Em algum lugar esse humilde blogueiro leu a melhor descrição sobre natureza da estatística: você tem um pé em uma bacia de água escaldante e o outro pé em outra bacia, desta vez com água congelante. Estatisticamente, na média, você está passando bem.
Essa é a melhor imagem para descrever o malabarismo retórico-estatístico que o jornalismo corporativo vem praticando nesses últimos meses para tentar dar pernas a uma suposta retomada econômica pós-pandemia. Com ênfase à retomada de “números anteriores à pandemia”, como se isso quisesse representar grande coisa para o “jornalismo corporativo”.
Faço essa conceituação genérica de jornalismo por que o jornalismo especializado, econômico, desapareceu das páginas e telas há algum tempo – na medida em que as variáveis econômicas deixaram de ser políticas monetárias, política de câmbio, contas externas, spread bancário, política industrial etc., para serem substituídas por variáveis climáticas, sanitárias, guerras, meteorológicas, eleitorais etc.
Para quê, então, economistas? Basta entrevistar qualquer chefe de alguma corretora de títulos e valores mobiliários para saber se o mercado está “calmo” ou “tenso” com as variáveis aleatórias listadas acima.
É nesse exercício de malabarismo diário (afinal, todo o esforço da guerra híbrida que levou ao golpe de 2016 não pode ir por terra – os fundamentos neoliberais devem ser mantidos a todo custo) que a grande mídia acabou criando uma insólita realidade paralela que lembra a imagem dos pés estatisticamente confortáveis descritos acima.
Para quê jornalismo econômico? |
Para começar, acompanhe, caro leitor, os dois grupos de manchetes abaixo:
(a) “Vendas do comércio crescem 1,1% em fevereiro, segunda alta seguida” (O Globo); “CNC projeta aumento na expectativa de vendas do comércio para 2022” (CNN Brasil); “Crescimento do setor de serviços no Brasil atinge maior nível em 15 anos” (R7); “Setor de serviços supera perdas da pandemia e cresce 10,9% em 2021” (R7); “Produção industrial volta a crescer em dezembro e fecha 2021 com expansão de 3,9%” (G1); “Mercado formal registra crescimento de 2,7 milhões de empregos” (IG).
(b) “Inflação se alastra e atinge 78% dos preços, e famílias ficam sem saída” (Uol); “Fome cresce e, pela primeira vez em 17 anos, mais da metade da população não tem garantia de comida na mesa” (O Globo); “Taxa de desemprego do Brasil deve ficar entre as maiores do mundo em 2022” (O Globo); “Inflação recorde no país foi impactada pela alta nos preços dos combustíveis” (G1).
No grupo (a) temos a realidade paralela dos números macroeconômicos – números em escala regional e nacional a partir de pesquisas classistas ou de autarquias e institutos. E no grupo (b), a realidade cotidiana da microeconomia, descrevendo como a sobrevivência do dia a dia está cada vez mais difícil.
Números relativos e absolutos
As interpretações dos números que encontramos no grupo (a) nos faz lembrar o “conforto estatístico” do infeliz personagem descrito acima, entre o escaldo e o congelamento. Um exemplo desse “conforto médio”, cujo modus operandi é habilmente confundir números relativos com absolutos, está na matéria da primeira manchete do grupo (a): “Vendas do comércio crescem 1,1% em fevereiro, segunda alta seguida”
Se olharmos o gráfico abaixo, gerado na matéria a partir de dados do IBGE, percebemos o malabarismo relativo vs. absoluto que a matéria faz: na verdade, em termos absolutos, a variação percentual cai pelo terceiro mês seguido (2,3% jan; 1,3% fev; 1,0% mar). Frente à variação negativa de dezembro de 2021 (-2,6%), os números de 2022 são positivos. Em termos relativos há “crescimento” (na verdade, variações positivas). Ou seja, em termos relativos, em março diminuiu pela segunda vez a variação de crescimento. A manchete deveria ser o inverso!
Mesmo na realidade macroeconômica do grupo (b), no qual a grande mídia parece sair da realidade paralela do “conforto estatístico”, muitas manchetes tentam fazer malabarismo retórico com adjuntos adverbiais de concessão (“apesar de”, “embora”, “em que pese”, “mesmo que” etc.). “Apesar da crise, cresce a venda de ovos de Páscoa...”; “Embora o desemprego seja elevado, o setor de informática é o que mais contrata...”.
Estruturalmente, a grande mídia precisa mostrar sempre o “lado bom”. Afinal, a notícia é um produto à venda e, como qualquer mercadoria, tem que prometer uma experiência agradável ao leitor/telespectador – não importa se a notícia é boa ou ruim; no final, o noticiário tem que oferecer uma experiência agradável. Quanto mais próxima do infotenimento, melhor.
