terça-feira, janeiro 12, 2021

'Palm Springs': o loop temporal é déjà-vu do nosso isolamento social na pandemia

Para além dos aspectos econômicos, os reflexos da pandemia e isolamento social no cinema e audiovisual também se apresentam nos picos temáticos dos roteiros: além da “covid exploitation” e do tema da “viagem no tempo”, há uma alta do subgênero “time loop” – personagens tornam-se prisioneiros de um período de tempo que se repete. A produção indie “Palm Springs” (2020) é mais um loop temporal entre as produções desse período: um protagonista preso desde sempre no dia de uma festa de casamento. Ele mal se recorda da vida anterior e está adaptado ao seu destino vivendo todos os prazeres que uma vida amoral e hedonista pode proporcionar. Até uma das convidadas cair sem querer em seu loop, quebrando a sua confortável rotina. Por que tantos loops no cinema e audiovisual em 2020? Será um “déjà-vu” dos espectadores na pandemia? Ou seria também um sintoma do chamado “presente extenso”, consequência das nossas vidas agora hipermediadas por dispositivos tecnológicos?

Time Loop ou Loop Temporal é uma narrativa ficcional na qual os personagens são prisioneiros de um período de tempo que se repete, vivendo na esperança de romper o ciclo da repetição. Não podemos confundir o loop de tempo com o loop causal, onde o grande exemplo está no clássico Em Algum Lugar do Passado (1980) – imutáveis e autocriados, como o caso do paradoxo do relógio que Richard devolve para Elise em 1912 que, por sua vez, devolverá para Richard 70 anos depois... onde foi fabricado o relógio? – clique aqui.

Ao contrário, no loop temporal a causalidade é zerada com os personagens retendo a memória do loop anterior – potencialmente, a esperança de que os protagonistas consigam sair do ciclo fechado.

Na literatura, o primeiro exemplo de loop temporal está no conto de Malcolm Jameson, “Doubled and Reboulded”, publicado na revista Unknown em 1941. No cinema, a primeira produção a explorar essa possibilidade narrativa veio muito tempo depois, em 1991: o curta 12:01 – em 1993, transformado em um longa metragem.

Mas o clássico estrelado por Bill Murray, O Feitiço do Tempo (Groundhog Day), acabou levando a fama de ser a produção inaugural do filão cinematográfico sobre loops temporais.

Desde então, todo ano é lançado pelo menos um tipo de filme dentro desse subgênero da viagem no tempo – que, dentro do espírito pós-moderno, rompe com a visão clássica da viagem no tempo na qual até podemos nos deslocar para passado ou futuro, mas sem poder alterar a cadeia de eventos. Diferente do pós-modernismo o tempo transforma-se em um hipertexto onde cada opção cria um futuro ou um passado alternativo, configurando um complexo tempo/espaço com uma série de universos paralelos que, potencialmente, poderiam se tangenciar ou interagirem-se.

Mas nesse quase um ano de pandemia global testemunhamos um pico de longas e séries que envolvem loops de tempo: o suspense Entre Realidades (Horse Girl, 2020), a comédia romântica Um Amor, Mil Casamentos (Love Wedding Repeat, 2020), a série alemã Dark (o verdadeiro hype da pandemia que também aborda o tema) e a produção indie Palm Springs (2020), estreia no cinema do diretor Max Barbakow.



Assim como todos os filmes sobre loop temporais, Palm Springs trata de um protagonista que é colocado numa situação em que é forçado a rever seus comportamentos amorais ou antiéticos para terminar como uma pessoa melhor do que era antes. Em Feitiço do Tempo, Bill Murray era um egoísta. 

Em Palm Springs temos um anti-herói hedonista e amoral. A grande novidade aqui é que o filme abre com um protagonista bem adaptado ao time loop, vivendo uma espécie de 24 horas de festa – o dia de uma festa de casamento para o qual foi convidado, e nunca termina. Então, para quê mudar?



O tempo como um hipertexto (seja como viagem ou loop) é um sintoma do espírito de época pós-moderna. Porém, temos algo novo: um aumento de produções audiovisuais sobre loop temporais nesse período da pandemia – ao lado de novos subgêneros como “covid exploitation”.

Será que, assim como reality shows como Big Brother replicam a situação das pessoas em isolamento social (vemos competidores aprisionados em uma casa, assim como estão os próprios telespectadores), também a situação de loop temporal replicaria a nossa condição prisioneira atual? – na quarentena todos os dias parecem ser iguais.

Simples caso de identificação? Ou algo além? A pandemia e a situação de isolamento social (numa situação de hipermediação com o mundo externo por meio das telas dos dispositivos móveis e computadores) pode estar radicalizando a nossa percepção temporal que genericamente podemos definir como “pós-moderna”. Mas, como uma natureza bem particular: a sensação de vivermos num “presente extenso”.

O Filme

Uma estreia de um diretor no cinema que possa contar com atores como JK Simmons (Whiplash) e Cristin Milioti (impagável em 2020 Nunca Mais) é a certeza de que Palm Springs não é um filme independente qualquer. Max Barbakow faz uma espécie de truque de prestidigitação: a sequência de abertura é enganosa. Quando vemos um monte de pessoas se reunindo em Palm Springs para um casamento, com toda ambientação brega e tipos caricatos, parece que veremos um filme sobre famílias excêntricas numa festa em um lugar remoto onde todas as loucuras podem acontecer.

