“O Capital” de Karl Marx foi uma obra incompleta. Depois dos “Manuscrito Econômicos e Filosóficos” da juventude, Marx dedicou-se o resto da sua vida em escrever uma crítica da economia política. E “O Capital” foi sua obra máxima, porém inconclusa devido à sua morte – a parte tanto dedicada às classes sociais quanto à cultura não puderam ser realizadas.
As consequências para a práxis política da esquerda no século XX foram catastróficas. Por exemplo, diante do impasse de Lênin pós-revolução (qual tipo de cultura deveria apoiar o Estado Socialista?) entre as bases populares revolucionárias do “Polerkult” de Alexander Bogdanov ou a introdução de elementos da “cultura burguesa” à massa inculta, optou pela segunda estratégia cultural.
Na década de 1920 George Lukács tentou preencher essa lacuna no pensamento da esquerda com o livro “História e Consciência de Classes” onde apontou o problema da cultura nas grandes discussões de economia e política.
Porém, foi o filósofo alemão Ernst Bloch (1885 – 1977) que avançou um pouco mais além do tema da cultura: buscou a importância do imaginário na emancipação política das classes trabalhadoras – a importância da “assincronia” nas estratégias políticas e o uso dos meios técnicos na propaganda política, principalmente nazi-fascista.
Bloch vai propor o tema da assincronia na história do imaginário alemão, que ainda continua sendo o paradigma das estratégias políticas atuais. Um século depois, as estratégias da chamada “direita-alternativa” (“alt-right”) ainda atuam nessa concepção assíncrona do tempo do imaginário nas sociedades.
Em 1935 Ernst Bloch publicou “Erbschaft dieser Zeist” (“Herança desta Época”) onde tentava compreender a ascensão do nazi-fascismo à luz de elementos imaginários arcaicos. Nos primeiros decênios do século XX na Alemanha coexistiam o desenvolvimento tecnológico e econômico tardios do capitalismo com “os tempos latentes, míticos, arcaicos ou utópicos que se podem transmitir de uma classe a outra”.
O Tempo do Imaginário
Na “teoria da assincronia”, o tempo histórico blochiano não é linear – numa sociedade há uma multiplicidade de diferentes espaço-temporais numa mesma contemporaneidade cronológica.
Ernst Bloch (1885-1977) |
Em outros termos: os tempos mais remotos continuam a pulsar em camadas mais antigas do imaginário social e as mentes das pessoas mantêm-se ainda sensivelmente atrasadas em relação às modernizações tecnológicas e econômicas. O que resulta na identificação com discursos políticos de outras épocas, apoiando estratégias que se utilizam de temas e visões do passado.
Com isso, Bloch queria dizer que as pessoas reagem de forma totalmente assíncrona, porque nelas atuam impulsos de tempos pré-capitalistas. Por exemplo, naquele momento na Alemanha, o movimento nazista explorava largamente a assincronia: evocava fantasias idílicas e arcaicas associadas ao sangue e a terra, reinventado costumes antigos em plena propaganda política que usava os meios tecnológicos mais sofisticados da época: o rádio e o cinema, a indústria cultural e os incipientes meios de comunicação de massas.
Nessa “politização do imaginário”, Bloch identificava dois tipos de assincronias: a objetiva e a subjetiva. Na primeira forma, existiria um “ódio reprimido” ao se recusar o presente – a modernidade e as mudanças sociais, tecnológicas e as decorrentes mudanças de hábitos e costumes; e na segunda forma, a existência de elementos do passado não trabalhados ou superados – elementos utópicos que viabilizariam uma ação política progressista que liberariam esse “futuro do passado”.
É impressionante como, um século depois, testemunhamos um contexto análogo àqueles das primeiras décadas do século XX: enquanto a esquerda ignora essa política do imaginário (limitando-se apenas a denunciar as mentiras da propaganda da extrema-direita), a chamada direita-alternativa politiza ativamente essa assincronia objetiva descrita por Bloch.
Há uma flagrante repetição do período entre guerras do século XX com a conjuntura atual: se lá tínhamos o rádio e o cinema, hoje são as mídias sociais e as tecnologias digitais. Meios tecnológicos avançados que paradoxalmente manipulam esse tempo social assíncrono.
