Em questão de
horas, de uma vez só, os direitos mínimos dos trabalhadores e seu maior líder
trabalhista, Lula, foram condenados – simultaneamente, no Senado e na Vara
Federal de Curitiba. Diante desse timing e precisão, jornalistas e intelectuais
começam a expressar a perplexidade: cadê o povão? O Congresso não foi cercado e
nem as praças ocupadas com massas sem arredar os pés. Massas manipuladas pela
Globo? Índole apática do brasileiro? Por que as lutas monumentais e resistência
em trincheiras até agora não ocorreram, limitando-se a algumas “batalhas de
Itararé”? Talvez seja o momento de revisitar um dos textos políticos mais
provocativos: “À Sombra das Maiorias Silenciosas” de Jean Baudrillard. Lá na
França um gol de Rocheteau pelas eliminatórias da Copa do Mundo foi mais
importante do que a extradição de um ativista político; como aqui Lula e seu
pequeno exército de advogados solitários, sem o apoio das ruas, segue para a
condenação em segunda instância. Para Baudrillard , não é uma questão de engano
ou mistificação – há uma astúcia das massas que o Poder mais teme: não a
“revolução”, mas seu silêncio e a indiferença. Um hiperconformismo no qual a
política se afunda.
Diante do
desenrolar tão infalível da narrativa política desde as “jornadas de junho” de
2013 e perante o tic-tac preciso como um relógio suíço das engrenagens da
Guerra Híbrida e do Lawfare que chegou ao ápice de, numa taca só, enterrar a
CLT e condenar o maior líder trabalhista brasileiro, só agora começam a surgir,
aqui e ali, sinais da perplexidade.
“Cadê o
povão?”, indaga o jornalista e diretor de Redação da Carta Capital, Mino Carta. “Fosse esse
país aquele que haveria de ser, os brasileiros teriam paralisado o Brasil desde
a noite do dia 11, sem arredar pé das ruas e praças até o momento”, indigna-se
o jornalista.
Mais articulado
pelo traquejo acadêmico, Aldo Fornazieri, professor da Escola de Sociologia e
Política (FESPSP), fala em “otimismo derrotista das esquerdas”. Enquanto a
reação popular, social e sindical foram “ações pouco mais que nada” e as
promessas de “lutas monumentais, resistência em trincheiras” ruíram em “pálidas
batalhas de Itararé”, as esquerdas sofreriam de um “êxtase otimista da
esquizofrenia”: certeza da vitória e nulidade da ação, invertendo o dístico
Rolland-Gramsci – “otimismo da razão e pessimismo da vontade” - clique aqui.
Cadê o som e a fúria das massas?
Culpa-se diretamente
uma suposta índole “apática” das massas brasileiras: “república de bananas”,
“oposição sem ímpeto”, “massa que continua indiferente a tudo o que ocorre na vida
do país”. Ou ainda fala-se em “má formação” e “má fundação” da nação brasileira
como motivos principais de um povo que assiste passivo pela TV o desmanche e
roubo do Estado brasileiro e dos direitos sociais.
Nesse momento
em que intelectuais e jornalistas mais à esquerda expressam decepção e veem
ruir a expectativa de ver “o som e a fúria” das massas cercando o Congresso e
tomando as praças de todo o País, é oportuno revisitar um provocativo texto do
pensador francês Jean Baudrillard (1929-2007), À Sombra das Maiorias Silenciosas, o Fim do Social e o Surgimento das
Massas de 1978 – no Brasil publicado em 1985 pela Brasiliense.
Baudrillard
falava da indiferença dos franceses, grudados nas telas da TV comemorando o gol
de Rocheteau que classificava a França para a Copa do Mundo, enquanto advogados
corriam a noite para evitar a extradição de Klauss Croissant (advogado e
ativista político alemão) da prisão de Santé. “Escandalosa indiferença”,
clamava o Le Monde.
Algo parecido
com a atualidade tal como descrita pelo professor Fornazieri: “Lula lutou
sozinho ao lado do seu bravo e pequeno exército jurídico sem o respaldo das
ruas ou mobilizações (...) Lula em sua solidão, caminhará com a sua equipe para
uma condenação em segunda instância”.
Ou o lamento do
líder dos Racionais MC’s, Mano Brown: “Eu vi a população virar as costas para a
Dilma. Enquanto a favela faz silêncio, a mídia manipula”.
Entre a passividade e a espontaneidade selvagem
Acompanhando o
raciocínio de Baudrillard, as representações imaginárias de noções como “povo”
ou “massas”, das Ciências Sociais ao senso comum, flutuam em algum ponto entre
a passividade e a espontaneidade selvagem. Mas sempre são vistas como um
estoque potencial de energia social à espera de ser liberada – hoje
silenciosos, mas amanhã protagonistas da História.
Sempre as
massas são figuradas dentro dos esquemas da produção, irradiação e de expansão.
Mas elas respondem ao contrário como revelassem uma secreta astúcia: apenas
absorvem e neutralizam todas as forças que se exercem sobre elas.
Para
Baudrillard, o “problema” das massas não está no engano ou na mistificação – no
futebol que aliena, por exemplo. A questão estaria em outra cena: na decadência
da Política, do Poder, absorvidos pela astúcia das massas: o seu silêncio. Um silêncio
decorrente da absorção do social (o Público, o espaço da Política etc.) pelo
cotidiano, pela banalidade da vida, pela vida corrente com sua aporrinhações,
contas para pagar, os filhos, a compra no mercado, o dia seguinte, a gestão da
rotina da sobrevivência em que o desejável foi substituído pelo possível.
