Três didáticos
casos sobre o alcance da atual guerra híbrida que a esquerda parece fingir que
não existe, encastelada na sua “estratégia política” ao dar corda para o
desinterino Temer supostamente se enforcar: o porquê das panelas não baterem
mais; o “conto maravilhoso” do ex-executivo que virou sem teto; e a minissérie
da TV Globo “Sob Pressão”. Três pequenos casos exemplares de como as bombas
semióticas, mobilizadas pela guerra híbrida, constroem a atual mitologia
meritocrática que vige no País legitimando as reformas do ensino, trabalhista e
previdenciária – uma mitologia que não nega a realidade, mas a pontua através
da ficção, despolitizando o debate e normatizando a crise como fosse mais um
desses desafios que surgem em nossas vidas, somente superados pelo esforço
pessoal.
Em postagem anterior (clique aqui) este humilde blogueiro
abordou um aspecto bem particular da atual guerra híbrida travada no Brasil: a
construção do perfil etnográfico urbano que chamo de “simples descolados” – a
nova e sustentável versão do antigo “coxinha” de camisetas polo Lacoste do
século passado.
Principalmente como esse perfil cresceu num
momento de radicalização e polarização política a partir de 2013 no sistemático
processo de esfacelamento da democracia brasileira.
Dentro da guerra simbólica o “simples
descolado” foi uma resposta ao neo-desenvolvimentismo dos governos trabalhistas
e a inserção da classe C no consumo, enquanto os “simples descolados” começavam
a resgatar como “chic” tudo que era “popular”, “de raiz”, por meio de
eufemismos como o “orgânico”, o “sustentável” etc.
E como
a grande mídia criou uma nova “mitologia gastronômica”, combinando o
“despretensioso” e a “simplicidade” com o ideário meritocrático e empreendedor
– preparando o terreno para o momento atual no qual desempregados destituídos
de direitos trabalhistas veem como única saída o “empreendedorismo”: a fé
religiosa no momento em que a força de trabalho se converta em capital – assim
como na Eucaristia o pão e o vinho se transubstanciam no corpo e sangue de
Cristo.
A postagem recebeu algumas críticas de
leitores de esquerda: “punheta retórica sem sentido”... “não admira que a
esquerda tenha perdido o apoio do povão”... “deixa o povo cozinhar, gozar...”
entre outras “observações”.
Ele já sabia... |
“A gente vai se livrar dessa raça”
Em 2005 o senador catarinense Jorge
Bornhausen, em meio ao início da crise política do mensalão que culminaria 11
anos depois no impeachment de Dilma, foi profético: “porque a gente vai se
livrar dessa raça, por, pelo menos, 30 anos”. Parece que o senador já sabia de
antemão dos planos traçados pela guerra híbrida - cuja tecnologia de ação
direta e midiática foi importada diretamente do Departamento de Estado dos EUA.
“Observações”
como as citadas acima parecem comprovar que até agora a esquerda não conseguiu
entender que o golpe político, a imposição da atual agenda da destruição dos
direitos e o possível adiamento das eleições de 2018 (sentida pelos “balões de
ensaio” jogados aqui e ali no noticiário, principalmente econômico) não ocorreu
no vácuo. E muito menos por “erro de cálculo” político ou “de estratégia” dos
governos petistas.
Em postagens passadas, vimos como as bombas
semióticas detonadas pela guerra híbrida alimentaram as hostes do neoconservadorismo
por meio da criação de um novo conjunto de perfis etnográficos urbanos:
“simples descolados”, “novos tradicionalistas”, “coxinhas 2.0”, “rinocerontes”
etc. Novos hábitos de consumo, atitudes, valores etc. que combinavam a
“sustentabilidade sustentável” do ecologicamente correto com as velhas teses
neoliberais da Escola de Chicago e Austríaca de Friedman e Hayek.
Enquanto
a “sombra das maiorias silenciosas” assistiu e assiste bestializada a tudo (clique aqui), nas classes médias
cresceu essa “massa crítica” neoconservadora que bateu panelas, vestiu camisas
amarelas da CBF enquanto black blocs
performavam a ensaiada tática (onde será que eles ensaiaram?) de ação direta
nas ruas.
Por
devoção à paciência e didatismo, este Cinegnose
vai apresentar três pequenos e educativos exemplos de como funciona a guerra
híbrida e detonação de bombas semióticas no campo de batalha da opinião
pública: o porquê das panelas não bateram mais, mesmo com o escárnio diário das
ações do desinterino Michel Temer para se blindar das acusações do Ministério
Público Federal; a pequena fábula do ex-executivo morador de rua e a minissérie
da TV Globo Sob Pressão.
