Este século tem mostrado tentativas de renovar o gênero Western, com caubóis sensíveis e mulheres determinadas. “Cowboys & Aliens” (2011) vai mais além, chegando ao excêntrico: em 1873 encontramos caubóis raivosos e embrutecidos, como nos velhos tempos, em busca de ouro. Mas encontramos alienígenas, também em busca de ouro: no planeta deles o ouro é tão escasso quanto aqui. Não, não é uma sátira e, muito menos, uma comédia que pretenda desconstruir o gênero como Mel Brooks fez em “Banzé no Oeste” (1974). “Cowboys & Aliens” renova o gênero através de elementos da mitologia gnóstica (o Demiurgo, o Divino Feminino, o Salvador) mostrando como é possível uma narrativa que fuja da clássica Jornada do Herói, estrutura mítica popularizada pelo “Paradigma Disney” da Pixar. “Cowboys & Aliens" nos apresenta a alternativa da jornada do herói gnóstico numa inesperada fusão de gêneros.
O gênero Western plasmou o espírito americano: o mito da fronteira ou do Oeste como uma terra de ninguém cujas riquezas devem ser apropriadas sem cerimônias, Ocasionalmente, podem aparecer índios ou mexicanos insatisfeitos, mas serão ou massacrados ou colonizados.
E o herói que faz isso é o caubói, um ser sisudo, impenetrável, embrutecido, como se a sua roupa e as armas na cintura fossem uma couraça. Um herói de um gênero que se desgastou, na medida em que matar índios e mexicanos deixou de ser politicamente correto – embora o país continue matando e colonizando, agora iraquianos, afegãos e, de forma híbrida, os latino-americanos.
O século XXI tenta remodelar o gênero com caubóis mais sensíveis e mulheres duronas, que não se contentam mais com os clichês que o gênero destinava a elas: ou prostitutas, ou indefesas que precisam serem salvas pelo caubói embrutecido, mas capaz de amar... pelo menos do seu jeito. Filmes como O Segredo de Brokeback Mountain (2005), Damsel (2018) ou The Sisters Brothers (2018) são alguns exemplos dessas tentativas de remodelar um gênero tão velho quanto o próprio cinema.
Mas Cowboys & Aliens (2011) vai mais além, chegando ao excêntrico: em 1873 encontramos caubóis raivosos e embrutecidos, como nos velhos tempos, em busca de ouro. Mas encontramos alienígenas, também em busca de ouro: no planeta deles o ouro é tão escasso quanto aqui.
Ao lado de caubóis e alienígenas que mais parecem o cruzamento de gorilas com lagosta, encontramos apaches, uma nave espacial do tamanho de um prédio encravado no meio de um cânion, um pregador, um barman chamado Doc, ladrões de diligências, duas mulheres sensuais (uma não é desse planeta), um bracelete high tech mortal, uma criança corajosa com uma luneta, um cão corajoso que acompanha os mocinhos por quilômetros, uma fazendeiro tirânico com um filho que se diverte dando tiros aleatórios nas pessoas, uma droga alucinógena indígena que cura a amnésia do herói, e assim por diante.
Não, não é uma sátira e, muito menos, uma comédia que pretenda desconstruir o gênero como Mel Brooks fez em Banzé no Oeste (Blazing Saddles, 1974). Ou até mesmo presente na série clássica de TV James West (The Wild Wild West, 1965) onde já se apresentavam fusões entre sci-fi e western.
Em Cowboys & Aliens a humanidade está em perigo, principalmente contra aliens com alta tecnologia em pleno século XIX. E a esperança está em caubóis rudes do Velho Oeste.
Principalmente porque a narrativa está orientada pela mitologia gnóstica – o filme é baseado na HQ homônima de Scott Mitchell Rosenberg. Os mitos gnósticos do Demiurgo, do Divino Feminino e do Salvador.
Cowboys & Aliens é ambicioso e bem feito, com Daniel Craig e Harrison Ford parecendo que nasceram para fazer seus papéis. Mas a curiosidade desse filme é como a mitologia gnóstica em Hollywood se tornou tão capilarizada nas produções mainstream (ironicamente, desde outro western renovado: Dead Man, de Jim Jarmusch, em 1995) – chegando até mesmo em narrativas que tentam renovar um gênero tão tradicional no cinema.
O Filme
Em si mesmo, o gênero western criou uma mitologia moderna – a Fronteira, o Oeste e o Caubói como um sistema mitológico próprio. Em Cowboys & Aliens podemos encontrar a maioria dos cânones do gênero: o forasteiro que arruma uma briga no saloon, o barman covarde com crises de autoestima diante da sua esposa etc.
Mas também uma surpreendente combinação da mitologia gnóstica com o western.
Começamos acompanhando Jake Lonergan (Daniel Craig), recuperando a consciência no meio do deserto sob o sol. Ela está em estado de amnésia, sem cavalo, e ao seu lado a foto de uma mulher na areia. E no seu braço esquerdo um curioso bracelete sugerindo alguma tecnologia extraterrestre. Mas Jake não tem a menor ideia de como aquilo parou no seu braço.
