Grande mídia exclama fazendo-se passar por inocente: “quem é essa gente?” A mídia progressista comemora: “um terremoto na abertura da CPI da pandemia!”. Em vídeo vazado, vemos um Paulo Guedes raiz falando em “vírus chinês” e reclamando que “todos querem viver 100 anos!”. E depois vem candidamente para as câmeras dizer: “não sabia que a reunião estava sendo transmitida...”. Esse governo se notabiliza por uma deliberada e metódica estratégia de “vazamentos”, desde a infame reunião ministerial de maio de 2020. É a guerra semiótica de informações criptografada, que agora entra na fase “apito de cachorro” com a proximidade das eleições de 2022: manter a fidelidade da sua base eleitoral fundamentalista que garanta o segundo turno para Bolsonaro. Para, depois, entrar em ação o expertise semiótico “alt-right” nas redes sociais.
Esse humilde blogueiro já escreveu bastante, aqui e ali, sobre o filme Mera Coincidência (Wag The Dog, 1997), com Dustin Hoffman e Robert De Niro. Filme cuja exibição e discussão deveriam ser obrigatórias em qualquer graduação de Jornalismo. Não tanto pelo tema da manipulação das notícias, mas pela abordagem de como pseudo-eventos deliberadamente forjados criam simulações de vazamentos para que jornalistas mordam a isca e repercutam a agenda que interessa ao vazador.
Apenas uma breve sinopse do filme para aqueles que ainda não o assistiram: o presidente dos EUA envolve-se num escândalo sexual na reta final do pleito que poderá dar a sua reeleição. Convoca um especialista em marketing de crise (Robert De Niro) que precisa reverter o escândalo a poucos dias do final da campanha: contrata um produtor de Hollywood (Dustin Hoffman) para criar uma guerra fictícia contra o suposto país promotor do terrorismo internacional, a Albânia.
O ponto alto do filme é a produção de um perfeito pseudo-evento em um estúdio: um suposto vídeo sobre a guerra no front da Albânia (em tons melodramáticos, mostrando uma pobre menina albanesa segurando um gatinho nos braços e fugindo dos maldosos terroristas estupradores), que será convenientemente “vazado” através de satélites, para que as redes de TV o apresentem no horário nobre como “breaking news”.
É curioso como o espírito investigativo da grande mídia (supostamente crítica e, a Globo, adversária de Bolsonaro) ainda não se perguntou por que há tantos “vazamentos” de fatos aparentemente comprometedores ao Governo. Desde aquela infame reunião ministerial em maio de 2020 cujo vídeo supostamente abalaria a República (mas apenas pariu um rato), este Governo é notabilizado por vazamentos de informações por todos os lados:
(a) notícias de que Bolsonaro está “irritado” com os vazamentos da sua equipe econômica (clique aqui);
(b) o áudio vazado do general Ramos (ministro da Casa Civil) em que ele diz que tomou vacina escondido para não tornar o ato num “fato político”;
(c) o áudio gravado e vazado pelo senador Jorge Kajuru (Cidadania-GO) em que Bolsonaro xinga e ameaça agredir o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) por conta da CPI da Pandemia;
(d) Em 2019, em conversa atribuída a Jair Bolsonaro, o presidente aparece supostamente solicitando apoio para retirar o deputado Delegado Waldir da liderança do PSL na Câmara. Após o vazamento, Jair Bolsonaro disse alguém o "grampeou" e que “foi um ato de desonestidade”. E, depois, outro áudio vazado, obtido pela Record TV, do Delegado Waldir afirmando que pretendia “implodir o presidente Jair Bolsonaro”.
A lista é imensa e ocuparia espaço precioso dessa postagem. E ainda poderíamos acrescentar outra lista de ataques de misteriosos grupos hackers que vazam telefones e outros dados de ministros e até de Bolsonaro, filhos, empresários e políticos bolsonaristas em redes sociais – clique aqui.
O "terremoto"
O último “vazamento”, diligentemente repercutido pelo jornalismo tanto corporativo como progressista, foi da reunião do Conselho de Saúde Suplementar, realizada nessa terça-feira (27) na qual Paulo Guedes declarou que “o chinês inventou o vírus” e que têm uma “vacina menos eficiente do que a desenvolvida por empresas americanas”. Entre outras afirmações “comprometedoras” quando, p. ex., reclamou do aumento de expectativa de vida: “Todos querem viver 100 anos! Não há capacidade de investimento para que o Estado consiga acompanhar”, afirmou, sugerindo que o envelhecimento populacional aumenta a demanda por serviços públicos de saúde.
Para os analistas da grande mídia, um “terremoto”: declarações supostamente comprometedoras no momento em que o Senado instala uma CPI para investigar as ações do Governo na pandemia.
Por que essa reunião vazou? A resposta de Paulo Guedes é de uma candura tão comovente que faria corar o coelhinho da Páscoa: disse que “não sabia” que a reunião estava sendo transmitida pelas plataformas do próprio Ministério da Saúde. Só depois dos arroubos, com direito a batidas irritadas na mesa, é que ele teria descoberto a impropriedade e pediu, encarecidamente, que “não fosse para o ar”...
Vamos combinar... Como assim, um ministro de Estado não sabe (ou não se preocupa) se informações estratégicas, em uma reunião de trabalho, estão sendo transmitidas ou gravadas?
Desde o primeiro dia de mandato de Bolsonaro, testemunhamos um governo de ocupação: militares tomando a máquina do Estado e os ministérios, ao lado da ocupação da pauta midiática com uma calculada e sofisticada guerra semiótica criptografada: falas dúbias ou insultantes que depois são desmentidas (“foi mal interpretado”, diz a “tecla SAP” de Bolsonaro, o vice Mourão; “usei imagens infelizes”, como desculpou-se Paulo Guedes ao atacar os chineses), “caneladas”, decisões e desmentidos, soltar “balões de ensaio” e voltar atrás e... “vazamentos”.
