Para a grande mídia a senadora Simone Tebet foi a vencedora. Lula teve um “apagão”. E Bolsonaro fez um “ataque misógino”, ironicamente contra um notório desafeto de Lula, a jornalista Vera Magalhães. Somada à mais-valia semiótica de um estúdio que parecia alguma coisa entre o filme Tron e o Metaverso de Mark Zuckerberg, a fórmula de debate engessada, fragmentada e um intervalo publicitário ideologicamente maroto, o script era esse: Lula e Bolsonaro, os dois lados da mesma velha moeda, contra uma “Terceira Via” tão “moderna” quanto o cenário: digital e empreendedora. Lula não caiu na armadilha e ficou na retranca. Enquanto Bolsonaro conseguiu o que pretendia: criar um escândalo no campo simbólico em que fica mais confortável e engaja a base eleitoral: a guerra cultural e de costumes. Como em 2018, grande mídia ainda procura a alternativa “perfumada e limpinha”. E, de novo, Bolsonaro é o “botão eject”.
Primeira coisa que chamou a atenção no debate da Band (organizado pelo grupo Bandeirantes, Folha de São Paulo, Uol e TV Cultura) desse domingo foi o inacreditável cenário para um debate entre candidatos em uma eleição. O que era aquilo? Políticos perdidos no interior do hardware do filme Tron? Será que seria realizada alguma palestra do TED? Um debate entre aceleradores de startups tecnológicas? Uma homenagem a Zuckerberg e o Metaverso? Ou seria um show da banda “Kraftwerk”?
Isso não é uma mera observação estética. Há uma mais-valia semiótica nesse enorme cenário que mais parecia um nowhere digital com os candidatos perdidos dentro dele. Parece que o processo de semiose (processo de significação capaz de gerar uma cadeia de signos partindo de uma premissa a partir da qual criam relações recíprocas entre significados) ou da cadeia de associações de ideias sugerida era essa: quarta revolução industrial, revolução digital, empreendedorismo, enfim, um wishifull thinking de um suposto Brasil do futuro.
Não por acaso no intervalo publicitário, um vídeo do Sebrae especialmente produzido exortava eleitores a apoiarem candidatos favoráveis ao empreendedorismo. Confortavelmente ao lado de uma também inacreditável peça publicitária da Havan, mostrando Luciano Hang motivando seus funcionários a defenderem a Pátria – para os entendedores, o próprio candidato Bolsonaro.
E pior. Em algumas afiliadas regionais da Band, a inserção de publicidade de Clubes de Atiradores – clique aqui.
Também não por acaso, a “Terceira Via” estava ali representada: Soraya Thronicke (a senadora candidata do União Brasil que disse que vira onça, como a Juma Marruá da novela “Pantanal”, para defender o Imposto único), a senadora Simone Tebet (ainda surfando na CPI da Covid) e o anarcocapitalista candidato do Partido Novo, Felipe “Quero Privatizar Tudo” D’Ávila. Todos falando bastante sobre empreendedorismo, privatização e “economia digital”. Para se contrapor ao “mofo” dos “economistas do PT”, como frisou a candidata-onça.
Pelo menos para esse humilde blogueiro ficou óbvio que a fórmula engessada do debate foi especialmente preparada trazer a Terceira Via para a ribalta – uma ribalta “moderna”, “high tech”, para se contrapor à “velha política polarizada” de Bolsonaro e Lula.
A fórmula: a ginástica das constantes trocas de âncoras e entrevistadores, uma estranha “sala digital” do Google que checava os assuntos mais acessados pelos internautas/telespectadores – o tema “corrupção” teria sido o mais acessado. As pesquisas qualitativas durante e logo depois do debate disseram o contrário: os principais temas que chamaram a atenção foram emprego, economia e saúde.
A “sala digital” nada mais foi do que um loop tautista (tautologia + autismo midiático): retroalimentava aquilo que própria fórmula do debate induzia.
Por isso, para a grande mídia, a grande vitoriosa teria sido a senadora Simone Tebet. É a única maneira da Terceira Via que pontua quase zero nas pesquisas ser turbinada: em uma fórmula de debate fragmentado, na qual os bordões (“a salvação do país é acabar com o Estado”, Felipe D’Ávila), fórmulas mágicas (o “Imposto Único”, Soraya Thronicke) surgem dentro de uma dinâmica maluca na qual quem não tem propostas promete tudo e quem tem proposta é obrigado a se conter pelo tempo exíguo – acrescenta-se ainda o tempo tomado por vinhetas, “sala digital”, autopromoções da Band, intervalo publicitário com vídeos que pareciam pontuar aquilo que alguns candidatos diziam no debate etc.
