Depois de um ano do histórico vexame de 7 X 1 contra a Alemanha na Copa
do Mundo o cenário do futebol brasileiro é de decadência técnica e financeira
com um ex-presidente da CBF preso pelo FBI, estádios vazios em um campeonato
longo e desinteressante sob o rígido controle do monopólio midiático das
Organizações Globo. A imposição de datas, horários dos jogos, fórmulas de
campeonatos de acordo com os interesses comerciais da emissora é apenas a
superfície da questão. Mais do que isso, a própria transformação do futebol
brasileiro à imagem e semelhança da linguagem do telejornalismo da TV
Globo está destruindo a qualidade do próprio produto que ela pretende vender. É
o chamado “Efeito Heisenberg”, efeito midiático das coberturas extensivas onde
as mídias não retratam mais realidades, mas a si mesmas e o impacto delas sobre
os fatos.
Nesses últimos
dias a grande mídia nos lembrou por matérias especiais que há um ano o futebol
brasileiro sofreu uma das suas maiores humilhações: a derrota de 7 X 1 contra a
Alemanha em uma edição da Copa do Mundo realizada no próprio País. Um ano
depois, temos um ex-presidente da CBF preso pelo FBI na Suíça à espera de
extradição, um campeonato brasileiro acontecendo em estádios vazios com jogos
de qualidade técnica em rápido declínio e a progressiva queda de audiência dos
jogos televisionados pela TV Globo.
Esse blog que
lida, entre outros temas, com as conexões entre semiótica e sincromisticismo,
sabe que quando eventos se tornam bizarros ou anômalos como a acachapante goleada
de 7 X 1 deixam de ser meros eventos para tornarem-se sintomas. Naquela
oportunidade, o Cinegnose encontrou dois fatores extra-campo que explicariam a
anomalia: o chamado “Efeito Heisenberg” midiático e a condição esquizofrênica
da grande mídia – clique aqui.
A condição
esquizofrênica da grande mídia pode ser resumida da seguinte maneira: tentava faturar
publicitariamente com a Copa do Mundo e ao mesmo tempo, na condição de principal
instrumento de oposição ao Governo Federal, esperava uma “bala de prata” que
inviabilizasse ou desmoralizasse o evento.
Mas o fator de
longo prazo é o Efeito Heisenberg, conceito criado por Neal Glaber para
designar o efeito secundário das coberturas midiáticas: se o principal
efeito da onipresença das mídias é transformar quase tudo que é noticiado em
entretenimento, o efeito secundário é forçar quase tudo a se transformar em
entretenimento para atrair a atenção da mídia – sobre isso clique aqui.
O termo “Efeito
Heisenberg” é uma referência ao princípio da incerteza da mecânica quântica de
Werner Heisenberg (1901-1976): quando se tenta estudar uma partícula atômica, a
medição da posição necessariamente perturba o momentum de uma
partícula. Em outras palavras, Heisenberg queria dizer que você não pode
observar uma coisa sem influenciá-la. De forma análoga, a mídia não consegue
cobrir um evento sem também influenciá-lo.
As mídias não
estão mais relatando o que as pessoas fazem. Estão relatando o que elas fazem
para chamar a atenção das mídias. Na medida em que os fatos acontecem para as
mídias, elas estão cada vez mais cobrindo a si mesmas e o impacto sobre os
fatos.
Efeito Heisenberg no esporte
O semiólogo
italiano Umberto Eco já havia observado o início desse fenômeno no futebol – o
fato de saber que será transmitido influencia na sua preparação: a passagem da
velha bola de couro cru para a bola televisiva xadrez ou a troca dos uniformes
por motivos cromáticos perceptivos seriam alguns exemplos – leia ECO, Umberto,
“Tevê: A Transparência Perdida” In: Viagens
na Irrealidade Cotidiana, R. Janeiro: Nova Fronteira, 1984 .
Mas com o passar do
tempo, as transmissões esportivas extensivas das TVs cobraram um alto preço
para o esporte: de jornadas esportivas ou realidades extra-televisivas passaram
a ser conteúdos gerados pelas próprias emissoras de TV. Em outras palavras, as
mídias não se contentaram mais em apenas transmitir. Passaram a ser produtoras
ou donas dos eventos para que estes se ajustassem ao timing dos negócios.
Veja por exemplo o
caso do tênis. Esporte cujas origens são pastorais e contemplativas, teve suas
regras alteradas para se adequar à sintaxe televisiva com a adoção do tie braker para a diminuição do tempo
dos games e a punição para o jogador que excede o tempo limite entre os pontos.
Ou seja, encaixar as partidas ao tempo limitado da grade televisiva.
Mas no caso do
futebol brasileiro o efeito Heisenberg torna-se mais deletério com o fator do
monopólio televisivo da Globo – a emissora detém a exclusividade nos direitos
de transmissão nas TVs aberta, fechada, pay-per-view, comercialização de placas
de publicidade, telefonia celular, promoções atreladas ao Brasileirão etc. Isso
sem falar no vôlei (o departamento de Marketing da emissora comercializa
contratos de patrocínio) e no basquete – a Globo é sócia do Novo Basquete
Brasil (NBB).
A imposição de
datas, horários dos jogos, fórmulas de campeonatos de acordo com os interesses
comerciais da emissora é apenas a superfície da questão. Mais do que isso, a
própria transformação do futebol brasileiro à imagem e semelhança da sintaxe
televisiva global está destruindo a qualidade do produto de entretenimento que
ela pretende vender.
