Em tempos de guerra cultural que gera profunda polarização política, está cada vez mais difícil entender ironias, porque espíritos armados vê tudo na literalidade. O filme “A Caçada” (The Hunt, 2020, disponível na Netflix) foi uma das vítimas dessa polarização – um filme que dispara ironias contra teorias da conspiração e cultura do cancelamento: elites liberais que se reúnem em uma mansão remota para caçar humanos por esporte. “A Caçada” ironiza coisas como o “Pizzagate” (no filme temos o “Manorgate”). Seu lançamento sofreu sucessivos adiamentos. "A Caçada" zomba das elites liberais politicamente corretas, a cultura do cancelamento e a histeria conspiratória de extrema-direita. E, assim como em produções posteriores como “Não Olhe Para Cima”, joga com a histeria online que muitas vezes parece ao mesmo tempo presciente e redundante – como as teorias conspiratórias, de tão caricatas, poderiam virar profecias autorrealizáveis.
No início desse mês a Space X, do multimilionário Elon Musk, anunciou um serviço de satélite exclusivo para utilização militar: o Starshield. Esse novo serviço voltado para o governo e militares dos EUA alavanca a tecnologia anterior da Starlink e cria um sistema de lançamentos para uso do governo, com foco na observação da Terra e comunicações estratégicas militares.
No momento, Elon Musk está sendo considerado o inimigo número um da liberdade de expressão pelos democratas nos EUA (desde que comprou o Twetter) suspendendo perfis de jornalistas críticos a ele. Além de aparecer nas redes sociais em fotos em que posa com réplicas de armas. Para as redes, Musk é um trumpista e simpatizante de extrema-direita. Mas na prática, colabora com a geopolítica do governo democrata de Joe Biden e faz negócios com a indústria militar norte-americana.
Parece que há algo muito além da atual cismogênese criada pela guerra híbrida global através das redes sociais, que objetiva minar a opinião pública, sistemas políticos nacionais e a própria confiança na Democracia representativa. Para além da espuma midiática da polarização criada pela guerra cultural (politicamente corretos versus incorretos; wokes versus alt-right etc.), parece que há um sistema político e econômico quem mantem-se intacto, fora de qualquer foco ou escrutínio, porque corações e mentes estão ocupados em duelar nas mídias sociais.
Esse é o gênio da guerra híbrida, satirizado pelo incompreendido filme A Caçada (The Hunt, 2020), disparando sua ironia nas teorias da conspiração e cultura do cancelamento. O problema e que nos dias atuais de cismogêneses, fica cada vez mais difícil as pessoas entenderem ironias. Dada a polarização extrema, os espíritos estão cada vez mais encouraçados, entendendo tudo na literalidade.
Originalmente agendado para ser lançado em setembro de 2019, foi descartado no seu pré-lançamento depois que Trump e seus seguidores nas redes ridicularizaram um filme que provavelmente jamais assistiram e, do outro lado do espectro político, criticaram como uma apologia às teorias conspiratórias: elites liberais que se reúnem pela primeira vez em uma mansão remota para caçar humanos por esporte, ecoando coisas como o “Pizzagate” que custou a eleição da democrata Hillary Clinton – no filme temos uma irônica “Manorgate”.
E para complicar, uma série de tiroteios em massa sacudiram os EUA no mês do lançamento programado (El Passo, Texas; Dayton, Ohio; e Gilroy, Califórnia) fez a Universal Pictures rever a data e todo o material de divulgação.
Claro que a extrema-direita viu em A Caçada “um projeto liberal de Hollywood para promover violência anticonservadora”. Mas pouca gente assistiu, criando uma campanha de marketing secundária: "O filme mais comentado do ano é aquele que ninguém realmente viu". Para finalmente ser lançado em 2020, com novo trailer e poster.