Jogar na retranca
Lula e seus assessores pareciam conscientes dessas limitações. O que muitos analistas consideraram como “derrota” e “mau desempenho” (comparando com a entrevista no JN) de Lula, na verdade foi uma tática de retranca, para não cair na armadilha óbvia: tornar Lula e Bolsonaro como os dois lados de uma mesma velha moeda, contrastando com o “novo” e o “moderno” (lembram do cenário estilo Tron?) representado pela “Terceira Via” com suas soluções mágicas privato-empreendedoras-fiscais.
Bolsonaro bem que tentou: provocou Lula com acusações de corrupção. Claro, esperando de Lula um contra-ataque do tipo “mas no seu governo tem mais”. Lula apenas recuou e listou todas as medidas adotadas em seu governo para facilitar investigações e transparência.
Tron? Kraftwerk? Metaverso? |
Uma sabatina como a do JN e um debate engessado com franco-atiradores dispostos a tudo para serem notados como esse da Band são modelos incomparáveis – numa fórmula como a que vimos no domingo, candidatos na dianteira das pesquisas somente têm a perder.
Um modelo de debate que parece esvaziar o próprio evento em si. O debate da Band apenas serviu para fornecer um material bruto para posteriormente ser recortado, editado e ser transformado em clips para serem repercutidos nas redes sociais, como se cada “lacração”, “invertida” ou “jantada” fosse uma bala de prata eleitoral decisiva.
Guerra cultural
Enquanto isso, Ciro Gomes, preocupado em ser uma metralhadora giratória voltada contra Lula e Bolsonaro, perdeu uma grande oportunidade. Mesmo depois de ter respondido na bucha contra bordão do “vou-privatizar-sua-alma-à-meia-noite” Felipe D’Ávila: “o Brasil gasta valores de primeiro mundo na educação e entrega uma educação de terceiro mundo”.
Bolsonaro atacou a jornalista da TV Cultura quando a repórter abordou a importância da vacinação no País ao candidato Ciro Gomes (PDT) e criticou a postura de Bolsonaro no combate à pandemia. Após a resposta de Ciro, Bolsonaro começou uma série de ataques: “Vera, não podia esperar outra coisa de você, você dorme pensando em mim. Você é uma vergonha para o jornalismo brasileiro. Já está apelando", afirmou. Ele ainda a agradeceu, ironicamente, a oportunidade de falar "algumas verdades" sobre ela.
Ciro Gomes limitou-se a gargalhar e abanar a cabeça...
Porém, todo esse esforço da grande mídia (em particular esse da Band inserir os candidatos em uma semiose high tech) para encontrar uma opção mais “perfumada e limpinha” para fazer o serviço sujo neoliberal e anarcocapitalista, sempre deve ter um botão “eject”, no caso de dar tudo errado.
E, mais uma vez, esse botão chama-se Bolsonaro. Ao lado da comemoração do desempenho de Simone Tebet, a grande mídia repercutiu o ataque à Vera Magalhães – ironia: antipatia da jornalista por Lula é de conhecimento de todos.
Era tudo que Bolsonaro queria: toda a estratégia alt-right de comunicação precisa de telecatchs como esse. Principalmente quando volta as atenções da patuleia para o campo da guerra cultural e dos costumes. O campo simbólico no qual o chefe do Executivo mais se sente à vontade. Estratégia de prestidigitação para ocultar seu ponto fraco: a economia política.
O que os “colonistas” do jornalismo corporativo denunciaram como “resposta lamentável”, “absurda”, “ataque misógino” (enquanto jornalistas e a Abraji divulgam as protocolares “notas de repúdio”), para Bolsonaro é nada mais do que um elogio: reforça simbolicamente a importância da guerra cultural e de costumes e serve de “apito de cachorro” para sua base ficar ainda mais engajada – somada a mais outro telecatch: a do ministro Alexandre de Moraes contra empresários bolsonaristas de Whatsapp.
Esse “botão eject” ficou ainda mais evidente no próprio intervalo publicitário cheio de más intenções semióticas: o véio da Havan exortando seus empregados aos valores patrióticos ao lado do Sebrae enaltecendo o maravilho mundo do empreendedorismo – onde a força de trabalho magicamente se converte em capital.
A contaminação metonímica é inevitável.