Mas Palm Springs é cheio de surpresas. Vemos o protagonista Nyles (Andy Samberg) e sua namorada Misty (Meredith Hagner) despertando pela manhã no quarto da grande casa onde ocorrerá a cerimônia. Ele e Misty tentam fazer sexo, mas Nyles parece entediado demais. Desde o início sentimos que há algo errado.

Nyles vai para o casamento vestindo uma camisa havaiana e entorna latas de cerveja durante a cerimônia. Ele parece aquele típico rapaz que causa vergonha alheia por causa do efeito do álcool.



Sarah (Cristin Milioti) é a irmã da noiva e uma dama de honra sombria: ela sabe que a família a considera uma “ovelha negra” (é irresponsável, bebe muito e transa demais...) e que não dá para competir com o altruísmo da sua irmã mais nova – tão altruísta que doou a medula óssea para um amigo antes do casamento.

Nyles dá em cima de Sarah e rumam para o deserto em busca de sexo casual. E então...Sarah vai descobrir da pior forma possível que Nyles é prisioneiro de um loop temporal – e ela acaba involuntariamente também caindo nessa cilada do tempo. 

Passa a ser a nova companheira de Nyles na eternidade. Outro “companheiro” involuntário é Roy (JK Simmons). Revoltado, torna-se obcecado pela ideia de matá-lo como vingança. 

Nyles está há tanto tempo no loop que nem mais consegue lembrar da sua vida anterior. As regras do loop vão sendo reveladas lentamente durante a narrativa. Ele tentou matar-se várias vezes. Sem sorte, decidiu assumir uma orientação hedonista e amoral: já transou com todos da festa – até com um dos padrinhos, para sair do tédio da heterossexualidade. Ele já alterou de todas as formas possíveis o desenrolar da festa. Mas, mesmo assim, acorda todos os dias naquela manhã com Misty.

Sarah entra no loop de Nyles no momento em que ele entrou numa zona hedonista de despreocupação – a única regra a ser evitada é morrer lentamente numa UTI: é muito doloroso...

Ele agora quer apenas “causar” no casamento, criando as cenas mais intrincadas e ultrajantes para se divertir com a reação de todos. Mas Sarah não pensa assim: "Não quero que amanhã seja hoje. Quero que amanhã seja amanhã."

A relação de Nyles e Sarah é vivida aos trancos e barrancos O que começou como um encontro casual para escapar de suas vidas miseráveis, é forçado a um relacionamento às vezes próximo, outras vezes como adversários. Os sentimentos borbulham, os dois estão cheios de melancolia e ansiedade. Vale a pena nos conhecermos nessa estranha realidade? Será que o amor que cresce entre eles existiria no mundo real? Ambos são inteligentes, falhos, mentem para si mesmos e têm medo de sentimentos intensos.



O presente extenso

O hedonismo de Nyles lembra muito um conceito cunhado pelo professor de literatura da Universidade de Stanford, Hans Gumbrecht: o “presente extenso” - um sintoma dos novos tempos marcados por uma crise do chamado “tempo histórico” e o surgimento de um presente que se expandiu, uma forma alterada de tempo que substituiu o tempo histórico, no qual o presente foi tão inflacionado que começa a absorver todo o passado segundo os seus próprios parâmetros.

O que era o tempo histórico? Para Gumbrecht, foi uma força cultural que se desenvolveu passo a passo desde os séculos da Renascença europeia que deu um perfil à nossa experiência de mundo durante muito tempo, e que agora chegaria ao seu fim. Esse tempo seria marcado por uma assimetria entre passado e presente da seguinte maneira: enquanto acreditávamos escolher o nosso futuro a partir de um horizonte de futuros possíveis, apostávamos na possibilidade de adaptarmos o nosso presente pelas experiências extraídas do passado. Essas lições se tornavam pontos de orientação para a escolha de um futuro ideal.



Agora, tudo indica que esse presente de transição se expandiu a tal ponto que passou a ver o passado a sua imagem e semelhança. O passado passa a ficar simétrico ao presente, sem conseguirmos tirar qualquer lição dele: por isso, o futuro torna-se incerto e fechado – leia GUMBRECHT, Hans. Nosso Amplo Presente – O tempo e a cultura contemporânea, UNESP, 2015.

A cultura hipermediada que a condição do isolamento social nos trouxe (do home office às lives de entretenimento) parece ter radicalizado esse diagnóstico de Gumbrecht: a lógica da Internet e das redes sociais tornou-se inseparável do presente – mesmo a percepção do passado torna-se mediado pelo “tempo real” que sempre o presente.

Quanto ao futuro que acreditávamos que construiríamos através das lições do passado, agora é definido pela crise (ambiental, econômica etc.). E o isolamento social no presente parece ser a única forma de nos proteger de um futuro sombrio e fechado.

Nyles somos nós, vivendo no loop temporal de um presente interminável. 


 

Ficha Técnica 

Título: Palm Spring

Diretor: Max Barbakow

Roteiro: Max Barbakow

Elenco: Andy Samberg, Cristin Milioti, JK Simmons, Meredith Hagner, Peter Galagher

Produção: Limelight, Sun Entertainment Culture

Distribuição:  Hulu

Ano: 2020

País: EUA

 

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