segunda-feira, outubro 18, 2021

O Oculto na saga 'Venom', das HQs ao cinema: Teosofia e Magia do Caos, por Claudio Siqueira


"Venon: Tempo de Carnificina" estreou nos cinemas dia 7 de outubro deste ano. Embora a cronologia dos filmes mostre o anti-herói e seu filho rival em suas origens, a atual saga de Venom nos quadrinhos tem incríveis eminências pardas ocultas – Teosofia, Magia do Caos e esoterismo. O Cinegnose vem falar um pouco sobre o início da nova saga de Venom, que já vem saindo nas bancas há um bom tempo e culminou com a atual saga do Rei de Preto. 

Quem se lembra ou comprou o encadernado Guerras Secretas, presenciou o surgimento do famigerado Uniforme Negro do Homem-Aranha. As Guerras Secretas foram um evento desencadeado pelo personagem Beyonder, que queria compreender a dualidade humana. Praticamente um deus (ou talvez a representação marvete de Deus) criou um mini planeta onde colocou alguns dos heróis e vilões Marvel para se digladiarem entre si. Beyonder criou uma fortaleza para cada grupo, com um arsenal à disposição deles, além de máquinas que poderiam materializar comida, roupas e utensílios. Quase um reality show cósmico. 




Numa dessas batalhas, o Homem-Aranha teve seu uniforme rasgado e utilizou uma dessas máquinas para confeccionar um novo uniforme. A máquina ejetou uma esfera de cor preta e consistência resiliente. Assim que o herói tocou a esfera, a coisa envolveu sua mão, expandindo-se e cobrindo seu corpo inteiro. Curiosamente, já surgia com o par de olhos igual ao de seu uniforme e uma aranha enorme cobrindo o peito e as costas. De quebra, ainda fabricava teias de forma orgânica, através de glândulas(?) no dorso de suas mãos, eximindo-o da necessidade de utilizar os lançadores de teia criados por ele mesmo e abastecê-los. Peter Parker não sabia, mas estava entrando na maior roubada de sua vida.


Sai, encosto!

Muita coisa se passou na vida do Cabeça-de-Teia até Reed Richards, do Quarteto Fantástico, descobrir que se tratava de uma criatura simbionte. Provavelmente um ser unicelular e procarionte que, além de tudo, era um parasita neural e estava disposto a se apossar do Homem-Aranha definitivamente. Como Reed Richards descobrira que a criatura é vulnerável a ataques sonoros, Peter se moveu até a catedral pra ficar em meio aos sinos, cujas badaladas fizeram o ser interplanetário se destacar dele… à força. A cena remete à ideia de um exorcismo.




Eddie Brock, o Venom

Quando pertencia a Peter Parker (ou, na verdade, era Parker que pertencia ao simbionte), o uniforme não possuía nome. Era chamado apenas de “uniforme” e respondia a contatos mentais de Peter, embora insistisse em chamá-lo em voz alta como se fosse um cachorro. Força do hábito? Na verdade, apenas uma característica estilística da época. Dê uma olhada nos quadrinhos da Era do Rádio e verá que tudo o que é mostrado nas cenas é narrado ou falado pelos personagens e nessa época, a coisa não era tão explícita, mas ainda assim, ingênua. Mas voltemos ao assunto.




Eddie Brock era um jornalista que tinha inveja de Peter Parker pelas excelentes fotos que tirava do Homem-Aranha. Ao ser demitido do Clarim Diário por ter conseguido uma fonte não confiável sobre o caso do Devorador de Pecados, Brock foi a uma igreja rezar. Mal sabia ele que a criatura havia se aninhado atrás de uma imagem de Nossa Senhora, numa cena que alude aos supostos milagres de imagens de santos chorando.


Quando Brock se une ao simbionte


Brock é fagocitado pelo simbionte, que, mais tarde, fala em sua mente através de um sonho e mostra qual o seu propósito na cadeia alimentar: o de tornar a presa um predador; ou, do ponto de vista social, o oprimido em opressor, invertendo o darwinismo social. Ao acordar, Brick vai ao banheiro se olhar no espelho e diz ao simbionte que, já que ele o conhece, já que perscrutou seus pensamentos e inconsciente, gostaria de conhecê-lo também.


A origem do sorriso de Venom


O simbionte veste o rosto de Brock e, até então, não possui o sorriso maquiavélico característico ao Venom. Ao perceber que o semblante, devido aos olhos, é idêntico ao do Homem-Aranha, Brock ri, numa cena clichê muito bem aproveitada, diga-se, onde o vilão gargalha ao fim do episódio e a câmera se afasta em contra-plongée. A cena também lembra o procedimento do teatro Noh, onde o protagonista se olha no espelho do camarim para entrar no personagem. Ele não veste a máscara; ele se torna a máscara.


