Para
quem lida com pesquisa sobre a recorrência de temas gnósticos na produção
cinematográfica atual, ver Ilha
do Medo (Shutter Island,
2010) faz lembrar de toda uma gama de filmes (Matrix, Cidade das Sombras, Show de Truman, Amnésia, Décimo Terceiro
Andar etc.) que tematizam a paranoia e a esquizofrenia como
caminhos para o despertar da consciência frente à realidade ilusória
artificialmente criada por uma trama conspiratória.
Scorsese constrói uma pesada e tensa atmosfera típica dos filmes noir (gêneros de filme norte-americano
dos anos 1940-50 notabilizado pela fotografia em preto e branco com alto
contraste e personagens com motivações cínicas em um mundo que se desfaz em
névoas e chuva) , com toda a iconografia e simbologia do gênero (neblina, fogs,
fumaça de cigarros, chuvas e tempestades, overcoats, vidros e espelhos) sobre a
estória de dois policiais federais (Teddy – Di Caprio e Chuck – Mark Ruffalo)
que desembarcam numa ilha onde está instalado um manicômio judiciário. Estão lá
para desvendar o mistério do desaparecimento de uma prisioneira em uma ilha
cuja fuga é impossível.
O detalhe importante é que a narrativa se situa no ano
de 1952, no auge da paranoia da opinião pública norte–americana sobre a Guerra
Fria e o anti-comunismo, contexto que potencializa ainda mais a vertigem paranoica
do filme.
Como em todo filme noir onde
nada é o que aparenta ser, Teddy encarna o personagem arquetípico do Detetive:
ele tem que resolver um enigma proposto, sem saber que a solução final desse
enigma levará à própria identidade perdida ou esquecida. Esta perda cria o
estado de paranoia: em quem confiar? Como distinguir a verdade da mentira, a
ilusão da realidade? Por que os fatos se sucedem sem causalidade? Como saber se
o que ele sente é sanidade ou loucura?
O que a princípio parece uma narrativa linear sobre o encaixe das peças que
levem a solução do mistério da fuga de uma prisioneira do manicômio, aos poucos
vai sendo desconstruída, colocando em dúvida tanto para o protagonista quanto
para o espectador a identidade do protagonista quanto a própria existência da
prisioneira que desapareceu.
Existem fortes indícios de que Teddy é insano (sonhos de sua filha, Dr. Cawley
– Bem Kingsley - conhecer seus sonhos), mas se queremos ir a fundo à
compreensão real deste filme, temos que ter em mente o acima mencionado filme "Cidade das Sombras", sobre um grupo de seres que mantém humanos em um local de
quarentena para implantar neles falsas memórias.
Teddy pode ter sido drogado progressivamente, começando com a “aspirina” que
ele toma no início, a partir da qual os começam os sonhos vívidos.
Ao longo do
filme, a mente de Teddy vai sendo bombardeado por drogas psicotrópicas, assim como
a instituição está sendo bombardeada pela tempestade. A mente de Teddy é
duramente atacada, o suficiente para que suas defesas mentais sejam reduzidas,
deixando-se ser manipulado pelo Dr. Cawley para acreditar que ele é um paciente
na ilha e que havia assassinado sua esposa.
O que difere do noir clássico é que
enquanto lá tudo gira em torno do tema do “humano, demasiado humano”, aqui no
filme “A Ilha do Medo” o detetive procura solucionar não o enigma das relações
pessoais, mas o enigma da ilusão da própria realidade que aprisiona o espírito.
As seguidas memórias de Teddy dos cadáveres no campo de concentração de Dachau
(ele é um ex-combatente da II Guerra Mundial) se associam à evidência de que
toda a ilha seria uma extensão dos experimentos nazistas de controle da mente.
Paranoia Narcísica e Paranoia Espiritual
Além do tema gnóstico da realidade como uma construção artificial, está também
presente o tema da paranoia. Para Valentim (professor gnóstico, aluno de São
Paulo, nascido em Cartago em torno de 100 DC) se o iniciado começa a suspeitar
de que os objetos ao redor são ilusórios, como, então, poderá discernir entre a
sanidade das suas percepções e a insanidade que o mundo pretende rotulá-lo?
