Certo dia um cientista do MIT criou um
“computador terapeuta” chamado Eliza. Na verdade uma brincadeira, uma parodia sobre as tentativas frustradas em fazer uma Inteligência Artificial. As pessoas
digitavam o que estavam sentindo e Eliza repetia a última frase, reformulando
como fosse uma pergunta. Os “pacientes” começaram a levar à sério, passando
horas diante de Eliza digitando seus problemas, desejos e motivações mais
íntimas. Uma brincadeira que, sem querer, criou o paradigma que reformularia
toda o conceito de Inteligência Artificial e abriria o campo dos algoritmos que
controlam as atuais redes sociais e mecanismos de busca na Internet. Essa é uma
das histórias do documentário “HyperNormalisation” (2016) de Adam Curtis.
Analisado pelo “Cinegnose” em postagem anterior, vamos agora destacar como a
fuga das pessoas para o ciberespaço, para escapar das complexidadse do mundo
real, criou um outro aspecto da “HiperNormalização”: a Inteligência Artificial como um espelho individualista feito para criar a falsa sensação de estabilidade e segurança. Mas, às
vezes, aspectos do “deserto do real” invadem essa bolha virtual.
Em postagem anterior discutíamos o novo
documentário do britânico Adam Curtis chamado HyperNormalisation (2016), transmitido em nove episódios pela BBC - clique aqui.
O documentário discute como a crescente
aversão não só à Política, mas à própria complexidade dos problemas reais fez
nos últimos 40 anos os indivíduos se retraírem no ciberespaço, Internet, redes
sociais como uma bolha ou espelho de si mesmos.
Mais além, como financistas, utopistas
tecnológicos e políticos criaram, através da mídia e gestão da percepção, uma
versão simplificada do mundo real: a “HiperNormalização”. E o que é pior, de
como os próprias lideranças políticas acabaram acreditando nessa narrativa
ficcional (muitas vezes inspirada em roteiros de filmes hollywoodianos),
tornando tênues as fronteiras entre realidade e ficção. Uma versão não só
simplificada do mundo, como também conciliadora – enquanto as pessoas têm
corações e mentes capturadas por essas narrativas, grandes corporações e o
mundo das finanças continuam gerindo tranquilamente o equilíbrio sistêmico do
“deserto do real”.
Dando continuidade a essa discussão, nessa
postagem vamos discutir como o documentário HyperNormalisation
aborda o ciberespaço e Internet como partes decisivas nesse movimento
generalizado de abandono do mundo real.
Maçãs e gestão de riscos
Esse abandono foi impulsionado pelo desejo
por estabilidade e segurança. O documentário relata o exemplo do computador
Alladin da empresa de gestão de riscos BlackRock, na pequena cidade chamada
East Wenatchee, no Estado de Washington. Entre pomares, Larry Fink construiu no
final dos anos 1990 uma empresa de gestão de riscos baseada em um gigantesco
computador, o Alladin, alojado em uma série de grandes galpões usados para
armazenar maçãs.
O objetivo era o computador prever com
certeza o risco de qualquer negócio ou investimento, monitorando todos os tipos
de eventos mundiais e comparando-os com dados dos últimos 50 anos. Em seguida o
computador detecta possíveis desastres no futuro.
Os algoritmos do software do BlackRock são
tão bem sucedidos (manipula 7% dos ativos financeiros mundiais) que atualmente
o Federal Reserve estuda se Alladin não deve ser promovido à condição de
“SIFI”(Instituição Financeira Sistemicamente Importante) sob direta supervisão
governamental.
Adam Curtis cita esse exemplo de como o
conceito de Inteligência Artificial desenvolvido nos anos 1960-70
transformou-se no desenvolvimento de algoritmos capazes de transformar Big Data
das redes que estabiliza tanto o “deserto do real” da economia quanto o ego dos
indivíduos que abandonaram esse “deserto” e se protegeram no ciberespaço. Uma
espécie de Prozac informático.
HyperNormalisation mostra como nos anos 1960 havia um otimismo
generalizado entre utopistas tecnológicos de que os computadores um dia
poderiam pensar como seres humanos. Passaram anos tentando programas as regras
que comandam o pensamento humano. Mas sem sucesso.
A “psicoterapeuta” Eliza
Até que um dia nos anos 1980, um cientista da
computação do MIT chamado Joseph Wisembaum ficou tão desiludido que resolveu
fazer uma parodia desse fracasso dizendo para todos que tinha feito um
computador terapeuta: simplesmente as pessoas poderiam digitar os seus
problemas que o programa chamado Eliza daria as respostas para o “paciente”.
Uma brincadeira que, sem querer, fez Wisembaum tropeçar no paradigma que
reformularia toda o conceito de Inteligência Artificial e abriria o campo dos
algoritmos que governam as redes sociais e mecanismos de busca na Internet.
O “paciente” sentava na frente da tela e
digitava o que estava sentindo. Eliza simplesmente repetia a última coisa que o
usuário havia dito, reformulando sob a forma de pergunta. Wisembaum descobriu
que todos que usam o Eliza ficavam absorvidos pelo programa: sentavam horas
dizendo para a máquina seus sentimentos mais íntimos e incríveis detalhes da
vida pessoal.