Cletus Kasady, O Carnificina

Muita confusão depois e Eddie acaba sendo preso, tendo como parceiro de cela o psicopata Cletus Kasady. Ao contrário de Eddie, Cletus não é fortão, mas magrinho e sua periculosidade deriva de seu fetiche com armas cortantes. Como havia sido separado do simbionte, a criatura se liberta de seu cativeiro no Edifício Baxter (a sede do Quarteto Fantástico) e vai ao encontro de seu novo hospedeiro. Como se reproduz de forma assexuada, deixa um esporo seu em Cletus Kasady, que se torna o Carnificina.


Cletus Kasady (o ruivo) antes de se ligar ao simbionte prole de Venom

Por que Homem-Aranha não possuía o sorriso e a bocarra cheia de dentes afiados além da língua que só faltava ser bífida e o Venom não possui a gama de poderes de Carnificina? É que cada filhote do simbionte, além de possuir novas características físicas, se alinha à psiquê de seu hospedeiro, trazendo à tona a sombra do indivíduo, num conceito jungiano. O simbionte deu a Parker o que precisava: teias. Brock possui a mente desordenada, o que explica os tentáculos que “sobram” na roupa e Kasady necessitava de armas cortantes para realizar sua matança. 


O Anti-Venom, a somatização de Eddie Brock

De lá pra cá, Eddie passou por diversas fases, tornando-se um anti-herói a la Motoqueiro Fantasma, entrando em ação “quando sangue inocente é derramado” pelas palavras dele mesmo. Depois, descobriu que o alienígena que hospedava vinha se alimentando de cérebros humanos e chegou a ter câncer por conta de sua simbiose. Após se livrar da criatura (e não sei como e, se alguém souber, por favor poste nos comentários), passou a servir sopão comunitário num abrigo para moradores de rua da Tia May (a tia de Peter Parker). O vilão conhecido como Escorpião, na época membro dos Thunderbolts, uma equipe de supervilões que trabalham pro governo (uma espécie de Esquadrão Suicida da Marvel) se tornou o novo hospedeiro do simbionte. Muito apropriado, devido ao nome de ambos.


Eddie Brock manifesta o Anti-Venom


Escorpião e os Thunderbolts atacaram o abrigo de Tia May, que era financiado por Homem Negativo, um vilão chinês que consegue curar Eddie de seu câncer. Quando se deparou com o Escorpião vestindo seu antigo simbionte, Eddie psicossomatizou um novo simbionte, já que sua estrutura genética havia sido alterada depois de anos como hospedeiro, tornando-se o Anti-Venom, um anti-herói com os mesmos poderes, mas também capaz de curar as pessoas de seus vícios.

Sempre achei que Venom ou menos a criatura (já que Venom é uma persona dupla) tinha algo de sobrenatural além da origem alienígena. A saga Planeta dos Simbiontes visava mostrar a origem da espécie, mas só recentemente (2018) Dony Cates resolve mostrar quem realmente é o Venom. O prefácio da primeira edição já anunciava algo como “Venom como você nunca viu”  e estava certo.


Deus está morto

Acontece que antes de tudo, antes da própria existência existir, no oceano primordial, o nada, existia o “senhor do nada”, Knull, e parecia bastante satisfeito com sua existência solitária, afinal, deve ser bom ser o número 1 num ramo que só tem você. Até que apareceram os Celestiais, outra versão Marvel para Deus, sendo não um, mas várias entidades criadoras. Logo começaram a preencher o universo com planetas, estrelas, cometas, nebulosas e tudo o mais que conhecemos hoje graças à astronomia. A natureza detesta a vacuidade, mas Knull questiona: “Quem disse que a vacuidade tem que ser preenchida?” 


Kenull decapita um dos Celestiais

Lançando mão de seu poder, Knull retira uma espada da sombra formada pela enorme mão de um dos Celestiais e o decapita. A criação estava pronta, mas Deus não descansou… morreu. Ou ao menos um deles. Knull foi banido de volta ao Vazio, e forjou o primeiro simbionte: a Necroespada, e, com ela, os demais simbiontes. A raça dos simbiontes, bem como seu planeta natal eram chamados Klyntar, segundo a saga Planeta dos Simbiontes, mas agora é revelado que este era apenas o nome para “jaula”, “cela” (ou “prisão”, segundo a nossa tradução).  