Como separar o desejo do medo? Através da paranoia.
Diferente da estrita concepção narcísica de paranoia – a ideia de que o sujeito
tem de que o mundo está focado em uma perseguição contra si próprio – a
concepção valentiniana está no limite entre a sanidade e a loucura, através de
uma desconfiança radical em relação ao mundo ao redor que está dado.
Vivendo
nesta espécie de limbo, corre o risco de cair para um lado ou para o outro:
tornar-se irremediavelmente insano ou preparar-se para ocultar-se em uma lúcida
loucura habitando um espaço entre a claridade e a instabilidade emocional. Se,
por definição, o gnosticismo nega a realidade material como uma ilusão
fabricada por propósitos desconhecidos, a paranóia é o caminho através do qual
as personagens buscarão a iluminação.
Tal qual em “Show de Truman” (
The Truman Show, 1998), onde procura-se racionalizar a paranoia do
protagonista (Christof, o demiurgo, tenta racionalizar a melancolia de Truman
tentando construí-la dentro de um plot freudiano: sentimento de culpa pela
morte do pai, processo de lutificação, punição a si mesmo por meio de uma forma
histérica) da mesma maneira em A Ilha do Medo os psiquiatras do manicômio
procuram racionalizar a crescente paranoia de Teddy (“tudo que você faz é
considerado parte da loucura, seus medos são chamados de paranoia, seu instinto
de sobrevivência é rotulado como mecanismo de defesa...”).
Procura-se reduzir a
sagrada paranoia (a paranoia espiritual que desconfia da realidade como constructu de uma totalidade falsa ou
corrompida) à paranoia narcísica, do mero plot
freudiano de um ego sitiado.
A Ironia Narrativa
Ao lado do artificialismo da realidade e da paranoia, associa-se mais um
tema gnóstico: a ironia. Do início ao fim, o filme cria uma narrativa
radicalmente ambígua.
Desde a primeira sequência percebemos sistemáticas descontinuidades entre os
planos de câmera: quebras de eixo, descontinuidades campo/contra-campo etc. Os
planos em que temos o mar ou o céu em segundo plano tem um caráter
propositalmente cenográfico, lembrando filmes de Hitchcoock dos anos 50 como
Vertigo (metalinguagem?). Tudo isso dá um caráter de artificialismo à
narrativa, levando o espectador à típica situação irônica: o que vemos é a
realidade atual ou projeções psíquicas do protagonista? As imagens correspondem
a uma narrativa realista ou onírica. Qual o ponto de vista da narrativa?
Além disso, a estória é ambígua: o protagonista é realmente um policial federal
buscando a solução de um enigma que no final se transforma numa gigantesca
conspiração ou o principal prisioneiro do manicômio, capaz de criar alucinações
para esquecer do assassinato de sua família? Ele é prisioneiro das alucinações
psicotrópicas de uma conspiração governamental ou prisioneiro dos seus próprios
dramas interiores? Pouco importa, pois as interpretações se sobrepõem e se
complementam.
No final, temos o principal tema gnóstico: a durabilidade da partícula de luz e
do espírito frente a um universo material corrompido. Por isso, o final é
emblemático: o espírito de Teddy não pode ser corrompido, levando os
psiquiatras demiurgos à “solução final”: a lobotomização, para finalmente
confinar o espírito na prisão final – no corpo destituído de livre-arbítrio. “O
que poderia ser pior: viver como um monstro ou morrer como um homem bom?” Teddy
entrega-se à segunda opção para manter a integridade espiritual.
Ficha Técnica:
- Título: A Ilha do Medo (Shutter Island)
- ano de lançamento: 2010
- estúdio: Paramount
Pictures / Sikelia Productions / Phoenix Pictures / Hollywood Gang
Productions / Appian Way
- distribuidora: Paramount Pictures
- direção: Martin Scorsese
- roteiro: Laeta Kalogridis, baseado em
livro de Dennis Lehane
- produção: Brad Fischer, Mike Medavoy,
Arnold Messer e Martin Scorsese
- Elenco:
Leonardo Di Caprio, Mark Ruffalo, Ben Kingsley, Emily Mortimer, Michele
Williams
- País: EUA