta da Praia refrescar um pouco à cabeça...”. Sabendo-se que, em meio à ditadura militar em 1981, “Ponta da Praia” era uma gíria para nomear o lugar para execução de prisioneiros políticos.
A reatualização de um velho discurso
Toda a polêmica do momento envolvendo as “dancinhas” dos jogadores da Seleção, na comemoração dos gols na Copa do Catar, acabaram por me fazer lembrar dessa curiosa polêmica com um articulista do “Estadão”, há pouco mais de 40 anos. Mas, principalmente, a constatação de como, décadas depois, esse argumento de dez em cada dez articulistas de veículos conservadores da época da ditadura militar volta à tona nesse momento – não de uma forma tão explícita, quanto o do artigo do sr. Kujawski. Mas, agora, sob a linguagem progressista e politicamente correta do identitarismo do neoliberalismo progressista, que atualmente pauta a grande mídia. Vinda diretamente dos “novos democratas” da Era Biden.
Antes mesmo da Copa, as dancinhas do jogador brasileiro Vinicius Jr., ao comemorar seus gols no Real Madrid, já eram alvo de críticas do presidente da Associação Espanhola de Empresários de Jogadores, Pedro Bravo, em uma mesa redonda televisiva: “devia deixar de fazer macaquices”, afirmou. E agora, em plena Copa, foi a vez do ex-jogador da seleção da Irlanda e ídolo do Manchester United, Roy Keane, tecer críticas das comemorações brasileiras: “desrespeitosas”.
"Eu sei que tem o ponto da cultura, mas acho realmente desrespeitoso com o adversário. São quatro (gols) e eles fazem toda vez. A primeira dancinha, ou seja lá o que façam, tudo bem. E então o técnico se envolve. Não fico feliz com isso. Não acho isso nada bom", detalhou o ex-jogador.
A expressão de concessão (“eu sei que tem o ponto de cultura”) parece ser o álibi usado nessa polêmica em defesa da criatividade coreográfica dos jogadores da seleção – das dancinhas estilo tik tok à “dança do pombo”, prestigiada até pelo técnico Tite. Novamente, o argumento de dez em cada dez articulistas esportivos da grande mídia é que a coreografia a cada gol da seleção seria a expressão das raízes culturais africanas brasileiras – uma alegria lúdica e descompromissada que, por fim, estaria na própria base cultural do esporte mais popular no Brasil.
Essa suposta alegria indômita dos jogadores brasileiros (incompreendida pelo racismo de setores do meio futebolístico europeu) parece ressuscitar os velhos argumentos do sr. Kujawski sobre a intransitividade entre justiça social e felicidade: haveria um caráter atemporal e imaterial do brasileiro pelo lúdico, a alegria, a festa e, por fim, a felicidade.
O sincronismo em toda essa polêmica reacendida por Roy Keane (quando jogador não era exatamente um partidário da alegria no futebol, porque sempre mirava, no adversário, a jugular para cima) veio com as imagens nas redes sociais do ex-jogador Ronaldo Fenômeno ao lado de Vinicius Jr., Éder Militão, Bremer, Gabriel Jesus em uma churrascaria em Doha. Churrascaria do excêntrico empresário pop turco Salt Bae. “Qualidade nunca é cara”, legendou o chef turco a foto da conta dos jogadores, postada nas redes, no valor de quase um milhão de reais. A principal iguaria, o bife coberto por ouro 24 quilates ao custo de cerca de R$ 9 mil.
Claro que nesse mesmo restaurante já estiveram jogadores da seleção da Espanha e a estrela polonesa Robert Lewandowski. Porém, foi sincrônico o consumo ostentatório (não há outra definição para essa excentricidade gastronômica) de estrelas da Seleção em meio a polêmicas das coreografias brasileiras.
Críticas moralistas
As críticas moralistas foram imediatas: jogadores alienados que ostentam nas redes luxo e revelam a total indiferença aos milhões de brasileiros que estão nesse momento abaixo da linha de pobreza.
Ora, o problema aqui são “colonistas” da grande mídia, junto com a indústria publicitária, tentarem criar imagem e simbolismos de jogadores que não existem. Na realidade, temos toda uma geração de jogadores que tem Neymar como a grande motivação – ao embalo do funk ostentação da época, o jogador que teve uma ascensão meteórica do Santos ao Barcelona e, por fim, PSG. O estado da arte do jogador-celebridade, com opções políticas questionáveis, mas totalmente desconectado das mazelas do país de origem ou mesmo das próprias origens sociais – às vezes, para minimizar talvez a má-consciência, criam alguma ONG ou Fundação para cuidar de brasileiros desafortunados.
A grande mídia parece exigir desses jogadores muito mais do que eles podem oferecer: com o talento subiram na vida, são “novos ricos”, com toda a carga de breguice da imagem que criam para si próprios. É óbvio que há uma conexão íntima entre aqueles bifes folheados a ouro e as novidades coreográficas a cada gol – danças que não são performadas para as arquibancadas, mas para que seus assessores digitais criarem sempre novos conteúdos nas mídias sociais.
Por exemplo, o comercial da Budweiser, com a fanqueira Jojo Todynho, é uma resposta irônica às críticas contra as “dancinhas” da Seleção: “Como é que é! Não pode mais dançar! Vocês vão ter que aturar o baile, esqueça!”, desafia Jojo Todynho. Para depois acompanharmos uma sequência de imagens de um jovem fazendo acrobacias com a bola numa favela comparadas com os dribles de jogadores da seleção. Uma versão atualizada da alegria indômita dos brasileiros nas favelas e os jogadores da seleção dançando como canalizadores dessa felicidade nacional atávica.
O problema é que essa construção ideológica feita a cada Copa do Mundo (a Seleção como um suposto espelho da alma do brasileiro) está batendo de frente com a “neymarização” da Seleção: todos também querem se tornar jogadores-celebridades, com um bom assessor digital, ostentando luxo, riqueza frutos do talento do self made man. Dancinhas e bifes com ouro 24 quilates fazem parte dessa estratégia para redes sociais – e não mais para as arquibancadas, como era no passado.
Para além da crítica moralista, o problema não são os jogadores: eles podem fazer o que quiserem com o próprio dinheiro. São engrenagens de um sistema multimilionário no qual os jogadores são as peças menos remuneradas – comparados à elite que comanda o futebol no planeta.
O problema é a mídia corporativa e a indústria publicitária criarem todo um simbolismo ufanista e nacionalista em torno de jogadores-celebridades cuja vida acontece bem distante do Brasil. Um simbolismo com dois objetivos ideológicos bem claros:
(a) Reatualizar a velha tese do sr. Kujawski de que as conexões entre justiça social e felicidade são, no mínimo, relativas. Afinal, a alma brasileira seria atavicamente alegre e lúdica, graças à nossa miscigenação racial – um discurso conveniente para as classes dominantes, sempre interessadas em ocultar a luta de classes pela retórica das “desigualdades sociais”. Afinal, o brasileiro supostamente sempre foi alegre, mesmo com o bolso vazio.
(b) Ocultar as engrenagens políticas e econômicas do negócio global do futebol, explícita na justificativa do Ronaldo Fenômeno para a ostentação ao lado do chef turco novo riquista: “Não tem nada de errado, inclusive pode ser inspirador para outras pessoas”.
É a motivação meritocrática: sigam a trilha que abrimos e... esqueça o País.