Woody Allen conseguiu transformar o seu filme “Zelig” (1983) em uma narrativa que se mantém sempre atual: por meio do humor sardônico do gênero pseudo-documentário conseguiu didaticamente apresentar as origens da cultura narcísica das celebridades contemporâneas e, através da personagem da doutora Eudora Fletcher (Mia Farrow) descrever as principais teses do século XX sobre a Psicologia de Massas.
“Zelig” talvez seja o primeiro filme do gênero "mockmentary" ou pseudo-documentário. Satírico por natureza, nesse gênero o diretor tem a
liberdade de construir argumentos baseando-se em falsas premissas para, dessa
forma, criar um fato hipotético. O semiólogo italiano Umberto Eco chamaria isso
de “verdade parabólica”: criar uma relação indireta com o real por meio de
simbolismos, paródias, paráfrases etc. É um gênero que ganha cada vez mais
força como o controverso “Borat” (2006), “Cloverfield: Monstro” (Cloverfield, 2008)
e “A Bruxa de Blair” (The Blair Witch Project, 1999).
Mas o filme “Zelig” estava à frente do seu tempo. O pseudo-documentário
é ambientado na década de 1920 e 30 e fala sobre Leonard Zelig (Woody Allen),
um homem pacato e desinteressante que passaria anônimo na história, não fosse a
estranha capacidade de transformar sua aparência na das pessoas que o cercam
(na presença de chineses adquire traços orientais, na presença de judeus
transforma-se num rabino etc.). É o “camaleão humano”, estranho caso que
intriga psicólogos, psiquiatras e neurologistas que não conseguem chegar a um
diagnóstico. Com o auxílio da técnica do “croma key” Woody Allen inseriu seu
personagem e outros atores em imagens reais de cinejornais da época,
antecipando técnicas usadas em filmes como “Forrest Gump” (1994).
Para diluir ainda mais os limites entre realidade e ficção,
o filme conta ainda com a participação de figuras reais do mundo acadêmico como
a ensaísta Susan Sontag, o psicólogo Bruno Bettelheim e o escritor vencedor do
prêmio Nobel Saul Bellow, entre outros.
Partindo desse mosaico de entrevistas, imagens de
cinejornais e documentários da época, com muito humor sardônico, Woody Allen reconstrói
da trajetória de Leonard Zelig, o “homem por trás da lenda” (odiado tanto pela
Direita – um judeu que pode se transformar em índio e negro é triplamente
suspeito – como pela Esquerda – um homem que assume várias identidades só pode
roubar postos de trabalho do proletáriado) . Mas o diretor vai mais além:
partindo da ideia de “verdade parabólica”, ele ilustra de uma forma didática ao
longo dos 79 minutos as principais teses sobre psicologia de massas levantadas
pelas vertentes dominantes do século XX como Freud, Escola de Frankfurt e David
Riesman e Lasch.
O Medo da Solidão
Woody Allen começa o filme descrevendo os “loucos anos 20”:
o florescimento da sociedade de massas através da incipiente indústria de
celebridades, modismos, Hollywood e toda uma cultura marcada pelo culto às
fortes emoções. Multidões de anônimos tomam as ruas e dessa multidão, no meio
de uma casa de jazz, surge o “camaleão humano”, um judeu que se transforma repentinamente
em um músico negro: Leonard Zelig.
A psicóloga Eudora Fletcher (Mia Farrow) vai tentar decifrar
o enigma Zelig. Enquanto a comunidade de médicos e psiquiatras submetem Zelig
às mais bizarras experiências envolvendo descargas elétricas e drogas, Eudora
acredita na natureza psíquica da anomalia.
Ela vai montando o quebra-cabeças: filho de uma família em
crise com pais ausentes onde os irmãos acabaram se entregando à prostituição ou
contravenção. Estranhamente Zelig se torna o mais bem sucedido dos irmãos,
integrando-se à vida social. Submetido a sessões de hipnose pela doutora Fletcher, Zelig admite
que o seu mimetismo é uma tática para se sentir seguro. Ele não quer se sentir
excluído e, por isso, se transforma à imagem da pessoa mais próxima para poder
se misturar aos outros.
Claramente a narrativa apresenta as duas principais
vertentes da Psicologia de Massas: a do francês Gustav Le Bon e do austríaco
Sigmund Freud. Influenciado pelas ideias de Mesmer e o “magnetismo animal” do
século XVIII, Le Bon acreditava que o indivíduo em meio à “multidão” perde o
raciocínio, a consciência e a capacidade crítica, tornando-se presa fácil de
uma “mesmerização” coletiva.
