O lendário cineasta alemão Werner Herzog dessa vez volta sua atenção para a Internet, no documentário “Eis o Delírio do Mundo Conectado” (“Lo and Behold: Reveries of the Connected World”, 2016). Um documentário centrado numa questão que só poderia surgir da mente de Herzog: será que a Internet sonha com ela mesma? Sim! E a World Wide Web é o seu sonho, criada sobre a rede de computadores iniciada nos anos 1960 como projeto militar e científico: a Internet. Porém, a WWW foi por um caminho bem diferente daquele imaginado por um dos pioneiros: Ted Nelson – um projeto que imaginava uma espécie de Biblioteca de Alexandria em hipertexto. Ao contrário, a WWW cresceu regida por uma lei dos cassinos de Las Vegas: a Lei dos Grandes Números, na qual a Banca sempre ganha. E suas consequências são desenvolvidas no documentário: o rebaixamento da noção de inteligência na “Inteligência Artificial” e a “Internet do Eu” com dramáticos dilemas éticos morais trazidos por um Internet com interface invisível – a Internet das Coisas.
“Será que a Internet sonha com ela mesma?” Essa é a pergunta inusitada que o lendário cineasta alemão Werner Herzog faz para especialistas em computação no seu documentário Eis o Delírio do Mundo Conectado (Lo and Behold: Reveries of the Connected World, 2016), disponível na plataforma MUBI.
Herzog é um cineasta notável pelos seus filmes protagonizados por tipos excêntricos, sonhadores e loucos. Por isso, o leitor não deve esperar um documentário convencional sobre a Internet e a tecnologia digital. As perguntas do cineasta, feitas em seu tom teutônico severo, são suficientes para arrancar dos entrevistados intensas reflexões filosóficas, paradoxos, longos silêncios de reflexão e intensos jogos mentais capaz de deixar o espectador de queixo caído.
A resposta obtida por Herzog à pergunta sobre a Internet sonhar com ela mesma, feita na parte VII do documentário (composto por dez partes), é a síntese do conceito do “delírio de um mundo conectado”: “a rede é a Internet sonhando consigo mesma”, afirma o professor de psicologia da Carnegie Mellon University, Marcel Just. Para ele a Internet não é nada, além de conexões. “Com a World Wide Web, quando nos demos conta, tínhamos websites... sobre a Internet básica criaram-se redes adicionais acima dela”, completou Marcel Just.
Para entender como, a partir de uma rede básica que ligava apenas computadores entre si (organizada como fosse uma lista telefônica), a Internet criou uma outra rede sobre ela, Herzog vai buscar as origens: seu nascimento militar e científico na Universidade do Sul da Califórnia, em Los Angeles. Ironicamente, ao som da Abertura Der Ring des Nibelungen, com toda a carga conotativa das associações de Wagner, Hitler e a exaustação do poder.
Vemos um cavalheiro mais velho e elegante, o professor de ciência da computação Leonard Kleinrock, conduzindo a uma porta que leva à sala onde a Internet nasceu em 1969. Enquanto Kleinrock nos mostra o primeiro nó da Internet e fala sobre a ARPANET, uma rede de dados militar apoiada pelo governo que usaria a tecnologia mais tarde conhecida como "comutação de pacotes", Herzog não interrompe seu animado monólogo polido. Ele parece encantado com o brilhantismo, entusiasmo e carisma de Kleinrock.
Porém, logo passa para um outro personagem pioneiro: Ted Nelson, um dos mais subestimados pioneiros da Internet. Ele propunha um outro caminho para a rede de computadores. Mas aconteceu um “crime contra a humanidade”, segundo ele. Ted Nelson imaginava que a Internet seria uma nova Biblioteca de Alexandria.
Todo o conhecimento estaria numa espécie de repositório universal. Um grande texto no qual cada citação seria lincada com o texto original, permitindo o rastreamento da origem da informação. Seria a essência do conceito de “hipertexto”. Porém, o sentido das ferramentas “recortar” e “colar” foi deturpado, segundo ele. Tudo foi substituído por documentos eletrônicos que simulavam papel. Para Nelson, a questão não era essa, mas criar um novo tipo de literatura em tela com documentos paralelos e interconectados – um conceito de texto em 3D na tela, estruturado pelos princípios de interligação, representação e sequencialização.
Leonard Kleinrock |
Se este conceito de Internet projetado por Ted Nelson se realizasse, certamente fenômenos como as fake news, deep fakes e pós-verdades seriam impossíveis, já que se resguardam no fato de que a inserção de novos conteúdos na web pode ser feita de maneira quase anônima.
As consequências dessa mudança de rumo entre os pioneiros da Internet é o que aborda o documentário nas nove sequências posteriores.
O Documentário
Composto por dez segmentos (O Início, A Glória da Rede, O Lado Negro, Vida Sem Rede, O Fim da Rede, Invasores Terrestres, Internet em Marte, Inteligência Artificial, A Internet do Eu, O Futuro), o documentário destaca no primeiro segmento um aparente paradoxo no qual se baseou a Internet: a chamada “Lei dos Grande Números” – quanto maior se torna a rede mais eficiente e previsível ela se torna.