Porém, em última instância, está a urgência em evitar que todos os esforços do jornalismo de guerra (principalmente de 2013 a 2016) não tenham servido para nada.
O mais importante é que os fundamentos neoliberais sejam agressivamente mantidos. Principalmente quando sabemos que as famílias controladoras da grande mídia brasileira vivem do rentismo – eles sabem que o esquema de negócios da mídia tradicional (trocar espaço publicitário por entretenimento) está em franca decadência.
Privatização da miséria
“Não está fácil pra ninguém”, “Está difícil pra todo mundo” são os bordões mais ouvidos por apresentadores ao tentar falar alguma coisa depois das manchetes negativas sobre inflação e desemprego. “Difícil pra quem, cara pálida!” poderíamos responder diante da alta dos juros que só beneficia o rentismo – aliás, a única justificativa para a atual política monetária do BC, sabendo-se que não existe inflação por demanda no País.
É claro que “pra ninguém” e “pra todo mundo” é uma jogada retórica cujo subtexto é que a crise é “mundial” e que os vetores não são mais econômicos, mas catástrofes “aleatórias” como guerra na Ucrânia e a pandemia, p. ex.
Esse subtexto é repercutido no jornalismo local das redes ao pautar matérias motivacionais sobre o trabalho do voluntariado nesse cenário de fome e desempregados que vão morar nas ruas das metrópoles.
Nesses dois últimos anos essa pauta é crescente: voluntários que vão para as ruas entregar “quentinhas” para sem tetos, entidades sociais que rebem doações para “impactados pela pandemia”, ONGs que doam cestas básicas e brinquedos para família abaixo da linha de pobreza etc.
O curioso (se é que podemos considerar assim) é que semioticamente (estética, linguagem, retórica etc.) essas matérias são idênticas às matérias sobre a iniciativa de voluntários para ajudarem vítimas de flagelos “naturais” como enchentes ou soterramento de bairros em áreas de risco.
Classes socioeconômicas subalternas sofrendo o maior impacto por uma política econômica são figurados como espécie de flagelados de algum destino natural para os quais só restam compaixão e dó. As indefectíveis imagens de salas com pilhas de produtos não-perecíveis ou grandes caixas de isopor com “quentinhas” são análogas às imagens de operação de guerra para salvar vítimas de flagelos como terremotos, desmoronamentos etc.
“Favelas” ou “quebradas” tornam-se expressões que cada vez mais figuram na pauta do dia, não tanto pelo reconhecimento da reprodução da desigualdade social, mas pela função ideológica que essas “periferias” atendem a essa realidade paralela econômica.
Quem já desvendou essa função ideológica no Brasil foi Janice Pearlman, atualmente pesquisadora sênior da Universidade de Columbia, no seu livro O Mito da Marginalidade: favelas e política no Rio de Janeiro. Embora seja o resultado de pesquisa realizada no final dos anos 1960 (ela teve que fugir às pressas do país com os dados de campo antes da ditadura militar confiscar sua pesquisa, ao ser suspeita por “subversão”), suas conclusões continuam ainda bem atuais:
Existe uma grande diferença entre os usos do “mito da marginalidade” e a utilidade de contar com uma larga parte da população numa “situação marginalizada”. Os setores populares, no caso, os favelados, ajudam de muitas maneiras a perpetuar o sistema e facilitar sua reprodução. (...) compram roupas e móveis de segunda mão, produtos com defeito, pão amanhecido, e usarão os serviços de profissionais liberais já ultrapassados ou de aprendizes – como no caso de doutorandos que tradicionalmente adquirem prática atendendo aqueles que não têm muita escolha (...) Finalmente os favelados propiciam a criação de empregos para muitos profissionais liberais, especialmente assistentes sociais, sociólogos e urbanistas” (PEARLMAN, Janice. O Mito da Marginalidade, pp. 303-4, Paz e Terra, 1977).
No século XXI acompanhamos o paroxismo dessa conclusão de Pearlman: a privatização da miséria, a privatização das políticas públicas assistenciais... por supostamente o Estado ser intrinsecamente corrupto e o dinheiro nunca chegar aos necessitados.
Essa privatização da miséria por ONGS e entidades assistenciais cria o fechamento operacional do sistema descrito por Pearlman: tratar os miseráveis como “flagelados” de alguma tragédia natural que se abateu sobre os infelizes.
E, no final, a blindagem da realidade paralela da Economia, cujo objeto se perdeu em diversas camadas semióticas.