É notável a capacidade da guerra híbrida militar de informações conseguir criar uma verdadeira realidade paralela, para o deleite do respeitável público. Para a grande mídia é uma realidade repleta de drama (ataques à democracia e o fantasma de um golpe militar), thriller (a CPI e a ameaça da prisão de depoentes ao vivo), aventura (as cavalgadas do presidente moto rider que emula Mussolini) chegando até ao mockumentary (as constantes metalinguagens do telejornalismo mostrando os bastidores das coberturas dos acontecimentos políticos).
E para a esquerda e a mídia progressista, o wishful thinking de que a “cúpula militar” estaria com um suposto temor de as Forças Armadas perderem credibilidade e respeito diante dos acenos totalitários de Bolsonaro e general Pazuello – já que o socorro não veio do Exterior (denúncias ao Tribunal de Haia, ONU, OEA etc.), quem sabe se o “nacionalismo” dos militares não salve o dia.
Depois de o presidente performar uma passeata na orla do Rio de Janeiro (alguma coisa entre a paródia de Peter Fonda em Easy Rider e do Motoqueiro Fantasma de Nicolas Cage) acompanhado de uma legião de motoqueiros de luxo (para os quais Harley Davidsons e Ducatis são ostentações fetichistas de poder e potência), a grande mídia ativou o modo Alarme – a extensão simétrica aguardada pela psy op militar:
(a) Bolsonaro provoca aglomeração e não usa máscara, dando um mau exemplo e colocando seu ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, em saia justa;
(b) Bolsonaro coloca no palanque o general Pazuello (sem máscara) para fazer discursos de autoritarismo negacionista, colocando o Exército Brasileiro numa bola dividida: após desobedecer ao Regulamento Disciplinar do Exército que proíbe a participação de militares na ativa em atos políticos, caso Pazuello não seja exemplarmente punido, a Arma estaria expondo a democracia à extrema direita e ao fascismo – coisa que, supostamente, iria contra o “patriotismo” da “cúpula militar”.
Para um pesquisador nas ciências da Comunicação, como esse humilde blogueiro, é interessante perceber a eficiência da bomba semiótica detonada pela psy op militar no Rio de Janeiro, repleta de “coincidências”: começou passando pela avenida Salvador Allende (presidente chileno de esquerda que sofreu golpe militar em 1973) terminando no Monumento dos Pracinhas, no Aterro do Flamengo – de cabo a rabo, alusões militares.
Narrativa e Imaginário
A eficiência de uma bomba semiótica está na sua capacidade de ligar Narrativa e Imaginário – a Narrativa dos governadores imporem o totalitarismo através de medidas restritivas na pandemia, com o Imaginário do “presidente Mito”. A “cola” entre esses dois planos está justamente na narrativa ficcional com todos os recursos de um roteiro cinematográfico ou audiovisual.
Faltava alguma coisa na “Jornada do Herói” de Bolsonaro, uma exigência estrutural em qualquer narrativa ficcional: o alívio cômico, o companheiro de andanças do Herói: o personagem picaresco, o Pícaro - figura com origem nas obras da literatura espanhola dos séculos XVI-XVII; tipo de personagem descarada, astuta, ridícula e bufona. Em geral, personagem ligada ao herói, trazendo um alívio cômico após uma situação tensa. Comum em contos tradicionais e constante nas animações infanto-juvenis.
E nada melhor do que o general Pazuello. Para começar ele tem o physique du rôle para desempenhar o papel: baixinho, cara e corpo redondos, um jeito bonachão, o Sancho Pança perfeito para o Dom Quixote alt right. Não é por menos que, no alto do carro de som diante da militância motorizada, Bolsonaro exalta que ele é “esse é o gordo do bem. É o gordo paraquedista...”. Enquanto o general escancara a risada passando as mãos na barriga... nem Chacrinha!...
É conhecida forma como o discurso nazifascista mobilizou o riso e o humor (para começar, como Hitler e Mussolini emulavam o humor físico do cinema mudo slapstick) para ajudar as ideias totalitárias a romper a harmonia europeia – riso sardônico como desprezo a princípios éticos, morais, institucionais e civilizatórios – sobre isso clique aqui.
Enquanto o sebastianismo do mito Lula não necessita da narrativa picaresca por ser messiânica, ao contrário, o mito fascista necessita do alívio cômico sardônico – afinal, é necessária uma válvula de escape para tanta adrenalina do culto fetichista da força e poder. Além de mobilizar o ressentimento dos fracos: Bolsonaro é o capitão que leva as baixas patentes à forra contra um general três estrelas representando como um personagem ridículo. É a própria essência do riso sardônico: ridicularizar o mais “fraco”.