Herzog é mordaz. A Internet seria como um cassino que ganha muito dinheiro com milhões de apostadores de caça-níqueis: um grande número de jogadores ou mensagens imprevisíveis sempre se comportara de modo previsível. A rede é gigantesca, mas seu desempenho é previsível. Aqui começamos a entender o porquê do modelo imaginado por Ted Nelson ter sido preterido. O que estava verdadeiramente em jogo era previsibilidade e controle. Assim como os gigantescos cassinos de Las Vegas nos quais a banca sempre ganha.
Ted Nelson |
Ao longo de Eis o Delírio do Mundo Conectado, Herzog procura diversos personagens obstinados, excêntricos ou mesmo vítimas do crescimento da Internet que sempre esteve fora dos prognósticos futuristas do passado – imaginavam-se foguetes, carros voadores no futuro, mas jamais uma rede que invadisse e controlasse a vida das pessoas.
Por um motivo muito simples: no passado, a pessoa com quem se comunicava importava tanto quanto a informação. A Internet começou como uma rede para que cientistas se comunicassem entre si. Hoje, não sabemos se conversamos com um cachorro, com um ser humano, um robô ou uma machine learning.
Nesse ponto, os velhos axiomas da Teoria da Informação (Claude Shannon) em 1948 parecem ainda válidos. Um dos principais axiomas da TI é que informação é redução da incerteza através de um código. Tudo que a Internet nos oferece em qualquer mecanismo de busca é puramente incerteza: um imenso conjunto caótico de dados que, sem um filtro ou código, nada mais é do que caos, entropia ou ruído.
Para os especialistas entrevistados esse será o desafio do futuro: a busca de filtros que tornem as informações inteligíveis e úteis para o usuário. Esse é o profundo paradoxo que o documentário nos apresenta: para o indivíduo, a Internet é caótica e incontrolável; mas para seus controladores (as Big Techs e o Big Money) ela é magicamente previsível – lembra da Lei dos Grandes Números?
Era Digital das Trevas
Porém, o gigantismo da Internet esconde uma terrível fragilidade: todos os registros poderão ser perdidos de uma hora para outra diante de um evento global como, por exemplo, uma tempestade geomagnética.
O documentário cita o famoso “Evento Carrington”: uma gigantesca tempestade solar geomagnética ocorrida em 1859 durante o auge do ciclo solar, no qual uma ejeção de massa coronal atingiu em cheio a magnetosfera terrestre. Fazendo entrar em pane as linhas de telégrafo – postes incendiaram, aparelhos foram inutilizados e telegrafistas receberam choques elétricos.
Tempestades geomagnéticas são recorrentes, acompanhando os ciclos de atividade solar. Se no século XIX as consequências foram pequenas numa sociedade ainda pouco dependente da eletricidade, especialistas entrevistados revelam a preocupação de um evento dessa magnitude em nossa sociedade imersa na rede digital: imagine-se a quantidade de dados e informações perdidas numa civilização em que a perenidade do papel é substituída pelo digial.
Para Herzog, os futuros historiadores chamariam nossa era de “Era Digital das Trevas”, na qual grandes partes dos registros históricos se perderam – seria uma “época misteriosa”, bem diferente de épocas menos tecnológicas das quais cartas e documentos continuaram existindo. Enquanto na Internet, tudo foi registrado por e-mail...
Internet do Eu
Mas tudo isso seriam conjecturas apocalípticas. Porém, há algo bem mais palpável e preocupante que acompanhamos nos episódios “Inteligência Artificial” e “Internet do EU”.
Percebemos nesses segmentos uma espécie de rebaixamento da noção de Inteligência em projetos como a Internet das Coisas e Inteligência Artificial. Primeiro, a IA como uma máquina que faz trabalhos repetitivos e a Internet das Coisas como objetos e lugares se comunicando com o usuário: pergunte a sua casa onde você deixou as chaves? Peça para desligar as luzes ou ligar a impressora do escritório.
Para Herzog e seus entrevistados, a conectividade generalizada e a construção de máquinas que pensem por nós levarão a uma drástica mudança moral e nas nossas definições sobre inteligência e ser humano. A inteligência seria substituída pelo solipsismo na chamada “Internet do Eu”.
Na medida em que a Internet se torne uma interface invisível e dissolvida no cotidiano (imagine ferramentas como a Realidade Aumentada que já apontam para essa tendência), ela se ajustaria de forma solipsista em torno do Eu, acentuando ainda mais a bolha tendencial que envolvem hoje os usuários, nas redes sociais e algoritmos de busca na web.
E o dilema ético e moral será dramático: enquanto os pais dizem para os filhos que é necessário brincar com outras crianças e que sua visão de mundo não é única e devemos respeitar os outros, os objetos e a Internet invisível dirão o contrário: a sua visão é única, num mundo mágico e maravilhoso onde portas se abrirão com um aceno e objetos mudarão de lugar com um único pensamento.
Será que a Internet sonha com ela mesma? A suspeita final de Werner Herzog e que esse sonha possa virar pesadelo.
Ficha Técnica |
Título: Eis o Delírio do Mundo Conectado |
Diretor: Werner Herzog |
Roteiro: Werner Herzog |
Elenco: Elon Musk, Lawrence Krauss, Ted Nelson, Leonard Kleinrock, Lucianne Walkowicz |
Produção: Saville Productions |
Distribuição: MUBI |
Ano: 2016 |
País: EUA |