Guerra criptografada: show de pseudo-eventos e ilusões |
Desde 2019, as funções dessa guerra criptografada (ferramenta da caixa preta da guerra híbrida) evoluíram da seguinte maneira:
(a) Primeira fase: diferente das estratégias anteriores nas quais bombas semióticas eram detonadas para enfraquecer o oponente, ao contrário, essa deliberada criação de dissonâncias criaria uma simulação de que a unidade do atual governo estaria sempre a ponto de desmoronar. Para quê? Para alimentar o wishful thinking das esquerdas nas soluções judicializantes e parlamentares. Manter as oposições confinadas nos limites institucionais de um Estado ocupado pelas forças armadas, desde o golpe militar que não foi televisionado – clique aqui.
(b) Segunda Fase: tal qual um mágico prestidigitador cujo gestual de uma das mãos distrai e esconde a outra que tira a carta do bolso do colete, o interminável show de dissonâncias cria o desvio de atenção necessário. Desviar a atenção da passagem dos bois: agenda neoliberal de privatizações e desregulamentações, entregar a saúde para a iniciativa privada, aparelhar ministérios e autarquias com militares etc.
(c) Terceira Fase: e agora, na proximidade das eleições de 2022, assumir a função inédita do apito de cachorro para manter intacta a base eleitoral de Bolsonaro que poderá levá-lo para um hipotético segundo turno.
Apito de cachorro
Em política, apito de cachorro (dog whistle) significa uma sinalização cuja mensagem codificada é destinada a um sub-grupo alvo, passando despercebida para a população em geral. Prática disseminada entre grupos da direita alternativa (alt-right) é uma estratégia semiótica de apropriação de palavras, símbolos, expressões para ressignificá-los num contexto restrito para estabelecer reconhecimento. Forma direta para arregimentação de tropa, de um alt-right para outro, como forma de sinalização: “veja, nós estamos aqui!”.
"Apitos de cachorro" para manter o núcleo duro bolsomínio |
Um exemplo recente foi quando o ex-chanceler Ernesto Araújo foi ao Senado Federal prestar conta de seus desfeitos e levou, à tiracolo, o assessor de assuntos internacionais de Bolsonaro, Filipe Martins. A certa altura, quando aparecia atrás do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), fez um gesto que remetia ao símbolo “WP” numa referência ao “White Power” do supremacismo branco.
Será que Paulo Guedes não sabia mesmo que a reunião estava sendo transmitida ao vivo pelas redes sociais? Ou será que foi mais um deliberado “vazamento” nessa estratégia de guerrilha semiótica de informações dissonantes: como assim? Guedes volta ao tropo do “vírus chinês” em plena largada da CPI da Pandemia?
Um dos braços armados da agenda neoliberal de Guedes na grande mídia, a colunista Miriam Leitão exclamou no Twitter: “Que gente é essa???” Os progressistas comemoram a suposta mea culpa da jornalista: a repórter global finalmente teria descoberto que o ministro é da mesma cepa do restante do Governo!
Com isso, retornamos à lição de guerra semiótica do filme Mera Coincidência: como ocupar a pauta midiática com um pseudo-evento plantado ou “vazado”.
Bolsonaro e seus sequazes sabem que é fundamental manter para as eleições sua base eleitoral entre 25 e 30% - o núcleo duro de fundamentalistas para os quais não importam as evidências empíricas: para eles, Bolsonaro conduz seu governo com pulso firme apesar das conspirações da “Globo lixo” e das ONGs ambientalistas manipuladas por globalistas maçônicos que mantêm uma rede oculta de pedofilia satânica... e assim por diante...
Apesar da grande mídia blindar Paulo Guedes do restante do Governo com uma aura da tecnicidade da econometria neoliberal (ele faria parte do “núcleo técnico”, assim como a Anvisa, ocultando o aparelhamento operado pelo golpe militar híbrido que já aconteceu e ninguém viu), ele é tão fundamentalista quanto o resto. Mas um fundamentalismo de outra natureza: anarcocapitalista, neomalthusiano e eugenista.
A mente de Guedes funciona dentro de uma política de terra-arrasada: o Estado TEM QUE SER destruído para que se promova a anarquia autogerida pela mão invisível do mercado. Anarquia orientada pelos princípios do darwinismo social e neomalthusianismo que evite as pessoas de viverem tanto e deixe a sociedade finalmente ser governada pelos mais aptos.
Anarcocapitalismo combinado com Sinarquia: filosofia política fundamentada no Tradicionalismo de filósofos como o italiano Julius Évola (o “Olavo de Carvalho” de Steve Bannon): governo total de uma elite supranacional, uma “Civilização Solar” europeia organizada em castas – sobre isso clique aqui.
Modus operandi da operação semiótica da direita alternativa, depois de “vazada” para a grande mídia, Paulo Guedes vem às câmeras e diz singelamente que usou apenas “uma imagem infeliz”, “equipe econômica está unida” e também de que “não sabia de que tudo era transmitido ao vivo”...
A verdade está em outra cena: Guedes soou uma variante de apito de cachorro: através de um “vazamento” que, na verdade, foi uma mensagem codificada para as bases bolsomínias – “nós continuamos fiéis aos princípios pelos quais vocês nos colocaram aqui!”.
Essa é a fase “apito de cachorro” da guerra criptografada: manter elevada o moral da tropa bolsomínia para garantir um segundo turno em 2022. Para, depois, entrar em ação o conhecido expertise alt-right nas redes sociais.