Essa é uma realidade paralela ficcional, uma operação psicológica militar com objetivos bem definidos numa guerra de informação criptografada.
A primeira pista é dada pelo professor de Antropologia da UFScar Piero Leirner em seu perfil no Facebook. Para ele, uma estratégia para apagar o processo para ressaltar apenas o resultado. Isso é apagamento de digital. De quem?
De quem fez o erro DESDE ANTES: seus comandantes. Pazuello tem essa função, uma vez que deu tudo errado: canalizar para si a energia e direcionar a descarga para o para-raios, seu suposto chefe, Bolsonaro. Mas quem elaborou Bolsonaro Presidente? Quem elaborou Pazuello para Bolsonaro Um grupo de Generais. Quando? A partir de 2014, até o presente. É isso que vão apagar. Com a suposta "punição a Pazuello", fica a ideia de que o EB "voltou para a caixinha". E assim se dá um "processo de purificação" no laboratório da guerra híbrida brasileira, deletando as reais condições do processo de produção e jogando pro mercado a ideia de que a instituição está funcionando.
Facas nos pescoços
Nesse momento a grande mídia requenta a narrativa que vai e volta desde o primeiro dia do governo Bolsonaro: uma suposta tensão entre a “cúpula militar” e os atos tresloucados do presidente.
Tudo começou com a historinha da situação vexatória de generais terem que bater continência para um capitão, com obscuro passado de expulsão do Exército por atos terroristas. Depois as histórias de “gabinete do ódio” e “gabinete paralelo” para criar a narrativa de que Bolsonaro teria um projeto totalitário unicamente pessoal e da sua família, e de que as Forças Armadas estariam embarcando numa perigosa aventura. Como se os militares “nacionalistas” estivessem sendo ludibriados ou no mínimo, vivendo uma relação “tensa” com o Governo.
Tudo para manter ainda a imagem das Forças Armadas como a reserva moral da Nação... e “apagar as digitais” da operação que construiu e, finalmente, empossou Bolsonaro em 2018.
A narrativa do desgaste e preocupação da tal “cúpula” com Pazuello é ridícula, já que o Rubicão já foi atravessado há muito tempo, desde que o general Villas Bôas tuitou a chantagem contra o STF, quando era comandante do Exército, às vésperas do julgamento do HC de Lula em 2018.
Pela primeira vez na História um presidente demitiu os três comandantes das Forças Armadas – certamente já estavam cansados de participar dos sucessivos blefes de golpe. E nada aconteceu.
Pesquisas apontam que a imagem das Forças Armadas até aqui não sofreu nenhum dano irreparável – para a pesquisa Data Folha, os números para a pergunta sobre se os militares devem ocupar cargos de governo continuam praticamente inalterados desde o ano passado: 52% contra e 43% a favor e, nesse ano, 54% contra a 41% a favor – clique aqui. Pazuello saiu do Ministério da Saúde como o grande responsável pela catástrofe sanitária do País. E nada mostra que a sua demissão resultou em grande abalo na imagem dos militares.
Como personagem picaresco, Pazuello transformou-se num ser à parte no contínuo midiático atmosférico. Simplesmente a opinião pública não liga lé com cré.
Pazuello vai para a reserva... e daí? E daí que a grande mídia sustenta as duas facas no pescoço para manter o controle dos resultados eleitorais para o ano que vem:
(a) faca da judicialização no pescoço de Lula – a qualquer momento pode ser acionado o plano de coordenação de uma nova condenação do ex-presidente na Justiça do Distrito Federal, assegurando a sua inelegibilidade.
(c) a faca de um possível golpe militar old school na garganta da opinião pública - ameaça somente possível porque a guerra criptografada apaga os rastros da operação psicológica Bolsonaro (a criação artificial do Mito, p. ex., com o auxílio luxuoso de programas televisivos como “Pânico na TV” e “CQC”), mantendo a ficção de que a tal “cúpula militar” estaria tensa e preocupada com a imagem da instituição. E que a Democracia estaria ameaçada pela atmosfera de “anarquia nos quartéis”.
Lembre-se: o medo e desconfiança são os rastilhos psíquicos que podem tanto criar um caos administrável como a manutenção do status quo.
Enquanto isso, os olhos estão voltados para a realidade paralela made in guerra híbrida: será que Pazuello vai receber apenas um puxão de orelhas? Ou vai ser preso? A temperatura da CPI vai subir! Será que a capitã cloroquina vai ficar calada?...
Como este Cinegnose sempre coloca, o golpe militar já aconteceu porque não foi televisionado, porque foi híbrido. E a guerra semiótica criptografada vai permitindo passar a “boiada” da agenda das reformas neoliberais, agora com um reforço: a entrada do pícaro Pazuello para acompanhar a jornada do herói “Mito”.