As eminências pardas ocultas da saga

O legal da saga é que, entre outras coisas, exime Peter Parker da culpa de ter trazido o simbionte para a Terra. Ele já estava em nosso planeta muito antes e foi responsável pelas nossas lendas sobre o dragão.


Grendel

É que Knull criou um mega simbionte na forma semelhante a de um dragão, chamado Grendel (que enfrenta Bewulf, no folclore nórdico), de modo que culturas ancestrais o enfrentaram, embora a história só especifique os nórdicos, com a participação de Thor. Inclusive, Knull e sua Necroespada são a resposta por trás da saga de Thor, O Carniceiro dos Deuses e é bem capaz de aparecer no novo filme do deus nórdico. 




A criatura foi também participante da Guerra do Vietnã, onde soldados norte-americanos utilizaram o simbionte. O primeiro filme de Venom trabalha um pouco essa questão, já que não mostra a mesma origem dos quadrinhos, mas dá a entender que as forças armadas já têm conhecimento e estudam o simbionte.


Os Simbiontes como Servidores ou Formas-Pensamento

Do ponto de vista da Teosofia, os simbiontes (ou Klyntar) poderiam muito bem se enquadrar na categoria de Formas-Pensamentoelementais artificiais (também chamados elementares). E por que “artificiais”? Porque os quatro elementais básicos dizem respeito aos próprios quatro elementos. As Salamandras, são os elementais do Fogo; os Gnomos, os  elementais da Terra; os Silfos, do Ar e as Ondinas, da Água. A diferença é que os artificiais são criados por força psíquica através de uma intenção focada com um propósito, para realizar determinadas atividades.




Do ponto de vista da Magia do Caos, os simbiontes seriam Servidores Astrais de Knull, criados por ele enquanto estava na solidão do Vazio. Embora servidores astrais não sejam considerados necessariamente seres sencientes, alguns atestam que eles podem criar vontade própria, saindo do controle de seu criador e tornarem-se Tulpas.  Como o estado de vacuidade mental é necessário para se entrar em Gnose, focando-se apenas no objetivo (que, no caso, é a criação do Servidor), não é de se admirar que Knull seja o Senhor do Vazio.

Quando um elemental artificial é criado sem propósito específico e determinado, ele se torna uma Larva Astral e tende a vampirizar seu criador. Uma das formas de se criar isso é através da masturbação e não por acaso os padres católicos a condenavam, porém de forma errônea, acusando o ato do onanismo como pecado. As doutrinas orientais também alertam para o uso indiscriminado da energia sexual e hoje temos o movimento NoFap, por exemplo. De qualquer forma, os simbiontes não deixam de vampirizar seu hospedeiro e Eddie chegou a ter câncer, como citei no 9º parágrafo.


Knull como Choronzon

Como citado no artigo sobre Mortal Kombat, na Cabala, temos a sephirah invisível, Da’ath. O abismo que separa o Plano Arquetípico (Atziluth) do Plano Criativo (Briah), além de ser um portal para o mundo das qliphoth, a versão negativa da Cabala. Cada sephirah (esfera) abriga um determinado coro angélico; uma espécie de classe de seres, como na taxonomia das espécies. Além disso, há um arcanjo que governa cada esfera. No caso de Da’ath, não é um arcanjo, mas um demônio chamado Choronzon (se pronuncia Córonzon) e ele aparece em Sandman #4, quando Morpheus vai ao Inferno recuperar sua máscara e, para reavê-la, tem de participar de uma batalha de Slam Poetry contra o demônio.


Venom como o Sagrado Anjo Guardião de Eddie Brock

Em diversas correntes do esoterismo temos o objetivo do encontro consigo mesmo. Mesmo na Psicologia Analítica de Carl Gustav Jung, há a ideia do Self como algo supra-egóico. Em sua obra magna Análise do CaráterWilhelm Reich postula que há três tipos de caráter: o Caráter Masoquista, evidente na postura curvada de indivíduos; o Caráter Fálico-Narcísico, onde o indivíduo estufa o peito e tenciona seu pescoço e sua cabeça para trás. O tradicional “nariz empinado” ou ‘“pagar pescoço” e o Caráter Genital, relaxado, mas não no sentido pejorativo do termo. Uma condição mental e por conseguinte psicomotora onde o indivíduo “faria tudo com o maior prazer”. 

