sexta-feira, agosto 24, 2012

A paranoia gnóstico-noir do filme "Ilha do Medo"

Para quem lida com pesquisa sobre a recorrência de temas gnósticos na produção cinematográfica atual, ver Ilha do Medo (Shutter Island, 2010) faz lembrar de toda uma gama de filmes (Matrix, Cidade das Sombras, Show de Truman, Amnésia, Décimo Terceiro Andar etc.) que tematizam a paranoia e a esquizofrenia como caminhos para o despertar da consciência frente à realidade ilusória artificialmente criada por uma trama conspiratória.

Scorsese constrói uma pesada e tensa atmosfera típica dos filmes noir (gêneros de filme norte-americano dos anos 1940-50 notabilizado pela fotografia em preto e branco com alto contraste e personagens com motivações cínicas em um mundo que se desfaz em névoas e chuva) , com toda a iconografia e simbologia do gênero (neblina, fogs, fumaça de cigarros, chuvas e tempestades, overcoats, vidros e espelhos) sobre a estória de dois policiais federais (Teddy – Di Caprio e Chuck – Mark Ruffalo) que desembarcam numa ilha onde está instalado um manicômio judiciário. Estão lá para desvendar o mistério do desaparecimento de uma prisioneira em uma ilha cuja fuga é impossível. 

O detalhe importante é que a narrativa se situa no ano de 1952, no auge da paranoia da opinião pública norte–americana sobre a Guerra Fria e o anti-comunismo, contexto que potencializa ainda mais a vertigem paranoica do filme.

Como em todo filme noir onde nada é o que aparenta ser, Teddy encarna o personagem arquetípico do Detetive: ele tem que resolver um enigma proposto, sem saber que a solução final desse enigma levará à própria identidade perdida ou esquecida. Esta perda cria o estado de paranoia: em quem confiar? Como distinguir a verdade da mentira, a ilusão da realidade? Por que os fatos se sucedem sem causalidade? Como saber se o que ele sente é sanidade ou loucura?

O que a princípio parece uma narrativa linear sobre o encaixe das peças que levem a solução do mistério da fuga de uma prisioneira do manicômio, aos poucos vai sendo desconstruída, colocando em dúvida tanto para o protagonista quanto para o espectador a identidade do protagonista quanto a própria existência da prisioneira que desapareceu. 

Existem fortes indícios de que Teddy é insano (sonhos de sua filha, Dr. Cawley – Bem Kingsley - conhecer seus sonhos), mas se queremos ir a fundo à compreensão real deste filme, temos que ter em mente o acima mencionado filme "Cidade das Sombras", sobre um grupo de seres que mantém humanos em um local de quarentena para implantar neles falsas memórias. Teddy pode ter sido drogado progressivamente, começando com a “aspirina” que ele toma no início, a partir da qual os começam os sonhos vívidos. 

Ao longo do filme, a mente de Teddy vai sendo bombardeado por drogas psicotrópicas, assim como a instituição está sendo bombardeada pela tempestade. A mente de Teddy é duramente atacada, o suficiente para que suas defesas mentais sejam reduzidas, deixando-se ser manipulado pelo Dr. Cawley para acreditar que ele é um paciente na ilha e que havia assassinado sua esposa. 

O que difere do noir clássico é que enquanto lá tudo gira em torno do tema do “humano, demasiado humano”, aqui no filme “A Ilha do Medo” o detetive procura solucionar não o enigma das relações pessoais, mas o enigma da ilusão da própria realidade que aprisiona o espírito. As seguidas memórias de Teddy dos cadáveres no campo de concentração de Dachau (ele é um ex-combatente da II Guerra Mundial) se associam à evidência de que toda a ilha seria uma extensão dos experimentos nazistas de controle da mente.


Paranoia Narcísica e Paranoia Espiritual


Além do tema gnóstico da realidade como uma construção artificial, está também presente o tema da paranoia. Para Valentim (professor gnóstico, aluno de São Paulo, nascido em Cartago em torno de 100 DC) se o iniciado começa a suspeitar de que os objetos ao redor são ilusórios, como, então, poderá discernir entre a sanidade das suas percepções e a insanidade que o mundo pretende rotulá-lo? Como separar o desejo do medo? Através da paranoia.