Na verdade, A Caçada zomba tantos das elites liberais politicamente corretas, a cultura do cancelamento e a histeria conspiratória de extrema-direita. E, assim como em produções posteriores como Não Olhe Para Cima, como a histeria online sangra a realidade, o que faz com que esta histeria pareça ao mesmo tempo presciente e redundante – como as teorias conspiratórias, de tão caricatas, poderiam virar profecias autorrealizáveis.
E, a grande ironia do filme, CEOs liberais demitidos pela cultura do cancelamento decidem realizar esse sonho de extremistas de direita. Em outras palavras, o que o filme Corra fez pela questão do racismo, A Caçada faz em relação à luta de classes e a ideologia.
O Filme
Logo no primeiro ato o espectador percebe que há Uma espécie de “cabala de elites" - bebedores de champanhe em um avião particular levam para algum lugar desconhecido um bando de "deploráveis", que são drogados, amordaçados e jogados em um campo. (entre aspas, a terminologia usada pelos personagens e pelos cineastas Craig Zobel (direção), trabalhando a partir de um roteiro de Nick Cuse e Damon Lindelof.
Os “deploráveis” são largados em um campo onde encontram uma grande caixa, da qual sai um porco vivo, além de conter armas mortais, apenas para tornar as coisas mais divertidas. Mas os caçadores invisíveis, usando balas, granadas, armadilhas e flechas, rapidamente abatem o deplorável rebanho em explosões de sangue, cérebro e vísceras.
Porém, pegaram um deplorável errado: Crystal (Betty Gilpin) - cujos caçadores a chamam de “bola de neve”, numa referência ao personagem suíno da “Revolução dos Bichos” de George Orwell. Uma mississipiana com habilidades de combate impressionantes. Ela não é como os outros, alguns dos quais acabam descobrindo o que está acontecendo – ironicamente, eles acordaram num “sonho realizado”: a confirmação das suas próprias teorias conspiratórias que divulgam em podcasts e canais do YouTube.
Ela fala menos, percebe mais e parece carregar um tipo diferente de raiva. Uma guerreira relutante que se torna uma espécie de heroína. Crystal é interpretada de forma discreta e contida. Talvez um resquício por tolerar clientes grosseiros e mal-educados em seu trabalho na agência de aluguel de carros. Mais tarde, descobrimos que ela serviu no exército, e a atriz Betty Gilpin incorpora esse movimento de forma rígida, mas rápida, mostrando que parte da sua disciplina militar se esgotou ao longo dos anos devido a alguns tiques nervosos. Ainda assim, seus olhos permanecem na sobrevivência e nunca baixa a guarda, como uma espécie de Rambo do Mississipi.
Os vilões desta história são elites liberais lideradas por uma mulher chamada Athena (Hilary Swank), que têm um desastrado episódio de mídia social alimentado por uma teoria da conspiração conhecida como “Manorgate” – liberais que caçam humanos por esporte em alguma mansão num lugar remoto dos EUA. Um mal-entendido que parece ter custado o emprego de um punhado de CEOs. Então, decidem realizar os sonhos dos conspiracionistas: decidem levá-los a um mórbido “parque temático” Manorgate. O pesadelo se faz realidade.
Mas Crystal e a sua raiva trazida de luta de classes, é o personagem que transcende a cismogênese “liberais versus extrema-direita”. Assim como o filme Corra desvelou o racismo por trás de uma família intelectualizada, liberal e tolerante, A Caçada mostra o que a polarização das guerras culturais nas redes sociais quer ocultar: a velha luta de classes.
Principalmente na sequência final em que, tomando o avião de volta para casa, a sobrevivente Crystal permite que a aeromoça sente na poltrona de primeira classe, coma caviar e beba o melhor champanhe dos ricos liberais.
Ficha Técnica |
Título: A Caçada |
Diretor: Craig Zobel |
Roteiro: Nick Cuse, Damon Lindelof |
Elenco: Betty Gilpin, Hilary Swank, Ike Barinholtz |
Produção: Blumhouse Productions |
Distribuição: Netflix |
Ano: 2020 |
País: EUA |