“O computador não te olha feio, não se irrita
e nem tenta transar com você!”, confessou uma usuária. Para Curtis, o que o
Eliza exprimiu foi a era do individualismo, que faz as pessoas se sentirem
seguras ao verem sua personalidade refletida, como um espelho.
O que lembra um outro episódio, dessa vez na
Universidade de Stanford: o desenvolvimento das técnicas de pesquisa em Marketing
dos Valores e Estilo de Vida (VALS) no anos 1980, no qual foram enviados
formulários de perguntas para consumidores via correio. O retorno foi
surpreendente (86%). As pessoas perguntavam: “vocês têm outros questionários
para eu preencher?”. As pessoas simplesmente adoraram falar de si mesmas,
confessando seus desejos, incertezas, pensamentos e motivações.
Novo conceito de Inteligência Artificial
Hoje a Internet e redes sociais são desdobramentos
em escala gigantesca do insight
possibilitado pelo programa “Eliza”. É o novo conceito de Inteligência
Artificial: os agentes inteligentes – algoritmos de grandes corporações que
monitoram o Big Data para criar
correlações e padrões para prever o que as pessoas irão querer no futuro.
Uma bolha que nos protege diante da
complexidade do mundo real, ao mesmo tempo em que somos vigiados. Mas não é apenas
uma questão de invasão de privacidade. Trata-se da própria redefinição do
conceito de “Inteligência” como uma espécie de auto-abdicação humana.
O documentário cita Jaron Lanier, cientista
do Vale do Silício e o criador do conceito de “realidade virtual”, e seu alerta
sobre a inteligência das redes e aplicativos: através dos olhos dos “agentes
inteligentes” somos uma versão de Inteligência caricatural de racionalidade.
Para Lanier, noções como “inteligência
coletiva”, “nuvem”, “algoritmo” ou qualquer outro objeto cibernético é aceito
como uma “superinteligência” por que reduzimos os nossos padrões e expectativas
sobre a inteligência. As pessoas se degradariam o tempo todo para fazerem os
aplicativos parecerem espertos. Por exemplo, a ideia de amizade em redes de
relacionamento é reduzida. Uma pessoa se orgulha em dizer que possui milhares
de amigos no Facebook. Essa afirmação só poderia ser verdadeira se a ideia de
amizade for reduzida. Ignora-se que a verdadeira amizade deve expor à
estranheza inesperada do outro.
Além de simplificarmos a noção de
inteligência, simplificamos a realidade ao nos fecharmos em bolhas criadas por
algoritmos que supostamente antecipam nossas escolhas. Um modelo de “agente
racional” deteriorado pois parte do princípio de que apenas agimos para obter o
que queremos, e nada mais.
Para quem trabalhamos na Internet?
E Lanier acrescenta: “nunca está claro para
quem trabalhamos, para nós ou para outra pessoa”. Espontaneamente enviamos para
as redes milhares de vídeos, imagens e relatos diários de nossos desejos e
motivações. Acreditamos que tudo é apenas uma “nuvem” abstrata, mas que tem
aspectos bem reais: enviamos dados para nosso comportamento social, de consumo
e mesmo político sejam previstos por aquelas corporações e sistemas financeiros
que estão lá, tranquilas no “deserto do real” gerindo o equilíbrio planetário.
O homem por trás de tudo isso foi um
cientista chamado Judea Pearl. Segundo Adam Curtis, é o pioneiro do conceito
moderno de Inteligência Artificial. Seu feito foi utilizar as chamadas “Redes
Bayesianas” de opinião, redes causais de gráficos de dependência
probabilística. Metodologia padrão de construção dos sistemas é o modelo
algorítmico dos conhecimentos extraídos das redes digitais pelas grandes
corporações para prever comportamentos e tendências sociais e políticas.
Isso fica claro com o depoimento de um
engenheiro do Google dado ao historiador George Dyson:
“Nós não estamos escaneando livros para serem lidos por pessoas. Estamos fazendo isso para serem lidos por uma Inteligência Artificial. Enquanto acompanhamos o Google escaneando livros, uma visão tecnocêntrica incentiva programas a tratarem livros como combustível para um imenso moinho, trechos descontextualizados para um grande banco de dados, ao invés de expressões distintas de escritores individuais.” (Lanier, Jaron. “The First Church of Robotics”, New York Times, 09/08/2010).
Porém, esse mundo abstrato começou a ser
invadido por aspectos do mundo real. Por uma estranha e terrível ironia, o
primeiro vídeo de decapitação terrorista publicado on line foi do próprio filho de Judea Pearl, Daniel Pearl. Ele era
jornalista do Washington Post e tinha
sido sequestrado por extremistas islâmicos no Paquistão. Registraram o que
seria sua confissão, antes de ser decapitado diante da web cam.
Ficha Técnica |
Título:
HyperNormalization
|
Direção:
Adam Curtis
|
Roteiro:
Adam Curtis
|
Elenco:
Adam Curtis, Donald Trump, Vladimir Putin,
Patty Smith, Henry Kissinger
|
Produção: British
Boradcasting Corporation (BBC)
|
Distribuição:
BBC
|
Ano:
2016
|
País:
Reino Unido
|
Postagens Relacionadas |