Desde o primeiro dia, todo dia, incansavelmente, o governo Bolsonaro opera a psy op da guerra criptografada: gerenciamento de informações caóticas, dissonantes, repletas de pseudo-eventos, não-acontecimentos, balões de ensaio, que depois são desmentidos, confirmados... ou não! Para a grande mídia transformar em narrativas episódicas, com ação, drama, indignação, num jogo de morde-assopra. Com a CPI da Pandemia (ou do Genocídio?) o show continua com um novo pseudo-evento: timing, sincronismos, conflitos de interesse e logística para a cobertura midiática tautista na qual repórteres viram protagonistas da própria notícia em matérias metalinguísticas (primeira evidência de um pseudo-evento). Para quê tudo isso? Seguindo a cartilha de Milton Friedman (Escola de Chicago), criar crises reais ou percebidas como reais para tornar politicamente inevitável a agenda neoliberal. No radar, a privatização do SUS.
“Sr. Fábio, o senhor só está aqui por causa da entrevista da revista Veja; senão, a gente nem lembraria que o senhor existiu. Está me entendendo? Só por causa disso. Não tem outra razão para você estar aqui.”
Bingo! Essa afirmação do presidente da CPI, Osmar Aziz (PSD-AM), diante das mentiras do escorregadio Fabio Wajngarten, revelou mais do que aquilo que os excelentíssimos senadores queriam supostamente arrancar do depoente: revelou o timing dos acontecimentos em torno da CPI, demonstrando que estamos diante de mais um pseudo-evento de uma guerra semiótica criptografada.
O show tem que continuar, mesmo que seja através de um telecatch canastríssimo, com direito a overactings como a da Deputada bolsonarista Carla Zambelli, invadindo o recinto da CPI, dizendo-se “representar as mulheres” ou do Flávio Bolsonaro mandando o relator Renan Calheiros “se fuder”.
O timing da bombástica entrevista dada à Veja por Wajngarten: menos de uma semana depois do STF confirmar a ordem de instalação da CPI da Pandemia, Wajngarten convoca-se automaticamente como depoente com a trepidantes declarações à revista. Para que? Para testar os limites da CPI, mentindo compulsivamente até receber a ameaça de prisão de Renan Calheiros. Para Aziz entrar na turma do “deixa disso” e passar o pano, ajudando a desmoralizar a CPI.
Ajudado ainda pelo próprio STF (responsável pela confirmação da Comissão de Inquérito) que concedeu o direito de se manter calado ao ex-ministro da Saúde, general Pazuello.
Para aquele que deveria ser o grande astro, o depoente-chave de toda a tragédia sanitária, é concedido o direito de repetir a cínica desculpa dos réus do Tribunal de Nuremberg: “eu apenas cumpria ordens...”.
Na verdade, mais um componente do pseudo-evento da CPI: o show da judicialização (necessário reforço do imaginário nacional, para quando o movimento em pinça fechar no futuro, dessa vez contra a esquerda): a Justiça tutela a Política enquanto ela própria é tutelada pelos militares – notoriamente, desde que o então presidente do STF, Dias Toffoli, formou um “gabinete estratégico” composto principalmente pelo General Fernando Azevedo e Silva; segundo Toffoli, para “criar canais de diálogo com setores importantes”...
Reforçando ainda mais o timing dos acontecimentos, o CEO da Pfizer na América Latina, Carlos Murillo, foi sabatinado pela CPI exatamente no momento chave em que sua empresa estava às portas de fechar um contrato bilionário (6,6 bilhões de reais) com o governo brasileiro pela venda de 100 milhões de doses de vacina.
E pior! Fala isso na abertura do seu depoimento... Ou seja, tudo o que dissesse a partir daquele ponto estava sob a suspeita de conflito de interesses, sob a ótica de blindar o governo (o seu cliente) pela Pfizer – o depoimento do CEO acabou reforçando a tese da “insegurança jurídica” para justificar o atraso de Bolsonaro para a aquisição de vacinas.
Realmente dava para esperar que Carlos Murillo fosse falar mal de um cliente tão lucrativo?
Nada é mera coincidência. É timing: movimentação calculada pelo Ministério da Saúde para o fechamento do contrato com a Pfizer antes do próprio depoimento do ministro Queiroga.
Nilson Klava: pelos corredores metalinguísticos da CPI |
A prova do pudim da metalinguagem
Num sentido estrutural em termos de lógica midiática, a prova do pudim de que a CPI é um mero pseudo-evento (com o esforço promocional do jornalismo corporativo – e também progressista, porque vai sempre no vácuo da grande mídia) é a metalinguagem da cobertura feita pelo canal noticioso Globo News.
Sempre a presença da metalinguagem no jornalismo corporativo é um sintoma de que o acontecimento já possui uma logística e timing (a essência de um pseudo-evento) que favorece a cobertura extensiva – o que não ocorre nos acontecimentos verdadeiros, cujo fator imprevisibilidade desafia a investigação dos repórteres.
Em meio à cobertura da CPI, acompanhamos uma matéria especial do intrépido repórter Nilson Klava comandando um plano sequência pelas salas dos senadores no Congresso, sempre pedindo para o cinegrafista acompanhá-lo. Lembrando o pseudo repórter Ernesto Varela, personagem impagável que Marcelo Tass fazia na década de 1980, com o objetivo de criar situações constrangedoras com políticos entrevistados.
Bem diferente de Varela, Klava não quer colocar em xeque nenhum entrevistado. Seus esforços são apenas metalinguísticos: coloca no plano da câmara o boom operator captando o som ambiente apenas para enaltecer o esforço técnico da Globo News em um evento “histórico”. Enquanto isso, apresentador e analistas no estúdio comentam o esforço técnico que representa o repórter fazer um grande plano sequência nos corredores do Congresso, entrando e saído da sala dos senadores.