Diferente da estrita concepção narcísica de paranoia – a ideia de que o sujeito tem de que o mundo está focado em uma perseguição contra si próprio – a concepção valentiniana está no limite entre a sanidade e a loucura, através de uma desconfiança radical em relação ao mundo ao redor que está dado. 

Vivendo nesta espécie de limbo, corre o risco de cair para um lado ou para o outro: tornar-se irremediavelmente insano ou preparar-se para ocultar-se em uma lúcida loucura habitando um espaço entre a claridade e a instabilidade emocional. Se, por definição, o gnosticismo nega a realidade material como uma ilusão fabricada por propósitos desconhecidos, a paranóia é o caminho através do qual as personagens buscarão a iluminação. 

Tal qual em “Show de Truman” ( The Truman Show, 1998), onde procura-se racionalizar a paranoia do protagonista (Christof, o demiurgo, tenta racionalizar a melancolia de Truman tentando construí-la dentro de um plot freudiano: sentimento de culpa pela morte do pai, processo de lutificação, punição a si mesmo por meio de uma forma histérica) da mesma maneira em A Ilha do Medo os psiquiatras do manicômio procuram racionalizar a crescente paranoia de Teddy (“tudo que você faz é considerado parte da loucura, seus medos são chamados de paranoia, seu instinto de sobrevivência é rotulado como mecanismo de defesa...”). 

Procura-se reduzir a sagrada paranoia (a paranoia espiritual que desconfia da realidade como constructu de uma totalidade falsa ou corrompida) à paranoia narcísica, do mero plot freudiano de um ego sitiado.


A Ironia Narrativa


Ao lado do artificialismo da realidade e da paranoia, associa-se mais um tema gnóstico: a ironia. Do início ao fim, o filme cria uma narrativa radicalmente ambígua.

Desde a primeira sequência percebemos sistemáticas descontinuidades entre os planos de câmera: quebras de eixo, descontinuidades campo/contra-campo etc. Os planos em que temos o mar ou o céu em segundo plano tem um caráter propositalmente cenográfico, lembrando filmes de Hitchcoock dos anos 50 como Vertigo (metalinguagem?). Tudo isso dá um caráter de artificialismo à narrativa, levando o espectador à típica situação irônica: o que vemos é a realidade atual ou projeções psíquicas do protagonista? As imagens correspondem a uma narrativa realista ou onírica. Qual o ponto de vista da narrativa? 


Além disso, a estória é ambígua: o protagonista é realmente um policial federal buscando a solução de um enigma que no final se transforma numa gigantesca conspiração ou o principal prisioneiro do manicômio, capaz de criar alucinações para esquecer do assassinato de sua família? Ele é prisioneiro das alucinações psicotrópicas de uma conspiração governamental ou prisioneiro dos seus próprios dramas interiores? Pouco importa, pois as interpretações se sobrepõem e se complementam. 

No final, temos o principal tema gnóstico: a durabilidade da partícula de luz e do espírito frente a um universo material corrompido. Por isso, o final é emblemático: o espírito de Teddy não pode ser corrompido, levando os psiquiatras demiurgos à “solução final”: a lobotomização, para finalmente confinar o espírito na prisão final – no corpo destituído de livre-arbítrio. “O que poderia ser pior: viver como um monstro ou morrer como um homem bom?” Teddy entrega-se à segunda opção para manter a integridade espiritual.


Ficha Técnica:

  • Título: A Ilha do Medo (Shutter Island)
  • ano de lançamento: 2010
  • estúdio: Paramount Pictures / Sikelia Productions / Phoenix Pictures / Hollywood Gang Productions / Appian Way
  • distribuidora: Paramount Pictures
  • direção: Martin Scorsese
  • roteiro: Laeta Kalogridis, baseado em livro de Dennis Lehane
  • produção: Brad Fischer, Mike Medavoy, Arnold Messer e Martin Scorsese
  • Elenco: Leonardo Di Caprio, Mark Ruffalo, Ben Kingsley, Emily Mortimer, Michele Williams
  • País: EUA

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