As Organizações Globo não são apenas o chamado “Quarto Poder”, sempre capaz de intervir no cenário político brasileiro como já foi fartamente documentado como, por exemplo, no documentário Muito Além do Cidadão Kane (1993) – levando a Globo a fazer mea culpa por ter dado suporte à ditadura militar. Além disso, mesmo com sua estrutura hollywoodiana de studio system (anacrônica e inviável no atual cenário econômico e tecnológico) ainda é capaz de intervir no imaginário nacional.
No trepidante livro desse humilde blogueiro “Bombas Semióticas na Guerra Híbrida Brasileira (2013-2016): Por que aquilo deu nisso?”, é descrito como novelas e séries da TV ou da produtora Globo Filmes (novela O Brado Retumbante, séries como Felizes para Sempre e Questão de Família ou mesmo os filmes como O Candidato Honesto) participaram ativamente do acionamento dos gatilhos imaginários que legitimaram o golpe de 2016 – o imaginário da judicialização e do justiçamento que através da ficção legitimou a agenda política do lavajatismo e impeachment – clique aqui.
Mesmo após o golpe de 2016, séries e novelas continuaram a estratégia da “canastrice política” (legitimar um cenário político e econômico através da teledramarturgia) para cimentar ideologicamente a política econômica neoliberal pós-golpe: por exemplo, a novela Rainha do Pedaço (culto ao empreendedorismo e a resiliência do brasileiro que “nunca desiste”) ou séries Sob Pressão (transforma em thriller hospitalar o desmanche do sistema público de saúde) e Ilha de Ferro (justificar o fatiamento e privatização da Petrobrás).
É sincrônico que no momento quando a política econômica neoliberal está começando a cobrar a conta aos brasileiros (disparada da inflação, represas que mesmo vazias continuam dando fabulosos lucros, crise energética e alta dos combustíveis atrelada ao mercado internacional, desemprego crônico e a volta da fome como realidade cotidiana) a Globo programa para a TV aberta o filme Não Vamos Pagar Nada (2020), nessa última segunda-feira (30/08) dentro da sessão Tela Quente.
Produção da Globo Filmes, A Fábrica e H2O Filmes, foi dirigido por José Fonseca na sua estreia como diretor de cinema que conseguiu transpor para as telonas o sucesso do formato televisivo das sitocoms A Vila e Vai Que Cola. O filme estava programado para estrear no cinema em maio de 2020, mas por conta da pandemia Covid-19 teve que ser adiado para exibição em poucos cinemas em outubro, chegando depois ao Telecine e plataformas de streaming para locação digital.
O filme é baseado na peça escrita por Dario Fo em 1974 “Non Si Paga!Non Si Paga” uma crítica social da Itália daquele momento, a segunda peça mais conhecida do autor, depois de “Morte Acidental de um Anarquista”.
Antônia é uma dona de casa que acaba de perder o emprego, enquanto o seu marido trabalha numa fábrica ameaçada de ser fechada. Ela testemunha um motim em um supermercado, como protesto contra o aumento dos preços causado pela inflação. Antônia não paga aluguel e contas há algum tempo, e decide aproveitar o evento para encher as sacolas.
Mais tarde, Antônia tem medo da reação de seu marido, que tem uma visão moralista do bem e do mal. O marido de Antônia é conservador e católico, acredita cegamente nas informações da televisão e tem um medo terrível da lei.
Dario Fo não criticava apenas os comerciantes e proprietários de aumentar os preços de bens e aluguéis. O alvo era a “política de sacrifícios pelo interesse nacional” do governo moderado do comunista Enrico Berlinguer.
A adaptação cinematográfica Não Vamos Pagar Nada esquece o contexto econômico mais amplo do fenômeno inflacionário, desemprego e perda do poder aquisitivo – fica apenas no plano mais superficial da peça de Dario Fo: o saque do mercado local. Enquanto a crítica do dramaturgo italiano ao moralismo católico maniqueísta é deixada de lado para se transformar no sentimento de culpa da dona de casa com medo da reação do marido saber que produtos roubados estão escondidos em casa. Enquanto vive amedrontada com a polícia rondando o bairro.
Do engajamento político da luta de Dario Fo contra o dogmatismo da política econômica do “apertem os cintos” do Partido Comunista Italiano daquele momento, Não Vamos Pagar Nada neutraliza a peça original e a transforma numa verdadeira peça ideológica pela qual a Globo tenta enfrentar os efeitos colaterais da política econômica bancada politicamente pelos seus próprios patrocinadores: agronegócio (“O Agro é Pop!), exportadores de commodities (Vale do Rio Doce) e a banca financeira – Itaú, Bradesco e Santander com lucros de R$ 22 bilhões só no segundo trimestre desse ano.
Por que uma peça ideológica? Porque além de explorar a estratégia diversionista do bode expiatório (a culpa é do dono do mercado), através dos seus personagens reforça os três elementos do psiquismo que são a matéria-prima da dominação política: a infantilização, o medo e o sentimento de culpa.
O Filme
O longa acompanha as peripécias de Antônia (Samantha Schmütz), uma mulher desempregada que vive às turras com a falta de dinheiro e inflação. O filme abre com o olhar sonhador de Antônia diante de pratos de comida que estão sendo servidos em um bar e muitas pessoas de classe média baixa em um mercadinho do bairro.
Ela está ainda no meio do mês, mas naquele mercado Antônia descobre que não vai conseguir comprar nem o básico. Depois de tentar desvencilhar de um funcionário com uma etiquetadora de preços que tenta remarcar o saco de sal que Antônia carrega, ela reclama com o gerente que diz que apenas está cumprindo ordens “lá de cima”. “Mas lá em cima só tem Deus!”, protesta.
O seu protesto acaba contagiando os outros clientes. Alguns, assustados, descobrem que não poderão mais fazer fiado – ordens “lá de cima” dizem os caixas. Mas, de “lá de cima” desce o próprio dono do supermercado, com roupa e trejeitos que mais lembram um banqueiro de jogo do bicho.
Diante da insensibilidade do proprietário, a massa enfurecida decide não pagar nada, começando o saque generalizado das gôndolas. Na confusão, Antônia tenta pegar o que vê pela frente. Mas quando chega em casa, sabe que terá que enfrentar seu marido João (Edmilson Filho), um homem muito honesto que não aceitará comida saqueada dentro de casa. Com a ajuda da sua melhor amiga Margarida (Flávia Reis) decidem esconder os produtos do roubo – uma parte debaixo da cama, e outra parte numa barriga falsa de grávida que Margarida passa a carregar o tempo todo.
Porém a polícia está no bairro buscando os saqueadores e os produtos roubados. Antônia e Margarida terão que se virar para driblar a polícia e seus maridos, para poderem usufruir de seus produtos conquistados.
Atemporalidade e bode expiatório
Primeiro movimento de transmutação da peça de Dario Fo: se a peça original apontava diretamente para o contexto político e econômico italiano (duas semanas depois da apresentação da peça, ocorreram incidentes em Milão envolvendo mulheres em mercados, diante dos quais jornais de direita culparam Dario Fo), Não Vamos Pagar Nada transforma o contexto em algo abstrato: fala-se em “desemprego” e “inflação” como fatalidades naturais, assim como enchentes e terremotos.
Para tornar ainda tudo mais abstrato, o tempo e o espaço em que ocorrem as ações são indeterminados, atemporais: o carro da polícia remete a um modelo dos anos 1980, remetendo à época da hiperinflação dos tempos do presidente Sarney com as icônicas maquininhas de remarcação de preço nos mercados. Mas os preços estão em reais. No conjunto, há uma atemporalidade com um propósito claro: não se indispor com a atual política econômica – vide acima os patrocinadores da grande mídia que bancam essa política.
Segundo movimento de transmutação: transformar o funcionário, o gerente e o dono do supermercado em vilões estereotipados: o funcionário tem um prazer lúdico-sádico em remarcar preços, o gerente demonstra a empáfia da indiferença. Enquanto o gerente, com um look de bicheiro, é o próprio estereótipo do corrupto e criminoso. Ele aumenta os preços apenas para aumentar seus lucros e encher os bolsos de dinheiro.
É o velho mecanismo psíquico do bode expiatório levado às telas – como, de resto, os telejornais da grande mídia fazem diariamente, ao deslocar as atenções dos aumentos de preços nos impostos, nos donos de postos de gasolina e supermercados.
É o momento em que o mal-estar ao invés de ser simbolizado ou racionalizado (como crítica racional à economia política) é transformada em ressentimento ao direcionar o ódio aos personagens mais visíveis que oferecem um atalho para a descarga psíquica.
Dessa maneira, o roteiro abandona a noção de coletividade para abraçar o caos do cada um por si.
Em consequência, a descrição da vida dos personagens, a estereotipagem e o maniqueísmo moral é excessivamente infantil. Uma comédia ou farsa não precisa ser infantil, como bem demonstrou Dario Fo.
Infantilização e culpa – Alerta de spoilers à frente
A infantilização é necessária para poder explorar dois sentimentos cujas origens estão justamente na infância: o medo e o sentimento de culpa.
Antônia e Margarida têm que se confrontar com duas instituições sociais: a família (a moral) e a política (aparelho repressivo do Estado).
Em Freud o sentimento de culpa assume o papel central nas relações do homem com a sociedade e nas suas relações pessoais. Trata-se da consciência de ter feito um “mal” e não ser “digno do amor” dos outros.
Para Freud, é um sentimento infantil (decorrente da dependência física da proteção e alimentação dos pais) e que se repete diante das entidades abstratas e estranhas da sociedade na vida adulta – o que leva à submissão política pelo medo da perda do amor e da ausência de proteção – Leia FREUD, S., “Psicologia de Massas e Análise do Ego”.
O pesquisador alemão Wolfgang F. Haug detalha essa permanência do sentimento de culpa da infância na vida adulta:
Muitos não ultrapassam o medo da perda afetiva e mantêm seu comportamento infantil: o medo do superego não termina, pois é indispensável como medo da consciência nas relações sociais (...) Adultos comportam-se como se atrás dos fatos de sua vida houvesse um poder misterioso que devesse ser exorcizado, como os pais. Nesse poder retornam as autoridades da sua infância como fantasmas (HAUG, Wolfgang F. “Estética da Mercadoria, Sexualidade e Dominação” In: MARCONDES FILHO, Ciro, A Linguagem da Sedução, Perspectiva, p.61).
É exatamente assim que o social e o coletivo são apresentados em Não Vamos Pagar Nada: como uma entidade misteriosa, abstrata – há um cenário de fundo como uma catástrofe não explicada: a inflação e o desemprego.
Entidade (a Sociedade, o Estado etc.) que incute o sentimento de culpa das “criminosas” diante dos maridos e da polícia. As tentativas de enganar as “autoridades” são como travessuras infantis. É a farsa política de Dario Fo reduzida a conto infantil.
Depois de todas as travessuras para esconder os produtos do saque, paira o respeito às autoridades: nenhum problema em si foi solucionado, não há emprego para Antônia e nem se resolve a questão dos preços.
O “arrependido” dono do supermercado decide fazer um “baquete comunitário” mensal para mitigar a fome no bairro.
É a velha fantasia clichê de quebra-da-ordem-e-retorno-a-ordem: depois da catarse da quebra da ordem, sobrevem a culpa e o retorno final à ordem. Para depois as luzes do cinema serem acesas e os espectadores voltarem às suas rotinas como se nada tivesse acontecido... menos para as mulheres de Milão.
Ficha Técnica |
Título: Não Vamos Pagar Nada |
Diretor: João Fonseca |
Roteiro: Renato Fagundes |
Elenco: Samantha Schmütz, Edmilson Filho, Flavia Reis, Fernando Caruso, Criolo, Flavio Bauraqui |
Produção: A Fábrica, Globo Filmes, H2O |
Distribuição: H2O Films, TV Globo |
Ano: 2020 |
País: Brasil |