Deixam de falar do acontecimento para falar da própria cobertura. Esse tautismo (tautologia + autismo midiático) significa que o evento já é, desde o seu início, concebido para a cobertura extensiva midiática. Assim como Fórmula Um, Copa do Mundo ou Olimpíadas: eventos concebidos em primeiro lugar para as lentes da mídia, submetendo todo o timing e ritmo dos acontecimentos às exigências técnicas da cobertura.
Se não, o que dizer do jornalismo de “notas plantadas” (“agrojornalismo”) em meio à CPI? Como, por exemplo, na coluna de Bela Megale no jornal O Globo intitulada “TV, documentos e discurso: a intensa rotina de Pazuello para se preparar para a CPI” (clique aqui) – breve nota que enaltece a intenção do general em “responder a todas as perguntas”, mesmo que o STF defira o habeas corpus.
Pra quê o show tem que continuar?
Não importa se a CPI é da Covid, da Pandemia ou do Genocídio. Vai ao gosto do público-alvo. O que importa é que o show tem que continuar. Para quê? Para cumprir o principal objetivo estratégico que a guerra semiótica criptografada definiu desde o primeiro desse governo: fazer passar, longe do escrutínio da opinião pública, a boiada da agenda neoliberal. Assim como os esforços políticos do governo para o gado passar o mais rápido possível dentro da janela aberta de oportunidades da pandemia. Agenda cuja implementação é a razão do cheque em branco dado pela elite ao “fusível-para-ser-queimado”, o capitão Jair Bolsonaro.
Que agenda emergencial é essa?
(a) Privatização do SUS: certamente o arrojado Nilson Klava não poderia fazer um esforço metalinguístico na reunião “secreta” (porque não interessou a grande mídia) do ministro da Saúde Queiroga no Conselho de Saúde Complementar (Consu), dia 27 de abril. Ao lado de Paulo Guedes, definiu estratégias de desmonte do SUS (já iniciado pelo “cientista” Mandetta) através da sua “integração” com a rede privada. Sob o álibi da eficiência no combate à pandemia.
Uma integração reversa, em que o SUS entraria como coadjuvante e as operadoras privadas como protagonista$...
(b) Reforma administrativa: sob o argumento terra-arrasada de que o Estado está quebrado e do “combate aos privilégios”, desprofissionalizar o funcionalismo público e o aparato profissional do Estado – demissões, terceirização e fim da estabilidade. Favorecendo indicações e “compadrios” e liberando mais dinheiro do orçamento público para o pagamento dos sagrados juros e serviços da dívida pública para a banca financeira – a mesma que patrocina a grande mídia a prestar unicamente atenção ao show do pseudo-evento da CPI.
(c) Reforma fiscal: pedra de toque do neoliberalismo made in Escola de Chicago de Milton Friedman: sob a aparência da simplificação e unificação de impostos em um único tributo, aumenta o imposto sobre consumo, ampliando a regressividade do sistema. Onerando ainda mais os mais pobres. A lógica é a mesma da época da ditadura militar (o único tipo de regime no qual as ideias de Friedman foram colocadas em prática): “que os ricos fiquem mais ricos para, que por sua vez, os pobres sejam menos pobres”, dizia o general Costa e Silva.
(d) Varrendo para debaixo do tapete o “Bolsolão”: o esforço em fazer passar a boiada da agenda neoliberal criou a necessidade de operar um orçamento paralelo de R$ 3 bilhões para comprar parlamentares, na forma de distribuição clandestina de emendas para seus redutos eleitorais.
Notícias sobre esse escândalo são convenientemente escondidas nos jornais, portais de notícias e na escalada dos telejornais. É a velha tática do morde-assopra da grande mídia com o cheque em braço passado a Bolsonaro: o jornal O Estado de São Paulo chegou até a fazer uma reportagem consistente sobre o assunto com detalhes do orçamento secreto – clique aqui. Para depois, o leitor precisar de lupa para ler a repercussão nos outros veículos de imprensa.
Estratégia de guerra criptografada que segue à risca a cartilha de Milton Friedman, colocada explicitamente no livro “Capitalism and Freedom”, de 1982. Aproveitar uma crise (no caso, a janela de oportunidades da pandemia, crise ampliada propositalmente pelo Governo) para poder passar a agenda econômica:
Somente uma crise – real ou PERCEBIDA [destaque meu] como real – produz mudança de fato. Quanto essa crise ocorre, as ações dependem de ideias que estão disponíveis no momento. Acredito que essa é a nossa função básica: desenvolver alternativas para as políticas existentes, manter essas alternativas prontas e disponíveis até que aquilo que antes parecia politicamente impossível se torna politicamente inevitável.
Nesse contexto, entende-se o principal propósito do pseudo-evento da CPI da Pandemia ou do Genocídio: requentando informações já conhecidas (que o filho Carlos Bolsonaro ou o alt-right Filipe Martins participam de reuniões da área da Saúde ou, então, que Bolsonaro deliberadamente adiou a compra de vacinas já era de conhecimento até do reino mineral desde o ano passado), desviar o foco com a espuma episódica de indignações canastríssimas de senadores diante das câmeras.
Como um gigantesco Efeito Heisenberg (sobre esse conceito clique aqui), assistimos apenas o efeito que a cobertura extensiva midiática provoca nas pessoas: vaidade combinada com oportunidade.
Será que Pazuello vai cuspir os feijões na próxima quarta-feira? Não percam cenas dos próximos capítulos!