O exemplo do discurso de Bolsonaro na Assembleia-Geral da ONU é uma evidência de como a estratégia de propaganda da extrema-direita não só ocupa como reforça e amplia essa assincronia do imaginário. Enquanto as oposições apenas se limitaram a denunciar as mentiras do discurso, enquanto a grande mídia, como de hábito, apenas “passou o pano” ao apontar “imprecisões e equívocos” na fala do mandatário.
Se o auxílio emergencial é de mil dólares ou os incêndios no Pantanal e Amazônia são obras de “indígenas e caboclos” é o que menos importa no discurso em seu efeito ideológico.
O discurso foi muito mais uma peça de propaganda política para o respeitável público interno, assim como o fez Donald Trump. Tanto Bolsonaro quanto Trump não falaram como líderes de nações diante da comunidade internacional, mas como políticos em campanha colocando em ação sofisticadas ferramentas semióticas.
A questão é que não foram discursos apenas voltados para seus “núcleos duros” (os convertidos), mas para as “maiorias silenciosas” (conceito tomado no sentido dado por Jean Baudrillard - clique aqui) e seu imaginário assíncrono cujo hiato entre passado e presente é ainda mais alargado pela máquina semiótica da grande mídia. Já explicaremos esse ponto adiante.
A maioria silenciosa vive no imaginário assíncrono |
Repare, caro leitor, como o discurso de Bolsonaro “para a ONU” é dominado por um imaginário arcaico, para começar a própria composição tosca e cafona dos elementos do enquadramento do vídeo – como se emulasse a imagerie aquelas fotos tiradas de crianças, com seus cabelos fixados em brilhantina, no primário, nos anos 1960-70 – com o mapa do Brasil e bandeira nacional ao fundo; fotos emblemáticas do auge da ditadura militar brasileira – a qual nos referimos como “canastrice na política” - sobre isso, clique aqui.
Em termos retóricos, o discurso foi dominado por expressões arcaicas e de um messianismo religioso: “língua-mãe”, “o mundo necessita da Verdade”, “a produção rural, o homem do campo produziu alimento para o mundo”, “patriótico”, “impatriótico”, “um país cristão e conservador que tem a família a sua base”. Pátria, Campo, Mãe, Família, Conservador, Cristão é o imaginário muito mais tóxico do que as mentiras contadas pelo mandatário. Expressões que eram também, há um século, o leitmotiv da propaganda nazi-fascista. Mas que paradoxalmente convive confortavelmente no discurso do imaginário tecnológico da “indústria 4.0” e “nanotecnologia”.
A estratégia mais importante da propaganda da extrema-direita não é tanto a mentira, mas a politização do imaginário com o seguinte modus perandi: tensionamento e ampliação da assincronia entre presente e passado. De tal forma que a recusa ao presente (“assincronia objetiva”) alcance o ódio e o ressentimento.
Nesse sentido compreende-se o porquê da grande mídia colocar em sua agenda a visibilidade de todos os movimentos identitários (gênero, raça etc.). Aparentemente, a mídia corporativa ao transformar o identitarismo em pautas de telejornais, telenovelas, entretenimento e espetáculos, parece se colocar na oposição à extrema-direita e ao próprio governo Bolsonaro. Ledo engano.
Por mais justa que seja a agenda de luta desses movimentos, eles apenas aprofundam o movimento assíncrono tão buscado pela propaganda política da direita-alternativa: criam a polarização necessária para que o presente entre em choque com valores arcaicos do imaginário. É tudo que a extrema-direita quer para colonizar o imaginário da maioria silenciosa – os não-convertidos, cuja polarização cria a energia que converte a recusa aos “novos constumes” (modernos, cosmopolitas, progressistas etc.) em ódio e ressentimento. O histórico combustível do fascismo.
O Jornalismo metonímico e as queimadas
Além de passar o pano para tentar dar brilho naquilo que é opaco, a grande mídia simula estar na oposição, como se estivesse numa cruzada pela “ciência” contra o obscurantismo. Diante da tragédia ambiental dos incêndios no Pantanal e Amazônia, apresenta imagens de satélites, entrevista cientistas, técnicos do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, repercute vídeos e imagens de fotógrafos de renome como Araquém Alcântara - como se estivesse na linha de frente contra as “fake news” dos negacionistas que intoxicam as redes sociais.
