terça-feira, dezembro 15, 2020

Série 'Travelers': por que precisamos da viagem no tempo?


A partir de 2016, o cinema e audiovisual (principalmente séries) vive um surto de narrativas sobre a viagem no tempo. Principalmente envolvendo a mitologia da segunda chance: a ciência relativística e quântica parece ter trazido mais angústias existenciais do que respostas. E as sombrias previsões políticas, econômicos e climáticas, só alimentam ainda mais essa angústia. A série original Netflix “Travelers” (2016-18) é mais uma estória sobre “segunda chance”, dessa vez para a história humana: através de “hospedeiros”, viajantes do futuro chegam no século XXI para desfazerem uma cadeia de eventos que levará o mundo a algum tipo de catástrofe climática e econômica futura que transformará o planeta num mundo árido e hostil. Depois dos deuses, messias e discos voadores vindos dos céus, agora a esperança vem através de viajantes do Tempo. 

As pessoas sempre olharam para o céu para encontrar algum tipo de salvação, mensagens ou premonições. De qualquer forma, desde tempos imemoriais a humanidade busca no céu soluções ou algum tipo de propósito que explique o porquê do caos no qual nossas vidas estão imersas.

Deuses e o significado dos movimentos dos astros foram deixados para trás pelo ceticismo provocados pela ciência e tecnologia. Segundo o psicanalista Carl Jung, a onda de avistamentos de discos voadores a partir do final da Segunda Guerra Mundial pode ser interpretada como uma secularização desse impulso atávico – os novos sinais dos céus, dessa vez como máquinas de tecnologia mais avançada alienígena.

O cinema acompanhou por décadas essa secularização: de alienígenas pacifistas (O Dia em que a Terra Parou, 1951) a aliens que simplesmente querem nos destruir (Independence Day, 1996), refletindo o medo fóbico pelo outro – comunistas, estrangeiros etc.

Mas parece que esse imaginário está mudando: estamos deixando de olhar os céus para irmos em busca do Tempo. Parece não haver limite o número de séries e filmes sobre viagem no tempo nessa última década. Só na plataforma de streaming Netflix, encontramos pelo menos 30 filmes ou séries sobre o tema.

A tal ponto que os produtores da série espanhola O Ministério do Tempo (clique aqui) tentam processar os criadores da série americana Timeless acusando-os de roubarem o seu formato. A defesa da Sony foi a seguinte: “A viagem no tempo é um gênero bem estabelecido em todas as formas de mídia... um enredo genérico que sempre envolve personagens cujas viagens no tempo alteram o curso da história, muitas vezes evitando que coisas ruins aconteçam” – clique aquiOu seja, um conceito já tão genérico que ninguém pode ser acusado de roubar a ideia de ninguém...

As narrativas sobre a moderna viagem no tempo têm 120 anos, de o livro A Máquina do Tempo de HG Wells. Antes disso, temos, por exemplo, na mitologia hindu o Mahabharata que descreve um rei que foi ao encontro de Brahma para depois, ao retornar, descobrir que na Terra muitas era haviam passado na sua ausência.



Ou a obra de Samuel Maddens, "Memoirs of The Twentieth Century" (1733), no qual diplomatas no futuro enviam cartas para os colegas do século XVIII com a ajuda de solícitos anjos da guarda.

Não são propriamente viagens no tempo, no sentido relativístico ou quântico que acompanhamos a partir do século XX. Porém, o que vivemos nos últimos anos é um surto de produções audiovisuais sobre viagens no tempo. Por quê?

Esse século não começou nada bem com os atentados de 11 de setembro nos EUA, jogando o mundo na guerra ao terror, passando pela insegurança econômica pós crash de 2008 para depois jogar o planeta na pandemia atual. Brasil e o mundo apresentam um quadro futuro caótico. Num cenário como esse, ganha sentido narrativas de viagem no tempo – principalmente, através da mitologia da segunda chance: a possibilidade aberta aos protagonistas de corrigir erros no passado ou no presente, avançando ou retornando no tempo.