No sufismo, temos a ideia de igualar o Djin interno com o externo; uma espécie de homeostase do Ego com o Self, onde o termo “djin” originou o termo “Gênio”, mas não no sentido de uma inteligência humana acima da média, mas de uma inteligência mesmo. A própria racionalidade humana é chamada de “gênio humano” e por isso temos as fábulas com os gênios da lâmpada. Originalmente, se chamam djins

Em sua filosofia thelêmica, Aleister Crowley agregou a operação mágica de Abramelin que consistia no encontro com o SAG (Sagrado Anjo Guardião). A partir da ascenção dos graus em sua ordem ou nas ordens que abraçaram a Lei de Thelema, o adepto tem como objetivo atingir o SAG; conhecê-lo e conhecer a si mesmo e a sua “missão” no mundo, o que Crowley definiu como a Verdadeira Vontade, embora o termo “verdadeira” não apareça nenhuma vez no Livro da Lei

Segundo consta nos anais da história thelêmica, Crowley recebeu o livro, que foi ditado pelo que ele chamava de entidade Praeter Humana, cujo nome seria Aiwass e Crowley o teria identificado como seu SAG. Algo como o daemon de Sócrates. O personagem Venom, sendo uma persona dupla (Eddie Brock mais o simbionte) sempre se referiu a si próprio como “Nós”. Em determinado momento da HQ, no arco A Guerra dos ReinosMalekith, o Rei dos Elfos Negros (não, a Marvel não incorreu em racismo. No original, Dark Elfs) entrega a Brock uma pedra preciosa azul, toda lapidada, a qual chama de Dreamstone.

Como Crowley fundou sua própria ordem e desenvolveu seus próprios rituais após ter sido expulso da Ordem Hermética da Aurora Dourada, acabou por retificar alguns de seus rituais à moda thelêmica. Um deles, o Ritual do Hexagrama acabou se tornando o que Crowley chamou de Safira Estrela. A Dreamstone, entregue por Malekith se parece muito com uma safira e dá a Brock um novo uniforme simbionte, repleto de símbolos semelhantes a runas celtas. Venom “evolui”, como fazem personagens japoneses de animes e tokusatus e, quando perguntado por um transeunte, refere-se, pela primeira vez como eu. “Eu sou Venom”. Eddie Brock se resolve consigo mesmo, faz as pazes com sua Sombra e se torna realmente uno consigo mesmo.




A fisionomia dos elfos lembra o semblante corriqueiramente atribuído ao de um alienígena e, por conseguinte, ao de Aiwass. Aliás, talvez a primeira representação desenhada de um alienígena tenha sido a imagem do Lam, por Crowley, em 1918. A Guerra dos Reinos encabeçada por Malekith se dá em dez reinos, o mesmo número de sephiroth da Cabala, sendo o décimo, Midgard, a Terra, Malkuth (a 10ª sephirah).


Darkhold- o Necronomicon da Marvel darkhold Marvel

Os marvetes (jargão para fã/leitor da Marvel) mais aficionados conhecem o famigerado Darkhold, oLivro dos Pecados, Livro dos Feitiços ou Livro dos Condenados, dependendo da tradução. Os marvetes mais antigos o conhecem como Tomo Negro. Um livro de capa preta que já apareceu em histórias do Motoqueiro Fantasma, entre outros, e atualmente esteve presente em WandavisionAgentes da S.H.I.E.L.D. e Runaways. Trata-se da versão Marvel do Necronomicon.



O Necronomicon faz parte do universo fantástico do escritor H.P. Lovecraft, assim como seu “deus” Cthulhu e não vou me alongar acerca de ambos porque meu “tempo” aqui já está acabando. O Darkhold foi criado por Chthon, um dos Deuses Anciões da Marvel, mestre das artes mágicas das trevas e responsável pelo surgimento da Magia do Caos na mitologia marvete. Chton foi nitidamente inspirado em Cthulhu, não só por sua forma física como por seu nome, um trocadilho de Cthulhu com “ctônico”, que remete às profundezas da Terra.




Na HQ Carnage de 2016 o psicótico filho de Venom conhece o Culto ao Carnificina, uma seita que prega o seu evangelho e o vê como seu messias. O mais estranho é que consta uma gravura rupestre que realmente se parece muito com ele. Pra completar, a HQ Web of Venom: Carnage Born, de 2018, mostra que, no momento em que Cletus Kasady nasce, estrangulado pelo cordão umbilical, sua consciência se conecta a Knull, conspurcando sua alma para sempre. Ou seja, não apenas a falta de oxigenação cerebral gerou o quadro psicótico de Kasady, mas o hospedeiro estava, desde o início, conectado a Knull e a Klyntar (tanto o nome da raça quanto do planeta) mesmo antes de o simbionte existir.

Claudio Siqueira é Bracharel em Jornalismo, escritor, poeta, pesquisador de Etimologia, Astrologia e Religião Comparada. Considera os personagens de quadrinhos, games e cartoons como panteões atuais; ou ao menos arquétipos repaginados.

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