A goleada imposta
pelo Barcelona ao Santos na final do Mundial de Clubes em 2011 (4x0) foi apenas
um sinal dessa decadência técnica cujo ápice seria o vexame da Copa do Mundo.
Saudado como a renovação do futebol brasileiro com Neymar e Ganso e comandado
pelo técnico Muricy Ramalho que supostamente estaria seguindo os passos de Telê
Santana, o Santos caiu apático, sem luta e sem jogar futebol.
Goleada do Barcelona no Santos em 2011: um sinal do que aconteceria na Copa do Mundo |
Efeito Heisenberg e a decadência técnica do futebol
Em primeiro lugar,
o Efeito Heisenberg transforma o futebol em entretenimento. E pela linguagem
tautista da TV Globo significa enquadrar o futebol a um jornalismo esportivo
que vive sempre em busca de novos personagens. A promoção de novos “craques” ou
jogadores exóticos, frasistas ou com ótimo rendimento nas entrevistas surge com
a mesma velocidade com que empresários querem vender jogadores para a Europa –
e a promoção televisiva de novos “personagens” vem a calhar para incrementar
visibilidade ao atleta.
A consciência que
o jogador desenvolve de que atua em um ambiente altamente midiatizado abandonou
a época folclórica das comemorações de gol engraçadas para atrair as câmeras:
agora os jogadores temem o drible e a posse da bola – um possível desarme ou
lance fracassado será repercutido em slow
motion.
Torna-se
imperativo passar rapidamente a bola, dar chutões, fazer ligações direta da
defesa para o ataque. Velhos meio campistas como Gerson, Ailton Lira ou
Rivelino que detinham a bola e pensavam no jogo, dá lugar para a correria de
jogadores que querem se desfazer da bola o mais rápido possível.
Por isso jogar
futebol para a TV passa a ser um espetáculo de chuveirinhos, chutões, carrinhos
e um show de reclamações contra árbitros e constantes trejeitos de “não deu” a
cada chute em direção ao gol que lança a bola em órbita – afinal os jogadores
sabem que suas fisionomias serão vistas em close.
Nesse ambiente
televisionado o jogador que arrisque dar dribles e chamar o jogo para si só
poderá ser visto como uma ofensa contra os colegas de profissão: será
imediatamente punido com um carrinho demolidor ou com comentaristas acusando o
infeliz de “não jogar pra frente”.
O tédio diante dos
chutões e correrias cria até situações involuntariamente hilárias na grande
mídia. Por exemplo, no intervalo de mais um jogo horrível e entediante do
Brasileirão, o comentarista da SporTV Lédio Carmona não se conteve e, irritado,
disse que não via nada de bom na partida: só chutões e passes errados.
Desconcertado, o narrador Luiz Carlos Junior tentou consertar falando em “ver o
lado positivo do jogo” e cortando para outro comentarista no estúdio.
Certamente Carmona estava desestimulando a já parca audiência a assistir ao
segundo tempo...
Nesse novo cenário
de correria, chutões e ligações diretas para o ataque, o condicionamento físico
do árbitro será mais exigido. Os antigos árbitros vestidos de preto ostentando
até barriguinhas (o olhar e conhecimento das regras eram mais importantes)
foram substituídos por árbitros fisicamente bem condicionados e ostentando
corpos sarados e jovens – afinal, eles também ostentam marcas publicitárias.
Não é à toa que junto com o futebol, decai a qualidade técnica da arbitragem: a
correria é mais importante do que a interpretação das regras.
Estratégias Indiretas das Relações Públicas e Publicidade
Juntamente com
Efeito Heisenberg vem as chamadas “estratégias indiretas”, conceito criado pelo
historiador Daniel Boorstin sobre a era da hegemonia das Relações Públicas e
Publicidade: quando tudo deve se tornar entretenimento para chamar a atenção da
mídia, disso decorre que todo problema real poderia ser solucionado por meio de
uma “estratégia indireta” – deve ser criada através da imagem uma impressão de
que o problema está sendo solucionado. Mais do que solucionar problemas, é mais
importante criar a percepção de que está sendo solucionado.
Diante do
esvaziamento técnico e financeiro do Brasileirão, Globo e CBF respondem através
da imagem – tenta-se nos jogos criar uma “atmosfera” que lembre jogos da Copa
do Mundo ou da Champions League:
protocolos para o início dos jogos com hino nacional e o árbitro pegando a bola
do campeonato colocada em pedestal no final do túnel por onde entram os
jogadores perfilados, com direito a close da câmera.
As arenas (legado
da Copa no Brasil) com suas cadeiras coloridas e iluminação feérica disfarçam o
vazio das arquibancadas. E o microfone aberto do boom operator ao lado do campo de jogo amplifica gritos dos
técnicos, jogadores e torcedores profissionais junto ao gramado, tentando criar
a sensação de uma partida tensa e dramática.
Algo parecido
ocorre no chamado Novo Basquete Brasil onde a Globo tenta emular a Liga de
Basquete Norte-americana: placar eletrônico suspenso no centro da quadra,
mascotes saltitando e shows de cantores no intervalo etc. Enquanto isso, o
basquete brasileiro vive sua longa agonia técnica.
Concluindo, o
Efeito Heisenberg é uma histórica consequência da onipresença midiática na
sociedade, mas no Brasil esse efeito torna-se exponencial com o monopólio
global de comunicações. Até o ponto irracional onde o próprio monopólio mata a
sua galinha dos ovos de ouro: o futebol brasileiro.
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