quinta-feira, agosto 10, 2017

Três didáticos casos de guerra híbrida e bombas semióticas que a esquerda finge não ver


Três didáticos casos sobre o alcance da atual guerra híbrida que a esquerda parece fingir que não existe, encastelada na sua “estratégia política” ao dar corda para o desinterino Temer supostamente se enforcar: o porquê das panelas não baterem mais; o “conto maravilhoso” do ex-executivo que virou sem teto; e a minissérie da TV Globo “Sob Pressão”. Três pequenos casos exemplares de como as bombas semióticas, mobilizadas pela guerra híbrida, constroem a atual mitologia meritocrática que vige no País legitimando as reformas do ensino, trabalhista e previdenciária – uma mitologia que não nega a realidade, mas a pontua através da ficção, despolitizando o debate e normatizando a crise como fosse mais um desses desafios que surgem em nossas vidas, somente superados pelo esforço pessoal.

Em postagem anterior (clique aqui) este humilde blogueiro abordou um aspecto bem particular da atual guerra híbrida travada no Brasil: a construção do perfil etnográfico urbano que chamo de “simples descolados” – a nova e sustentável versão do antigo “coxinha” de camisetas polo Lacoste do século passado.

Principalmente como esse perfil cresceu num momento de radicalização e polarização política a partir de 2013 no sistemático processo de esfacelamento da democracia brasileira.

Dentro da guerra simbólica o “simples descolado” foi uma resposta ao neo-desenvolvimentismo dos governos trabalhistas e a inserção da classe C no consumo, enquanto os “simples descolados” começavam a resgatar como “chic” tudo que era “popular”, “de raiz”, por meio de eufemismos como o “orgânico”, o “sustentável” etc.

 E como a grande mídia criou uma nova “mitologia gastronômica”, combinando o “despretensioso” e a “simplicidade” com o ideário meritocrático e empreendedor – preparando o terreno para o momento atual no qual desempregados destituídos de direitos trabalhistas veem como única saída o “empreendedorismo”: a fé religiosa no momento em que a força de trabalho se converta em capital – assim como na Eucaristia o pão e o vinho se transubstanciam no corpo e sangue de Cristo.

A postagem recebeu algumas críticas de leitores de esquerda: “punheta retórica sem sentido”... “não admira que a esquerda tenha perdido o apoio do povão”... “deixa o povo cozinhar, gozar...” entre outras “observações”.

Ele já sabia...

“A gente vai se livrar dessa raça”


Em 2005 o senador catarinense Jorge Bornhausen, em meio ao início da crise política do mensalão que culminaria 11 anos depois no impeachment de Dilma, foi profético: “porque a gente vai se livrar dessa raça, por, pelo menos, 30 anos”. Parece que o senador já sabia de antemão dos planos traçados pela guerra híbrida - cuja tecnologia de ação direta e midiática foi importada diretamente do Departamento de Estado dos EUA.

“Observações” como as citadas acima parecem comprovar que até agora a esquerda não conseguiu entender que o golpe político, a imposição da atual agenda da destruição dos direitos e o possível adiamento das eleições de 2018 (sentida pelos “balões de ensaio” jogados aqui e ali no noticiário, principalmente econômico) não ocorreu no vácuo. E muito menos por “erro de cálculo” político ou “de estratégia” dos governos petistas.

 Em postagens passadas, vimos como as bombas semióticas detonadas pela guerra híbrida alimentaram as hostes do neoconservadorismo por meio da criação de um novo conjunto de perfis etnográficos urbanos: “simples descolados”, “novos tradicionalistas”, “coxinhas 2.0”, “rinocerontes” etc. Novos hábitos de consumo, atitudes, valores etc. que combinavam a “sustentabilidade sustentável” do ecologicamente correto com as velhas teses neoliberais da Escola de Chicago e Austríaca de Friedman e Hayek.

Enquanto a “sombra das maiorias silenciosas” assistiu e assiste bestializada a tudo (clique aqui), nas classes médias cresceu essa “massa crítica” neoconservadora que bateu panelas, vestiu camisas amarelas da CBF enquanto black blocs performavam a ensaiada tática (onde será que eles ensaiaram?) de ação direta nas ruas.