A série canadense Travelers (2016-2018) é mais um exemplo do encontro do mito da segunda chance e viagem no tempo com as ansiedades das catástrofes climáticas, políticas e tecnológicas. Isso num ano que marcou o início desse surto dessa produção temática: James Franco voltando no tempo para tentar impedir o assassinato de Kennedy (11.22.63), a série Timeless da NBC, Frequency (onde a heroína se comunica com seu pai morto através do tempo), Outlander do canal Starz ou a série 12 Monkeys do Syfy – “Better Living Through Time Travel”, dizia o slogan de um canal de TV fechada na época.



Em Travelers, viajantes do futuro chegam no século XXI para desfazerem uma cadeia de eventos que levará o mundo a algum tipo de catástrofe climática e econômica futura – no futuro parece que todos viverão em abrigos num planeta árido e hostil.

A Série

1. A Missão vem primeiro

2. Deixe o futuro no passado

3. Não tire uma vida. Não salve uma vida. Não interfira. A não ser que seja parte da missão.

4. Não se reproduza

5.  Na ausência de orientação, mantenha o hospedeiro vivo

6. Não se comunique com outras equipes ou na Deep Web, exceto em emergências extremas ou quando ordenado.

Esses são os seis protocolos que orientam as equipes de “Viajantes”, agentes do futuro que, através de “fendas quânticas”, são inseridos nas mentes dos “hospedeiros” no momento das suas mortes. 

São agentes orientados por uma poderosa inteligência artificial chamada “O Diretor” que dirige todos os esforços para a realização do “Grande Plano”: alterar eventos cruciais no passado que foram os responsáveis pela cadeia de eventos que ajudaram a criar um futuro distópico para a humanidade.

Eric McCormack interpreta o agente do FBI Grant MacClaren. Seu corpo hospeda a consciência do Viajante 3468, um viajante do futuro enviado de volta ao século XXI para cumprir missões ordenadas pelo Diretor. Ele não está sozinho. No episódio de abertura, também conhecemos os Viajantes 3569, 3465, 3326 e 0115, todos com suas próprias habilidades específicas. 

Formam uma das inúmeras equipes que aportam no século XXI, todas compostas pelo líder, um médico, um engenheiro, um tático-estrategista e o último membro é sempre um historiador, munido de todo o conhecimento dos eventos que ocorrem naquela linha do tempo específica.  



Em última análise, cada viajante tem que assumir sua identidade do hospedeiro: MacClaren luta para manter sua vida familiar junto com sua esposa; Carly (Nesta Cooper), a viajante 3465, de repente se vê como mãe de um bebê com um marido abusivo e alcoólatra que também é policial. Os viajantes 3326 e 0115, Philip (Reilly Dolman) e Trevor (Jared Abrahamson), vivem o conflito de serem mentes mais velhas habitando corpos de homens mais jovens, enquanto Marcy (MacKenzie Porter) tenta lidar com um hospedeiro que padece de insuficiências neurológicas. Em particular, Philip está sobrecarregado com o problema adicional de estar no corpo de um viciado em heroína.

Felizmente, esses corpos foram escolhidos especificamente porque iriam morrer de qualquer maneira. Essa premissa central, de pessoas habitando os corpos de outras pessoas cujo tempo já se esgotou, é enfatizada logo no primeiro episódio, quando vemos em detalhes gráficos como cada um dos corpos hospedeiros morre. Acompanhado por um dispositivo gráfico contando a hora da morte e depois contando progressivamente o tempo a partir do momento em que o corpo do hospedeiro é assumido, o processo de troca de mente real é particularmente dramático e bem executado. 

Século XXI e Big Data

Mas por que o século XXI? Por que então eles não viajam para momentos ainda mais dramáticos como os atentados de 2001 nos EUA ou impedem a ascensão de Hitler na Alemanha? Esse é o ponto irônico da série que fala muito das relações atuais entre tecnologia, controle e engenharia social: porque é a partir do século XXI que temos todo o planeta monitorado pelo sistema GPS e nossas informações pessoais estocadas como Big Data nas mídias sociais – os hospedeiros são escolhidos a partir desses dados. Computadores com “chassis quânticos” no futuro seguem as linhas do tempo a partir desses dados, essenciais para a seleção dos hospedeiros-chave. 