1. Por que as panelas não batem mais?
As
esquerdas acusam os paneleiros de “hipócritas” e “envergonhados”. Não batem
mais panelas supostamente por vergonha, arrependimento: “olha no que deu!”...
Para
as esquerdas, essa é uma percepção conveniente. Com isso, viram as costas à
questão da guerra híbrida que não querem enfrenta-la. E resumem a questão do
“silêncio das panelas” a “paneleiros massas de manobra”. A eles a imputação
moral da culpa e vergonha.
Mas
a guerra híbrida não é uma questão de moralidade mas de logística e
pragmatismo, como apresenta de uma forma extremamente didática o filme Mera Coincidência (Wag The Dog, 1997).
Para
quem não se lembra ou nunca assistiu ao filme, Meera Coincidência acompanha
os problemas do presidente dos EUA que, na reta final da campanha à reeleição,
envolve-se num escândalo sexual com uma adolescente.
O
presidente convoca um conselheiro especializado em contra ações de marketing
(Robert De Niro) que precisa reverter a agenda a poucos dias do final da
campanha: contrata um produtor de Hollywood (Dustin Hoffman) para produzir uma
guerra fictícia contra um país supostamente promotor do terrorismo
internacional, a Albânia. Heróis, jingles, campanhas cívicas, vídeo clipes
etc., uma verdadeira campanha promocional é criada para que a mídia morda a
isca.
A
certa altura, o produtor inventa o drama de um soldado norte-americano mantido
prisioneiro pelos albaneses, o sargento William Schumann. Como o sobrenome rima
com “shoe” (sapato), inventaram uma ação de marketing para criar um apoio
melodramático ao suposto drama do militar americano mantido em cativeiro - assista a sequência abaixo.
Robert
De Niro e Dustin Hoffman saem no meio da noite para jogar sapatos velhos nos
fios e postes. Um menino observa curioso, e Hoffman fala: “espalhe para os
outros garotos”. Pronto! Em pouco tempo, toda América jogava sapatos velhos na
fiação urbana como apoio simbólico ao sargento “old shoes”, prisioneiro dos
malignos terroristas albaneses.
Panelaços
começaram dessa maneira no Chile em 1971 como estratégia de guerra híbrida para
a derrubada do governo de Salvador Allende. E com o mesmo modus operandi: bateções de panelas repercutidos pela grande mídia.
Para quê? Para criar o efeito de imitação através da chamada “espiral do
silêncio” – a compulsão mimética do indivíduo querer fazer parte de uma suposta
maioria.
A
esquerda racionalizou, ou melhor, tentou colocar o fenômeno dos panelaços
brasileiros, dentro de uma narrativa: é a luta dos “ricos contra os pobres”.
Na
verdade, os ricos ganharam muito dinheiro na era Lula. Quem batia panela eram as
classes médias cujo psiquismo é por essência conformista e louco para
participar de “ondas” – Freud via por trás adesão a uma suposta maioria o medo
da solidão: pior que a morte, o que o indivíduo mais teme é a solidão. Aderir à
maioria seria uma forma de atrair o amor e a aprovação dos outros para si.
Panelaços
não mais acontecem porque simplesmente o contexto passou (como uma “ola” em um
estádio) e a logística da guerra híbrida deixou em stand by essa ação de marketing. Enquanto a esquerda ideologiza, a
direita é pragmática – quando quer, a qualquer momento, liga o motor da espiral
do silêncio.
2. O conto maravilhoso do executivo que virou sem teto
Perdido
em um portal de notícias, a edificante história de um ex-executivo, gerente de
Recursos Humanos de várias empresas, que vive há um ano meio na ruas do Rio de
Janeiro sem dinheiro para pagar aluguel. Perdeu o emprego em 2015 e hoje dorme
em frente ao aeroporto Santos Dumont e deixa seus pertences em uma agência bancária
na qual tem conta – clique aqui.
Analisa
ofertas de trabalho em seu laptop graças ao Wi-Fi do aeroporto. A matéria
descreve que ele traja “camisa social e tênis moderno” e “não aparenta ser um
dos milhares de sem-teto da cidade”.