Por devoção à paciência e didatismo, este Cinegnose vai apresentar três pequenos e educativos exemplos de como funciona a guerra híbrida e detonação de bombas semióticas no campo de batalha da opinião pública: o porquê das panelas não bateram mais, mesmo com o escárnio diário das ações do desinterino Michel Temer para se blindar das acusações do Ministério Público Federal; a pequena fábula do ex-executivo morador de rua e a minissérie da TV Globo Sob Pressão.  


1. Por que as panelas não batem mais?


As esquerdas acusam os paneleiros de “hipócritas” e “envergonhados”. Não batem mais panelas supostamente por vergonha, arrependimento: “olha no que deu!”...

Para as esquerdas, essa é uma percepção conveniente. Com isso, viram as costas à questão da guerra híbrida que não querem enfrenta-la. E resumem a questão do “silêncio das panelas” a “paneleiros massas de manobra”. A eles a imputação moral da culpa e vergonha.

Mas a guerra híbrida não é uma questão de moralidade mas de logística e pragmatismo, como apresenta de uma forma extremamente didática o filme Mera Coincidência (Wag The Dog, 1997).

Para quem não se lembra ou nunca assistiu ao filme, Meera Coincidência  acompanha os problemas do presidente dos EUA que, na reta final da campanha à reeleição, envolve-se num escândalo sexual com uma adolescente.

O presidente convoca um conselheiro especializado em contra ações de marketing (Robert De Niro) que precisa reverter a agenda a poucos dias do final da campanha: contrata um produtor de Hollywood (Dustin Hoffman) para produzir uma guerra fictícia contra um país supostamente promotor do terrorismo internacional, a Albânia. Heróis, jingles, campanhas cívicas, vídeo clipes etc., uma verdadeira campanha promocional é criada para que a mídia morda a isca.

A certa altura, o produtor inventa o drama de um soldado norte-americano mantido prisioneiro pelos albaneses, o sargento William Schumann. Como o sobrenome rima com “shoe” (sapato), inventaram uma ação de marketing para criar um apoio melodramático ao suposto drama do militar americano mantido em cativeiro - assista a sequência abaixo.


Robert De Niro e Dustin Hoffman saem no meio da noite para jogar sapatos velhos nos fios e postes. Um menino observa curioso, e Hoffman fala: “espalhe para os outros garotos”. Pronto! Em pouco tempo, toda América jogava sapatos velhos na fiação urbana como apoio simbólico ao sargento “old shoes”, prisioneiro dos malignos terroristas albaneses.

Panelaços começaram dessa maneira no Chile em 1971 como estratégia de guerra híbrida para a derrubada do governo de Salvador Allende. E com o mesmo modus operandi: bateções de panelas repercutidos pela grande mídia. Para quê? Para criar o efeito de imitação através da chamada “espiral do silêncio” – a compulsão mimética do indivíduo querer fazer parte de uma suposta maioria.

A esquerda racionalizou, ou melhor, tentou colocar o fenômeno dos panelaços brasileiros, dentro de uma narrativa: é a luta dos “ricos contra os pobres”.

Na verdade, os ricos ganharam muito dinheiro na era Lula. Quem batia panela eram as classes médias cujo psiquismo é por essência conformista e louco para participar de “ondas” – Freud via por trás adesão a uma suposta maioria o medo da solidão: pior que a morte, o que o indivíduo mais teme é a solidão. Aderir à maioria seria uma forma de atrair o amor e a aprovação dos outros para si.

Panelaços não mais acontecem porque simplesmente o contexto passou (como uma “ola” em um estádio) e a logística da guerra híbrida deixou em stand by essa ação de marketing. Enquanto a esquerda ideologiza, a direita é pragmática – quando quer, a qualquer momento, liga o motor da espiral do silêncio.

Foto: Mauro Pimentel/AFP

2. O conto maravilhoso do executivo que virou sem teto  


Perdido em um portal de notícias, a edificante história de um ex-executivo, gerente de Recursos Humanos de várias empresas, que vive há um ano meio na ruas do Rio de Janeiro sem dinheiro para pagar aluguel. Perdeu o emprego em 2015 e hoje dorme em frente ao aeroporto Santos Dumont e deixa seus pertences em uma agência bancária na qual tem conta – clique aqui.

Analisa ofertas de trabalho em seu laptop graças ao Wi-Fi do aeroporto. A matéria descreve que ele traja “camisa social e tênis moderno” e “não aparenta ser um dos milhares de sem-teto da cidade”.