Mas sutilmente pratica o seu recorrente jornalismo metonímico, marota estratégia semiótica desde as temporadas das bombas semióticas que prepararam o golpe de 2016 – sobre isso, leia o trepidante livro desse humilde blogueiro “Bombas Semióticas na Guerra Híbrida Brasileira (2013-2016) – Por que Aquilo Deu Nisso?” – clique aqui.
Tipo de retórica jornalística que consiste numa “contaminação metonímica” entre signos de natureza diversa (texto, imagem etc.) seguindo a fórmula: 1 + 1 = 3 - isto é, uma notícia que contamina outra notícia totalmente diversa pode produzir uma terceira notícia totalmente diversa, mas ideologicamente intencional.
As notícias sobre as queimadas incontroláveis fazem um verdadeiro “rocambole informativo”: entre o viés emocional (animais mortos ou padecendo de queimaduras) e a pauta motivacional (ativistas e pesquisadores que se arriscam a salvar animais e combater os incêndios), estão perdidas informações sobre queimadas criminosas originadas em fazendas de pecuaristas fornecedores para gigantes multinacionais como JBS, Minerva e Marfrig.
Depois dessa estratégia “rocambole” (a ferramenta semiótica de manipulação “roll over”), vem a contaminação metonímica: as notícias das queimadas são sempre sucedidas pelo bloco da previsão do tempo, com tom carregado na “estação seca”, recordes de calor e baixíssima humidade relativa do ar. 1+1=3 – justapondo as duas notícias (incêndios + recordes da estação seca) temos um terceira notícia, marotamente sugerida: os incêndios como fenômeno sazonal, que têm a ver mais com a meteorologia do que com um modelo agroindustrial de exportação de commodities.
Os incêndios como fenômeno global (Califórnia, Austrália etc.) decorrente do “aquecimento global”. Esse é o discurso ambientalista neoliberal que esconde a divisão mundial do trabalho na qual a vocação de países como o Brasil é o modelo agroexportador de commodities, ecologicamente predatório... mas a culpa é do “aquecimento global”.
Discurso que, por sua vez, também alimenta o imaginário assíncrono, combustível da propaganda da extrema-direita: o discurso neoliberal-ambientalista reacende a mitologia da natureza idílica, mãe-terra, a hipótese biogeoquímica de Gaia etc. Por que mitologia? Em nome desses valores míticos, utópicos e arcaicos: (a) tem a função ideológica de esconder a divisão do trabalho global sustentado pela banca financeira; (b) reaviva esses arquétipos milenares (sangue e terra, de má lembrança...), reavivando todos os nacionalismos reacionários numa conjuntura de globalização da divisão do trabalho.
Causa e efeito: queimadas e a precarização e desemprego |
O nacionalismo que alimenta o ressentimento imaginário das maiorias silenciosas na recusa do presente.
Portanto, acompanhando o raciocínio de Ernst Bloch chegamos a algumas conclusões
(a) enquanto os nazistas (e a atual extrema-direita) falavam enganosamente para homens, os comunistas (e as esquerdas atuais) falavam sem mentir, mas apenas sobre coisas. Enquanto a esquerda denuncia as mentiras, pouco importa para as maiorias silenciosas se há retrocessos na política ambiental ou se as florestas e os animais estão morrendo na passagem da boiada do agronegócio. Imersa nos sacrifícios da sobrevivência cotidiana, valores de um passado idílico falam mais alto – as maiorias silenciosas são intrinsecamente reativas ao presente, às mudanças e à modernidade dos costumes e do cosmopolitismo.
(b) Seguindo Bloch, um espaço para as esquerdas é a viabilização da ação política nas contradições assincrônicas subjetivas: o passado histórico não trabalhado.
Em outras palavras: a esquerda precisa retornar ao materialismo histórico e abandonar a agenda imposta pela mídia corporativa: o identitarismo e o ambientalismo neoliberal. Ou seja, tentar ligar “lé-com-cré”: didática e pedagogicamente mostrar como o desemprego e a precarização da vida da maioria silenciosa estão ligados ao modelo econômico exportador das commodities que está tocando fogo no Brasil – o incêndio que consome florestas também consome o dinheiro que não chega ao final do mês.
Na História brasileira, dois episódios do passado não foram superados: a escravidão e o militarismo. Portanto, o desafio da esquerda é superar essa assincronia, ligando esse passado não redimido com o presente: o emprego que não aparece e o dinheiro que desaparece.
Para ler: