Não é o passado que nos assombra. Nós é que nos transformamos em fantasmas para assombrar as nossas memórias, porque para nós no presente o futuro foi cancelado. E isso se torna tão viciante como uma droga. Esse é o interessante argumento no qual baseia-se o filme “Caminhos da Memória” (Reminiscence, 2021), ele próprio uma revisita ao passado: o dos filmes noir clássicos, com detetives imersos numa teia conspiratória e uma mulher fatal que nos conduz a becos sem saída. Porém, estamos numa produção mainstream hollywoodiana que deve extirpar do filme noir aquilo que ele tinha de mais gnosticamente perigoso: a denuncia do Mal como intrínseco à realidade. Por isso, em “Caminhos da Memória”, a mulher fatal transforma-se em good-bad girl e a luta de classes transforma-se em corrupção num mundo alagado pós catástrofe climática onde os excluídos estão condenados a morrerem afogados e uma elite detém as terras secas.
Hauntology (neologismo com origem na combinação de “fantasma” e “ontologia”, o estudo do Ser), Rondologia ou Fantologia, é um conceito introduzido pela primeira vez pelo filósofo francês Jacques Derrida em seu livro “Espectros de Marx”. Refere-se à persistência e o retorno de elementos do passado, como fossem fantasmas que assombram os vivos.
Por exemplo, para o pesquisador Mark Fisher em seu livro “Ghosts in My Life”, o “realismo capitalista” (seria mais fácil imaginar o fim do mundo do que do próprio sistema capitalista – confirmado pela recorrência do cinema-catástrofe) levaria a cultura à resignação e ao fantasma do cancelamento do futuro. O que leva a uma constatação paradoxal de que não é o passado que nos visita como fantasmas – o nosso passado jamais nos reconheceria. Mas somos nós que nos tornamos fantasmas que invade o passado, pilhando fragmentos de memória para revivê-los no presente em diversas estratégias estéticas: retrô, pastiche, remake, ecletismos, paródia etc.
Esses dois princípios da Hauntologia (o realismo capitalista e o cancelamento do futuro) estão presentes no filme Caminhos da Memória (Reminiscence, 2021), longa da co-criadora da série Westworld da HBO, Lisa Joy, e produzido pelo marido Jonathan Nolan – que ajudou a escrever alguns filmes com seu irmão Christopher, principalmente Amnésia (2000) e Interestelar (2014).
Por isso, fica evidente em Caminhos da Memória as marcas registradas da família: a elasticidade narrativa que brinca com o tempo e o espaço e, principalmente, o interesse nos labirintos da mente, recheados com cenas de perseguições e tiroteios.
A narrativa se desenvolve num mundo pós-catástrofe climática na qual o nível dos oceanos sobe drasticamente, invadindo ou afundando cidades. No caso, Miami, em que a maior parte das atividades são noturnas, para escapar do calor escaldante durante o dia.
O realismo capitalista é dominante, mesmo em um mundo pós-apocalíptico: a elite monopolizou as terras secas, condenando as classes subalternas a viver em áreas submersas ou quase – próximas a diques que eventualmente irão ceder com o aumento gradual do nível do mar. O narcotráfico domina a cidade, na qual o crime organizado firma acordo com a elite.
Nesse mundo distópico no qual a esperança em relação ao futuro se foi, resta viver nas memórias de momentos felizes – “pequenas pérolas do colar do tempo”, como nos conta a voz em of do protagonista Nick (Hugh Jackman) ao nos apresentar aquele mundo.
O recurso da narrativa em of é a própria evidência de que até a estética de Os Caminhos da Memória faz uma revisita de uma pérola do “colar do tempo”: o filme Noir, com suas mulheres fatais, narrativas com conspirações intrincadas de Raymond Chandler, Humphrey Bogart e até mesmo Harrison Ford do neo-noir Blade Runner.
O espectador identificará facilmente no filme a colcha de retalhos formada por referências bastante familiares de produções como Chinatown, Blade Runner, Strange Days e até Minority Report.
Assim como a viciante droga chamada “baca” do submundo da Miami do futuro, também reviver memórias escondidas na mente tornou-se viciante. Aqui Caminhos da Memória começa a incursionar nos temas gnósticos: as fronteiras entre passado e presente, realidade e ilusão começam a desaparecer, mantendo as pessoas prisioneiras numa Matrix interior – os labirintos da mente.
O Filme
A narrativa acompanha a dupla Nick e Watts (Thandiwe Newton) amigos e veteranos de guerras numa Miami subaquática. Eles administram um negócio onde os clientes podem reviver suas memórias preferidas e, algumas vezes, até esquecidas. Um dispositivo que consiste numa banheira na qual o cliente fica parcialmente imerso, conectado a eletrodos e um console que mapeia as sinapses neurais e as materializa em memórias 3-D projetadas holograficamente.
Uma tecnologia que, nos tempos de guerra, era usada para interrogatório. Mas agora, em tempos de aposentadoria, Nick a transformou num serviço lúdico e viciante. Nick e Watts atendem os clientes em um prédio que outrora era uma agência bancária. E as memórias são gravadas em disquetes translúcidos e guardadas nos cofres que no passado guardavam dinheiro e penhores. O simbolismo é óbvio: assim como a droga “baca”, as memórias se tornaram até mais valiosas do que o próprio dinheiro. Monopolizada pela elite detentora das terras secas, resta aos excluídos apenas memórias dos poucos momentos felizes.
Todo o problema começa quando chega uma ruiva furtiva chamada Mae (Rebecca Ferguson) num típico vestido das mulheres fatais: vermelho, sem alças e com uma sensual fenda lateral, ao estilo Rita Hayworth em Gilda.
Ela que resolver apenas um problema prosaico: não consegue encontrar suas chaves. E para achá-las precisa vasculhar a memória daquele dia com a ajuda do equipamento de Nick e Watts.
Nick cai rapidamente na armadilha sensual que representa Mae, a maldição de todos os detetives de filme Noir – apaixonado por ela e diante do seu inesperado e misterioso desaparecimento, Nick obcecadamente começa a reviver o dia em que conheceu Mae atrás de alguma pista. Diariamente deita-se naquela banheira para reviver holograficamente suas memórias.
O problema é que essa obsessão vai fazê-lo cair numa teia conspiratória tão intrincada quanto a do filme Noir Chinatown (1974), de Roman Polanski: a rede do narcotráfico local que distribui a “baca” e suas conexões corruptas com autoridades policiais e a elite latifundiária.
Mae é a presença atraente, a faísca que dispara toda tensão da narrativa noir – a femme fatale. Porém, em Caminhos da Memória, a mulher fatal cai no recorrente clichê do filme noir hollywoodiano retrô: a good-bad girl – a mulher fatal que é, ao mesmo tempo, boa e má.
O pesquisador alemão Dieter Prokop descrevia a forma como a mulher foi construída no cinema desde a sua fase pré-monopolista nas décadas de 1910 e 1920. Ela era uma figura problemática: era a mulher fatal ou a vamp. Nos filmes era representada como tão livre e independente que se arruinava e levava os homens à destruição através da sua sensualidade, como bem representou o mito de Greta Garbo ou Rita Hayworth – a mulher fatal canalizava esse espírito do tempo em que a mulher procurava independência com o incipiente movimento feminista.
Ao contrário, a partir dos produtos cinematográficos de monopólio a partir do pós-guerra temos um novo tipo de mulher: a good-bad girl (garota boa-má), uma combinação de signos que jamais seria possível na realidade. Há um processo de desmanche do antigo estereótipo da mulher vamp, onde os pedaços dos filmes antigos (esquemas, sequências etc.) são juntados. A mulher vamp, com personalidade forte, é, no cinema moderno, tão má como a antiga, mas no decorrer da narrativa transforma-se, reconciliando-se com o mundo - veja MARCONDES FILHO, Ciro. Dieter Prokop, coleção grandes cientistas sociais. São Paulo: Ática, 1987.
Ela pode ser num primeiro momento má e amoral. Mas, no final, ela é nada mais do que alguém desesperado que busca um homem que a proteja de alguma ameaça – invariavelmente um vilão que a chantageia ou manipula.
O filme Noir e o Mal – alerta de spoilers à frente
No filme noir a mulher fatal sempre foi um elemento antissistêmico, que denunciava a hipocrisia de um mundo predominantemente masculino. Mas, no pastiche hollywoodiano, ela transforma-se na mocinha que precisa ser salva.
Psicanaliticamente, explora o sadomasoquismo do espectador: como o objeto do desejo (a mulher sensual) caiu nas mãos do vilão, com a qual a mulher teve uma relação sensual e, até mesmo, amorosa? Para depois, ser chantageada por ele. No fundo, a mulher fatal pós-moderna é o que nunca foi no filme noir clássico: dominada pelo sentimento de culpa por ter se entregado à sedução do vilão, precisando de um homem que a salve de si mesma.
Como um subgênero literário (o romance policial) e cinematográfico derivado do revival do Gnosticismo na modernidade, o filme noir clássico denunciava o Mal intrínseco ao próprio mundo – a desigualdade criada por algum mecanismo perverso. A luta de classes, por exemplo.
Mas em Caminhos da Memória, o buraco do coelho no qual Nick cai, atraído pela sensualidade de Mae, conduz apenas à teia corrupta mantida pelos vilões: narcotraficante, policiais corruptos e os barões das terras secas. Ao final, vemos a sublevação popular contra a elite de barões, cujo esquema corrupto é revelado por Nick e seus disquetes de memórias guardados no cofre. O sistema perverso da luta de classes (a reprodução socioeconômica da desigualdade – por que a maioria é condenada a morrer afogada?) é ocultado pela denúncia da corrupção apenas um setor da elite, os barões do latifúndio. Vão-se os anéis, ficam-se os dedos.
É o velho discurso moralista do combate à corrupção, tão conhecido por nós nos últimos anos com os investigadores neo-noir de operações como a Lava Jato. Os resultados, bem conhecemos: deu no que deu!
Ficha Técnica |
Título: Caminhos da Memória |
Diretor: Lisa Joy |
Roteiro: Lisa Joy, Jonathan Nolan |
Elenco: Hugh Jackman, Rebecca Ferguson, Thandiwe Newton, Cliff Curtis |
Produção: FilmNation Entertainment, Kilter Films |
Distribuição: HBO Max, Warner Bros. |
Ano: 2021 |
País: EUA |