“Logo tudo passará”, “Depois de tudo isso nos tornaremos pessoas melhores”, “Vai ficar tudo bem”, “Fique tranquilo”, dizem as campanhas motivacionais na TV que se proliferam tão rápidas quanto a COVID-19.
Mas, por outro lado, há um viés propagandístico mais sombrio, embora se disfarce com pessoas sorridentes e imagens fotogênicas: “reinvente-se”, “vamos nos acostumar com o novo normal” e assim por diante. Descontando-se as pessoas sorridentes com olhares esperançosos, há um evidente subtexto que assim pode ser resumido: “acostuma que dói menos!”.
Algo assim como nos anos 1990 nos quais a chegada do Windows 95 e a “estrada para o futuro” apontada por Bill Gates era acompanhada pelo alerta: “Adapt or you’re toast!”, para reforçar a necessidade compulsiva das pessoas se adaptarem a qualquer custo às novas realidade tecnológicas e econômicas.
O fato é que esse humilde blogueiro desconfia desse espírito “kumbayá” de que a crise da pandemia e a exigência do isolamento social despertará “o melhor de nós”: criatividade, ajudar a conectar com nós mesmos e coisas assim.
Pelo contrário, o que acompanhamos é a exacerbação diária dos rituais simbólicos de distinção de classes – a necessidade compulsiva de ter que demarcar o seu lugar na sociedade, a sua superioridade social.
Por quê? Porque a urgência sanitária de uma pandemia revela a insuportável realidade da igualdade social diante da morte: a insuportável consciência de que todos, não importa a classes social, riqueza, poder aquisitivo ou político, todos caminhamos inexoravelmente para a morte.
O insuportável comunismo da morte
Claro que não há igualdade antes da morte – no seio da sociedade de classes a morte não é democrática. Somente quando se está morto, quando se opõe cadáveres de diferentes procedências de classes, todos corpos inertes e sem vida, é que se revelam totalmente iguais entre si.
Essa consciência é progressivamente insuportável quanto maior for abismo entre as classes sociais. Ao exigir que todos, não importando a diferença de classes, façam quarentena, usem máscaras, isolem-se socialmente ou se submetam à urgência sanitária de um lockdown, p. ex., mais perigosamente pode aflorar a horrível consciência da igualdade diante da morte.
Flagrantes da luta de classes contra o Necrocomunismo: "drive in thru" e a aglomeração nobre no Leblon |
Se na normalidade cotidiana fazemos de tudo para marcar a diferença e a mobilidade social usando ferramentas e dispositivos que a sociedade de consumo nos oferece (ostentação das marcas, o desfile pelos paraísos seguros dos shopping centers, o isolamento em carros nos drive thrus etc.), imagine numa situação de crise sanitária na qual repentinamente somos colocados dentro de um mesmo barco, e é exigido de todos empatia e a preocupação com o próximo. Porque supostamente a morte espreitaria a todos igualmente.
Senão, como interpretar bizarrices como a liberação no Estado de São Paulo de “mini-lockdowns” (ampliar o horário de funcionamento do comércio e shoppings para serviços “considerados essenciais” – categoria cada vez mais subjetiva, de acordo com o gosto da elite de cada cidade), o “liberou-geral” no bairro nobre do Leblon, Rio de Janeiro, com a inacreditável aglomeração na liberação de bares com jovens de classe média alta sem máscaras.
Ou outra invenção brasileira: o inacreditável “drive in thru” – carros andando dentro dos corredores de um shopping em Botucatu/SP permitindo aos clientes fazer compras ou buscar mercadorias compradas pela Internet. No interior da “segurança” do carro, considerado agora a extensão do isolamento social de cada um.
Não importa se, além da exposição dos funcionários ao risco sanitário do transporte público, irão aspirar o monóxido de carbono das 11h às 20h – claro, “com todas as normas de segurança”, como cinicamente informa o release do shopping para a imprensa...
É sintomático que o negacionismo diante da urgência da pandemia ocorra nos países onde o abismo da desigualdade é mais largo e profundo: nas sociedades mais desiguais é onde essa inesperada consciência da igualdade diante da morte mais assusta. Não é a morte em si que amedronta, mas o fato de que o morrer nos torna iguais.