As missões são sempre fragmentadas, pontuais – somente o Diretor tem o conhecimento total do “Master Plan”. Por isso, parte do tempo da série os viajantes têm que aprender a lidar com o cotidiano das novas identidades: casamento, namoros, relações problemáticas com os pais etc. E, claro, esse dia-a-dia irá necessariamente tensionar a obediência aos seis protocolos que orientam as missões – esse é um dos pontos atraentes da série.

Mas as coisas ainda podem piorar: também em algum momento no futuro surgiu uma “facção terrorista” que não concorda que vidas humanas sejam manipuladas por uma gigantesca Inteligência Artificial – o “Diretor”. Enquanto hackers tentam sabotar os algoritmos do Diretor, terroristas vão para o século XXI para caçar os viajantes.

Travelers reflete o atual momento cultural do boom da viagem no tempo no cinema e audiovisual. Mas não apenas como desejo escapista de fugir para épocas mais simples ou de resolver problemas intratáveis da atualidade. Travelers joga com a mitologia contemporânea da “Segunda Chance”: tanto o impacto cultural relativismo tempo/espaço trazido pela Física teórica, quanto pela ascensão da mitologia gnóstica na indústria do entretenimento (o real como ilusão ou constructo), trouxeram esse, por assim dizer, “futuro do passado” na consciência pós-moderna: e “se” tivesse dado certo?... e “se” eu não tivesse feito aquilo?

Esse relativismo tempo/espaço trouxe mais angústias existenciais do que respostas. E o recrudescimento dos cenários políticos e econômicos, só alimenta ainda mais essa angústia.

Computadores quânticos e os Muitos Mundos

Além disso, há algo também instigante em Travelers: a relação entre o futuro, mecânica quântica e Big Data.

Sabemos que a ascensão do mercado financeiro global e da inteligência artificial de base algorítmica que estrutura a Internet criam uma verdadeira metafísica. Por exemplo, se no passado a economia era uma questão de exploração do espaço (escravidão, renda da terra no Feudalismo, guerras colonialistas, imperialismo etc.), hoje o sistema financeiro explora o tempo



Tantos os juros como a velocidades das decisões de compra e venda é uma questão de tempo: juros tem a ver com a relação risco/tempo e atualmente grande parte das negociações no mercado financeiro estão nas mãos de sistemas de algoritmos de alta frequência - (Negociações de Alta Frequência – NAF) emitem automaticamente ordens de compras e vendas de ações em frações de segundos. Exploram as pequenas oscilações de um ou vários ativos, às vezes em milissegundos

A microinformática e da nanotecnologia surgem na hora certa como ferramentas para dominar a complexidade das interconexões simultâneas, o cálculo probabilístico das transações financeiras, da equalização das caóticas tendências nas jogadas em bolsas de valores e mineração do Big Data. 

Poderia a busca incessante pelo domínio e exploração do tempo nas velozes e precisas operações do mercado financeiro global e na engenharia social pela manipulação em tempo real do Big Data potencialmente criar efeito colaterais ou acidentes? Como por exemplo, a abertura do tecido temporal pelo contato com outros mundos da mecânica quântica? – seguindo a interpretação dos “Muitos Mundos” na Física, o estranho comportamento das micropartículas seria os interstícios das diversas linhas do tempo em choque.

A proximidade da computação quântica que levará a tecnologia para além do bit (a binaridade do código 0/1) através de sobreposições e entrelaçamentos no estranho mundo subatômico, poderia abrir a “caixa do gato de Schrödinger”, liberando mais surpresas do que a caixa de Pandora. Esse é o núcleo inventivo do argumento da série Traveler.


 

Ficha Técnica 

Título: Traveler

Criador: Brad Wright

Roteiro: Brad Wright

Elenco: Eric McCormack, MacKenzie Porter, Nesta Cooper, Jared Abrahamson, Reily Doman

Produção: Netflix, Peacock Alley Entertainment

Distribuição:  Netflix

Ano: 2016-18

País: Canadá

 

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