De repente se vê cercado por caçadores de recompensas... porém, mexeram com um homem silencioso errado.
Jake chega a uma cidade próxima que é uma verdadeira coleção de personagens familiares ao gênero: encontra um pregador filosófico, um dono de bar ingênuo Doc (Sam Rockwell), um xerife intrépido e incorruptível chamado John Taggart (Keith Carradine), e o filho mimado aprendiz de tirano chamado Percy (Paul Dano) de um fazendeiro rico, autoritário e ex-coronel chamado Woodrow Dolarhyde (Harrison Ford).
Logo, todos os conflitos entre Jake, John e Woodrow serão suplantados pela chegada de máquina voadoras sobrevoando a cidade, disparando raios mortais e abduzindo pessoas com cabos e ganchos, lembrando o propósito dos tripods em Guerra dos Mundos.
Alienígenas hediondos que lembra o design dos aliens de HR Giger pingando gosma de todos os orifícios.
O mote inicial da narrativa fica claro: em um Oeste partido por rixas, guerras movidas pelo ódio e ganância, as divisões terão que ser superadas diante de um inimigo de outro mundo. Por isso, será formada uma coalizão de colonos, bandidos e apaches para enfrentar os extraterrestres. A humanidade terá que superar suas diferenças para evitar a sua própria extinção.
Mas como enfrentar naves, raios e aliens predadores com cavalos, carroças e armas de fogo? Aqui começa a se esgueirar a mitologia gnóstica: as esperanças são Jack, o herói desmemoriado que não entende o propósito daquele estranho bracelete em seu braço (o Salvador) e uma enigmática mulher (Ella – Olivia Wilde) que tenta resgatar a memória perdida de Jack (o Sagrado Feminino) – por algum motivo, ela sabe que trazer à tona a memória perdida será decisivo nessa batalha entre mundos.
Do herói do monomito ao herói gnóstico
Cowboys & Aliens mostra como é possível outras narrativas no cinema, muito além da clássica Jornada do Herói de Vogler e Campbell – o “monomito”. Jack é o herói que surge sem saber seu propósito e missão, ao contrário do herói clássico – este recebe o chamado através de algum avatar, resiste, até aceitar a missão através de algum conhecimento transmitido por um mestre ou forma de conhecimento livresca, mística ou científica.
Ao contrário, tudo está na cabeça de Jack, esquecida pelos mecanismos de defesa psíquicos pós-trumáticos – ele e sua esposa também foram abduzidos pelos aliens, e conseguiu de alguma forma escapar carregando aquele bracelete – poderosa arma que aos poucos (tentativa e erro) vai descobrindo como manipulá-la.
A mitologia do Demiurgo entra no elemento comum entre humanos e aliens: a ambição pelo ouro. Os aliens sequestram humanos para sugar tudo que tenha ouro (relógios, alianças etc.) para, depois, divertirem-se dissecando os corpos das vítimas.
Ouro, o vetor de conflitos tanto entre os humanos como entre mundos. Assim como na mitologia gnóstica o Demiurgo necessita da Luz espiritual humana para por em funcionamento a sua própria criação.
Jack é o herói gnóstico: ele não necessita de um Avatar ou de algum Mestre através do qual acesse algum conhecimento hermético. Ao contrário, tudo já está dentro dele. E o Sagrado Feminino (Ella) será apenas o vetor para resgatar esse conhecimento perdido. E também, uma droga alucinógena xamânica ofereci pelos Apaches que irá quebrar as resistências pós-traumáticas do ego de Jack, para reviver a cena esquecida – e resgatar o conhecimento necessário para a missão.
Portanto, Cowboys & Aliens revela um dos motivos que fizeram a mitologia gnóstica tornar-se atraente ao mainstream da indústria cinematográfica: oferecer a produtores e roteiristas alternativas à Jornada do Herói, arquétipo presente desde à narrativa bíblica da Paixão de Cristo.
Porém, desde a descoberta dos Evangelhos Apócrifos de Nag Hammadi, descobriu-se que essa narrativa bíblica (revivida, p.ex., a cada animação dos estúdios da Pixar) não é única (e não verdadeira): Cristo não foi o filho de Deus que veio nos salvar do pecado. Na verdade, veio nos salvar do próprio esquecimento imposto por Deus.
Ficha Técnica |
Título: Cowboys & Aliens |
Diretor: Jon Favreau |
Roteiro: Roberto Orci e Alex Kurtzman baseado em HQ homônima de Scott Mitchell Rosenberg |
Elenco: Daniel Craig, Harrison Ford, Sam Rockwell, Keith Carradine, Olívia Wilde, Paul Dano |
Produção: Universal Pictures, Dreamworks Pictures |
Distribuição: United International Pictures |
Ano: 2011 |
País: EUA |