Jean Ziegler |
O Vivos e a Morte
O sociólogo suíço Jean Ziegler no livro “Los Vivos y La Muerte” (“Les Vivants et La Mort”, Siglo XXI, 1976) descreve essa negação simbólica das sociedades de classes contra o, por assim dizer, “necrocomunismo” – diante da morte somos todos iguais. Mas ela não pode ser repartida equitativamente. A morte como pressuposto universal da condição humana deve sofrer uma discriminação: a discriminação social dos mortos.
Enquanto os pobres e marginalizados são aqueles que “não têm onde cair morto”, aos ricos é reservado uma “morte dourada”: das pirâmides aos grandes mausoléus e luxuosas lápides separadas geograficamente do restante dos mortos até os luxuosos cemitérios verticais ou a morte criogênica – a elite à espera da ressureição, sequer imaginada pelos mais poderosos faraós.
A necessidade de rituais majestosos e luxos exorbitantes (ou oposto clean: rituais filosoficamente gourmetizados como a cremação) garante a distinção social, mesmo no momento do morrer em que nos tornamos iguais.
Os vivos devem compulsivamente ostentar socialmente sua diferenciação. Demonstrar em diversos rituais (consumo, político, jurídico, financeiro etc.) que têm onde cair morto.
Por isso, nas sociedades onde a desigualdade é mais ampla e abissal é mais necessário denegar a condição necrocomunista. Por isso, as medidas sanitárias tornam-se negativamente impactantes nessas sociedades: arbitrariamente confrontam esses rituais simbólicos de denegação cotidiana da igualdade diante da morte.
“Vejam! Eu tenho onde cair morto!”
Lockdown, isolamento social ou quarentenas confrontam os rituais simbólicos da chamada “morte classista” apontada por Jean Ziegler: não há mais shoppings, festas, baladas ou qualquer outra forma simbólica de distinção de classe: “Vejam! Eu tenho onde cair morto!”.
Túnel de ozônio, de desinfecção... racionalizações para a estratégia da "morte classista" |
O que acompanhamos no Brasil é a mais completa obscenidade de uma sociedade historicamente incapaz de acertar contas com suas origens escravocratas. O fato de impor um rigoroso lockdown logo no início da crise causaria um horror profundo no imaginário coletivo: como assim! Somos todos iguais? Somos igualmente vulneráveis diante da morte? A consciência da morte está nos unindo?
Por isso acompanhamos meses de arrasto de um isolamento social que nunca ocorreu que apenas jogou a economia numa profunda crise econômica – e isso seria uma outra história, a Necropolítica: expor os mais vulneráveis à morte para eliminar todos aqueles dispensáveis para a aplicação estrita da agenda neoliberal. Aposentados, incapazes, desempregados, idosos ou todos aqueles amparados por políticas de amparo social que devem ser eliminadas nas reformas do “Estado Mínimo”.
E agora, acompanhamos a “flexibilização” de um isolamento social que jamais ocorreu: os espaços de distinção de classe serão abertos com “rígidos protocolos de segurança”, eufemismo politicamente correto.
Um shopping de São Paulo voltado para a classe AA mostra em um vídeo publicitário institucional que os carros (só se entra de carro nesse shopping) passarão por um “túnel de ozônio” para “higienizar” os veículos.
Academias de ginástica elaboram protocolos de assepsia tão intrincados para serem exibidos em matérias de telejornais que fico imaginando se alguém com tanta adrenalina na cabeça e testosterona no corpo vai lembrar de pegar o paninho e o álcool em gel para passar numa estação de musculação...
“Protocolos de segurança”, “flexibilização segura”, “protocolos de flexibilização” são termos que estão inundando a pauta do jornalismo corporativo. Nítida estratégia de racionalização para:
(a) esconder o fato de que jamais houve isolamento social – apenas fechamento de empresas e negócios para gerar crise e desemprego dentro da agenda oculta da Necropolítica neoliberal;
(b) Fornecer o álibi necessário para liberar a sociedade da culpa do exercício cotidiano da “morte classista”. Em outras palavras, expiar da crise da pandemia o fantasma do necrocomunismo com a liberação dos rituais cotidianos de distinção de classe.