Segundo o texto, o ex-executivo acredita “que isso é algo passageiro e se esforça para não deixar a peteca cair” e diz preferir “ficar isolado porque se me juntar com outros sem-teto posso conviver com coisas como drogas e sujeira”. E ainda descreve que ele “tem perfil no Facebook onde aparece de terno e gravata”.

O texto é um primor de narratologia que lembra a chamada Morfologia do Conto Maravilhoso do pesquisador Vladimir Propp (1895-1970): a separação brutal (crise, desemprego), morte simbólica (ex-executivo sem-teto) e renascimento simbólico (não deixar a “peteca cair” – “faz exercícios físicos, lê em cafés e livrarias”, não se deixar contaminar por “drogas e sujeira” etc.).

Tudo para elevar a moral da tropa através da mitologia do mérito e do esforço pessoal. A crise, que deveria ser o momento de crítica e reflexão, é normatizada através dessas fábulas de esforço e superação.

Como o semiólogo francês Roland Barthes observava, a operação linguística básica das mitologias é esvaziar a História (a estrutura política e social) para transformá-la em Natureza – naturalmente dificuldades sempre existirão na vida. E estas existem para serem superadas.

Pegue uma notícia (um ex-executivo sem-teto) em um contexto atual (14 milhões de desempregados) transforme em um conto maravilhoso de superação no qual uma pessoa (transformada em personagem exemplar) se sobrepõe aos milhões de desempregados.

Resultado: tudo parece decorrer da natureza das coisas, uma estranha normalidade tranquilizadora na qual o esforço pessoal (ele não se deixa contaminar por drogas e sujeira) é mais importante do que qualquer questionamento do porquê repentinamente surgem milhões de desempregados.

Mais uma bomba semiótica normatizadora do conto maravilhoso com uma importante lição de moral despolitizadora: “fiquem tranquilos, é tudo passageiro! Só depende do esforço e mérito individual.


3. Sob Pressão


Em meio às notícias diárias da extinção de farmácias populares e de hospitais públicos fechando setores como maternidade ou pronto-socorro por falta de insumos hospitalares mais básicos, eis que a atenta teledramaturgia da TV Globo entra em ação com a sua estratégia semiótica de sempre pontuar as mazelas nacionais com a ficção televisiva.

Com a minissérie Sob Pressão, a emissora transforma a atual crise que gera milhões de desempregados e desmanche da saúde pública em thriller hospitalar.

Segundo a Globo o seriado “expõe a realidade da saúde pública por meio de dilemas vivido pelo protagonista, o médico cirurgião Evandro (Júlio Andrade), e por outros médicos como Carolina (Marjorie Estiano)”.

Evandro é quase um MacGyver que lida com a falta de tudo para salvar vidas – como, por exemplo, a falta de drenos para um paciente, resolvida com uma mangueira que encontra pelo hospital, corta em pedaços, desinfeta e faz dela os drenos que precisa.

Claro que nesse drama todo dos pacientes em hospitais públicos sob a política geral de desmanche, sobrepõem-se as tensões das relações pessoais, afetivas e amorosas, dos próprios médicos.


Normatizar a realidade por meio da ficção: a “crise” é uma dessas vicissitudes da vida que de repente cai sobre nossas cabeças para nos desafiar – só depende de nós a superação e o esforço.

A minissérie Sob Pressão é mais um “conto maravilhoso” dentro do atual evangelho meritocrático que atualmente vige no País – narrativa que legitima a atual agenda de mandar às favas todas garantias e direitos sociais por meio de “reformas” trabalhistas, previdenciárias e políticas.

Esses três pequenos exemplos são apenas amostras do alcance da atual guerra híbrida. Ela é insidiosa porque paradoxalmente não nega a realidade. A guerra híbrida não censura ou mente: ela mostra a realidade, porém sob a narrativa ficcional que se transformam em mitologias que esvaziam a História e despolitiza o debate. O Cinegnose chama isso de “bombas semióticas”.

Logística semiótica diante da qual a esquerda parece virar as costas, acreditando que tudo será resolvido por “estratégias políticas”, como, por exemplo, “soltar a corda para o Temer se enforcar”. E que nas próximas eleições tudo será sanado.

Sabendo-se que o atual Congresso já deu reiteradas provas de que não conhece limites e pudores, é questão de se colocar sob risco a possibilidade de eleições para o ano que vem...

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