Klaus Croissant, Lula e o mesmo destino: a indiferença das massas |
Baudrillard
descreve como a Política, a Publicidade e o Jornalismo sempre viveram a ilusão
de que as massas são receptoras, objetos de manipulações, informações, do jogo
eleitoral, da ideologias, discursos ou retóricas. Nem sujeitos ou objetos:
qualquer mensagem voltada a elas imerge, volteia, é absorvida, revirada e
revertida.
Absorção e neutralização
Por exemplo,
nas regiões periféricas de São Paulo Doria Jr. foi interpretado como alguma
coisa parecida com o Lula: um cara que veio de baixo e se fez na vida - clique aqui.
Alienação? Foram manipulados? Falta de informação? Ou está aí figurada a astúcia das massas silenciosas, um ardil universal, assim como os primitivos reciclavam as moedas ocidentais em sua circulação simbólica.
Alienação? Foram manipulados? Falta de informação? Ou está aí figurada a astúcia das massas silenciosas, um ardil universal, assim como os primitivos reciclavam as moedas ocidentais em sua circulação simbólica.
Um tipo de
resistência que a própria sociologia americana (a “Mass Communication Research”)
descobriu com a teoria do “Two Step-Flow” na recepção às mídias: ao invés de se
alinharem a uma decodificação linear, uniforme e imposta, ao contrário disso o
líderes de opinião decodificam a sua maneira e transpõe (segundo nível) para
subgrupos que acabam por reciclar tudo a partir dos seus subcódigos.
Two Step-Flow: a sociologia americana descobre a "indiferença" das massas para o conteúdo das mídias |
É exatamente
disso que o Poder e a Política têm medo: não da revolta, mas da absoluta
indiferença e vazio – absorver energia e não refratar mais. Por isso, ao
contrário do passado no qual quanto mais as massas eram passivas o Poder estava
seguro, agora inverte-se as estratégias: da passividade o povo é chamado para a
participação – para votar, para apoiar golpes, para fazer a revolução etc.
O “saco de maldades” contra as massas
A Direita, na
sua encarnação atual sob a forma neoliberal, parece ter compreendido esse ardil
das massas que ameaça a Política, enquanto as esquerdas ainda creem num estoque
de energia social que precisa ser despertado e liberado.
Nessa
discussão, como compreender, então, o “saco de maldades” da ortodoxia
neoliberal para enterrar direitos sociais, submeter a sociedade inteira aos
“ajustes fiscais”, ênfase em “superávit primário”, sacrificando a vida banal e
cotidiana das massas silenciosas?
Para além da
expansão da apropriação do excedente econômico, expansão da taxa mais-valia e
aumento da desigualdade, há um fator simbólico visando a própria sobrevivência
da Política: impedir que o “social” ou as massas em seu silêncio ou indiferença
se esqueçam de vez da existência da Política, do Público e do Poder. Pela dor e
sofrimento, obriga-las à força “participarem” do sistema político, pelo voto,
pela recepção dos discursos e retórica de candidatos que prometem que o futuro
será melhor... isto é, se forem feitos os “ajustes” e as “reformas”.
Algo parecido
como em uma sequência do filme Matrix
(1999): mantido prisioneiro, Neo (Keanu Reeves) ouve do Agente Smith (Hugo
Weaving) um breve relato da história das várias versões da Matrix codificadas
pelas máquinas. Na primeira versão, criou-se uma Utopia, um mundo idílico no
qual todas as fantasias e desejos humanos eram realizados. Fracasso: os
habitantes caíram na indiferença e letargia, sem render a energia necessária
para as máquinas.
Optou-se pela
versão mais “realista” com todas as mazelas, desigualdades e sofrimentos.
Assim, obrigava os humanos a sair da apatia e gerar a energia vital para o
sistema de dominação das máquinas.
Hiperconformismo
Como sempre, a
Direita sob suas diversas formas (do fascismo ao neoliberalismo), conseguiu
compreender cinicamente a ameaça que as massas representam à Política e ao
Poder. Paradoxalmente, não pela revolta, mas pelo oposto – a indiferença, o
silêncio.
Enquanto os
intelectuais e a elite bem pensante à esquerda não saírem da caixa dos sistemas
de significação iluministas (liberação, representação, alienação etc.), não
compreenderão essa astúcia. De como a inércia das massas é, ironicamente, a
maior ameaça ao sistema capitalista.
Por exemplo, certa vez um amigo
trotskista nos tempos de faculdade falou para mim: “se Marx dizia que o
Capitalismo produzia suas próprias contradições que levarão ao seu fim, então
devemos consumir cada vez mais para acelerar essas contradições.” Na época
pensei “que pequeno burguês!”. Mas à luz do pensamento baudrillardiano
passa a ter sentido como tática de levar o consumo ao paroxismo, isto é, ao
aprofundamento e excesso.
Consumir até o limite da
irresponsabilidade financeira pessoal. Essa inércia das massas (se é para
consumir, então vou até o fim!) leva os caminhos do social que lhes foram traçados
a ultrapassar toda lógica e limites. Ameaçando derrubar todo o edifício.
Hiperconformismo destruidor.
Não é à toa que, alarmado, os
guardiões da banca financeira gritam pelo “desaquecimento econômico”, renegociam
dívidas em descontos que praticamente cancelam o valor original da dívida,
tentam trazer as massas de volta à reponsabilidade moral pelo dinheiro. Até a
inércia do hiperconformismo ameaçar novamente o sistema com deflação e
depressão econômica.
Quem vencerá? A simulação
exercida pelo Poder sobre as massas? Ou a simulação inversa dirigida pelas
massas ao Poder e ao sistema político que nelas se afunda?
É essa zona cinza, transpolítica,
que as esquerdas deveriam descobrir e ficarem mais atentas.
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