Segundo
o texto, o ex-executivo acredita “que isso é algo passageiro e se esforça para
não deixar a peteca cair” e diz preferir “ficar isolado porque se me juntar com
outros sem-teto posso conviver com coisas como drogas e sujeira”. E ainda
descreve que ele “tem perfil no Facebook onde aparece de terno e gravata”.
O
texto é um primor de narratologia que lembra a chamada Morfologia do Conto Maravilhoso
do pesquisador Vladimir Propp (1895-1970): a separação brutal (crise, desemprego), morte simbólica (ex-executivo sem-teto) e renascimento simbólico (não deixar a “peteca cair” – “faz
exercícios físicos, lê em cafés e livrarias”, não se deixar contaminar por
“drogas e sujeira” etc.).
Tudo
para elevar a moral da tropa através da mitologia do mérito e do esforço
pessoal. A crise, que deveria ser o momento de crítica e reflexão, é
normatizada através dessas fábulas de esforço e superação.
Como
o semiólogo francês Roland Barthes observava, a operação linguística básica das
mitologias é esvaziar a História (a estrutura política e social) para
transformá-la em Natureza – naturalmente dificuldades sempre existirão na vida.
E estas existem para serem superadas.
Pegue
uma notícia (um ex-executivo sem-teto) em um contexto atual (14 milhões de
desempregados) transforme em um conto maravilhoso de superação no qual uma
pessoa (transformada em personagem exemplar) se sobrepõe aos milhões de
desempregados.
Resultado:
tudo parece decorrer da natureza das coisas, uma estranha normalidade
tranquilizadora na qual o esforço pessoal (ele não se deixa contaminar por
drogas e sujeira) é mais importante do que qualquer questionamento do porquê
repentinamente surgem milhões de desempregados.
Mais
uma bomba semiótica normatizadora do conto maravilhoso com uma importante lição
de moral despolitizadora: “fiquem tranquilos, é tudo passageiro! Só depende do
esforço e mérito individual.
3. Sob Pressão
Em
meio às notícias diárias da extinção de farmácias populares e de hospitais
públicos fechando setores como maternidade ou pronto-socorro por falta de
insumos hospitalares mais básicos, eis que a atenta teledramaturgia da TV Globo
entra em ação com a sua estratégia semiótica de sempre pontuar as mazelas
nacionais com a ficção televisiva.
Com
a minissérie Sob Pressão, a emissora transforma
a atual crise que gera milhões de desempregados e desmanche da saúde pública em
thriller hospitalar.
Segundo
a Globo o seriado “expõe a realidade da saúde pública por meio de dilemas
vivido pelo protagonista, o médico cirurgião Evandro (Júlio Andrade), e por
outros médicos como Carolina (Marjorie Estiano)”.
Evandro
é quase um MacGyver que lida com a falta de tudo para salvar vidas – como, por
exemplo, a falta de drenos para um paciente, resolvida com uma mangueira que
encontra pelo hospital, corta em pedaços, desinfeta e faz dela os drenos que
precisa.
Claro
que nesse drama todo dos pacientes em hospitais públicos sob a política geral
de desmanche, sobrepõem-se as tensões das relações pessoais, afetivas e
amorosas, dos próprios médicos.
Normatizar
a realidade por meio da ficção: a “crise” é uma dessas vicissitudes da vida que
de repente cai sobre nossas cabeças para nos desafiar – só depende de nós a
superação e o esforço.
A
minissérie Sob Pressão é mais um
“conto maravilhoso” dentro do atual evangelho meritocrático que atualmente vige
no País – narrativa que legitima a atual agenda de mandar às favas todas
garantias e direitos sociais por meio de “reformas” trabalhistas,
previdenciárias e políticas.
Esses
três pequenos exemplos são apenas amostras do alcance da atual guerra híbrida. Ela
é insidiosa porque paradoxalmente não nega a realidade. A guerra híbrida não
censura ou mente: ela mostra a realidade, porém sob a narrativa ficcional que
se transformam em mitologias que esvaziam a História e despolitiza o debate. O Cinegnose chama isso de “bombas
semióticas”.
Logística
semiótica diante da qual a esquerda parece virar as costas, acreditando que
tudo será resolvido por “estratégias políticas”, como, por exemplo, “soltar a
corda para o Temer se enforcar”. E que nas próximas eleições tudo será sanado.
Sabendo-se
que o atual Congresso já deu reiteradas provas de que não conhece limites e
pudores, é questão de se colocar sob risco a possibilidade de eleições para o
ano que vem...
Postagens Relacionadas |