Ao contrário, Freud vai criar o viés psíquico: mais do que a
morte, o que o homem mais teme é a solidão. O “instinto gregário” é humano,
demasiadamente humano: o medo de não ser amado torna-o um ser mimético, isto é,
procura se integrar ao entorno através da imitação.
Essa ideia simples de Freud vai influenciar as principais
hipóteses da Escola de Frankfurt. Adorno, por exemplo, falava que “na multidão
todos nos sentimos mal amados” (veja ADORNO, Theodor. “Educação após Auschwitz”, In: COHN, Gabriel (org) Theodor Adorno, São Paulo: Ática, 1988). Todo o fenômeno de massa da propaganda nazista será explicado por Adorno a partir dessa
frustração individual: multidão cria solidão e frustração. Pessoas mal amadas
anseiam pela imitação, resignação e conformismo como tática de sobrevivência
psíquica.
Na década de 1950, no clássico da sociologia “A Multidão
Solitária”, David Riesman vê no século XX a ascensão de personalidades “alter-dirigidas”
(isto é, orientadas para o meio externo) em contraposição aos intra-dirigidos
(orientados por valores éticos e morais internos). Como Riesman escreveu, “Mais
do que ser estimado, a personalidade Ater-dirigida quer ser amada, não
necessariamente para controlar os outros, mas para se relacionar com elas”.
Para ele, hoje o triunfo desse tipo de personalidade é completa.
O historiador e crítico social norte-americano Christopher Lasch viu no triunfo desse tipo de personalidade
o surgimento do Narcisismo na cultura. Ao contrário da visão tradicional do
conceito (Narcisismo como excesso de ego), Lasch vê no fenômeno narcísico a
deflação do ego: o indivíduo tenta corresponder às expectativas que ele acha que os outros estão tendo dele, obliterando seu próprio ego. Temos um sujeito com um ego fragilizado,
facilmente influenciável e sensível a boatos, fofocas, modismos, expectativas
etc. Por trás dos ideais grandiosos narcisistas (tornar-se celebridade, ser o
garoto mais popular da escola, ter o maior número de seguidores no twitter
etc.) esconde-se, mais uma vez o medo de ser rejeitado e mal amado.
A Celebridade Fetiche
Por isso, “Zelig” chega a ter uma precisão quase sociológica
ao descrever o nascimento do culto às celebridades com a figura do “camaleão
humano” que vira a mania do momento promovida por brinquedinhos e bonequinhos
do Zelig, gravações de baladas de jazz e passos de dança especialmente criados.
É o que Adorno chamava de “celebridade fetiche”: se no
passado pessoas tornavam-se célebres pelos seus gestos, realizações ou
empreendimentos, agora são célebres não porque são dotadas de qualidades
socialmente relevantes, mas pela simples exposição extensiva na mídia. Do “freak
show” do “camaleão humano” Zelig aos vídeos hiperbólicos do YouTube, o padrão
parece ser o mesmo: a desesperada busca de escapar do anonimato da multidão
solitária ao confundir a fama com o amor, a celebridade com a afeição.
Por isso compreende-se por que as celebridades midiáticas
não são admiradas, mas invejadas. No fundo todos sabem que a celebridade nada
fez para conseguir a visibilidade midiática a não ser aplicar o senso de
oportunismo. Não inspiram nenhum repeito ético ou moral, a não ser o invejoso
desejo de que “podia ser eu”.
Zelig é filho de uma família deteriorada (“quando meus pais
ficavam zangados me trancavam no guarda-roupas; quando ficavam muito zangados se trancavam comigo no
guarda-roupas”) No seu horizonte o simbolismo do Pai e da Ética desapareceu.
Ter filhos, escrever um livro e plantar uma árvore como formas de realização do
Ego desaparecem para, no seu lugar, ser instaurada a fantasia narcísica de
onipotência: ser “amado” por todos como celebridade, ter o seu gesto bizarro ou qualquer esquisitice visível por imagens efêmeras.
Por isso, o filme “Zelig” de 1983 continua ainda muito
atual. Principalmente porque encontramos nesse pseudo-documentário as origens
das modernas formas narcísicas de individuação. O espírito de Leonard Zelig
ainda habita as atuais mídias de massa e redes sociais.
Ficha Técnica
- Título: Zelig
- Diretor Woody Allen
- Roteiro: Woody Allen
- Elenco: Woody Allen, Mia Farrow,Patrick Horgan (narrador), John Buckwalter
- Produção: Orion Pictures Co.
- Warner Home Video
- Ano: 1983
- País: EUA
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