Décadas de corpos de decompondo, sustos e canibalismo no gênero
cinematográfico dos mortos-vivos ajudaram a nos fazer esquecer do verdadeiro
centro crítico do personagem do zumbi: a crítica social e metafísica por meio
do arquétipo contemporâneo do personagem do “Estrangeiro”. O filme francês “Les
Revenants” (2004) renova o gênero ao apresentar esse tenebroso personagem
na própria acepção da palavra “zumbi”: “espectro”, “fantasma”. Mortos retornam
inexplicavelmente do além-túmulo em uma pequena cidade. Eles não querem comer
cérebros e nem matar. Voltam calados, como memórias vivas e indesejáveis, mas escondem um propósito.
O
que acontece quando você cruza um filme de zumbis com o drama social? Temos um
novo olhar para o gênero zumbis. O filme francês “Les Revenants” (2004) abre
com uma clássica cena dos filmes do gênero: centenas de mortos-vivos percorrem
lentamente as ruas de uma pequena cidade. Todos saem de um cemitério local, mas
percebemos que há algo diferente. Eles não estão em decomposição e estão
vestidos com suas melhores roupas como estivessem de saída para a missa de
domingo. Não fazem gestos ameaçadores e nem grunhem. Apenas aparentam em seus
rostos uma espécie de ausência.
O
filme “Les Revenants” foi adaptado por Fabrice Colbert a uma série de TV homônima
em 2012 com oito episódios apresentados pelo Canal + na França e BeTV na
Bélgica.
Com um roteiro propositalmente cheio de buracos (não há explicações sobre o porquê dos mortos retornarem ou porque as pessoas não alertarem os outros sobre o estranho fenômeno), o filme cria uma atmosfera semelhante aos episódios da série clássica “Além da Imaginação”, o que dá a entender ao espectador que a presença dos zumbis naquela pequena cidade no interior da França é uma grande metáfora.
Os
mortos recém-chegados tornam-se um problema social: o que fazer com eles? Como
reintegrá-los às suas famílias, à sociedade e aos seus antigos trabalhos? Entes
queridos que retornam podem, de uma hora para outra, tornarem-se indesejáveis.
De início, o filme apresenta a interessante metáfora do problema social da
integração dos imigrantes, do estrangeiro e da tolerância.
Mas
essa estreia, na época, do diretor Robin Campillo oferece novos insights para a clássica mitologia
cinematográfica dos zumbis. A principal delas é a “teoria do eco” – o sistema
linguístico dos mortos vivos seria uma ilusão: ou eles imitam as expressões dos
que estão vivos, ou agem como uma espécie de eco das expressões e situações da
vida anterior. Combinados, criaria uma ilusão de comportamento normal.
Portanto,
seriam incapazes de inovação, a temperatura dos seus corpos é cinco graus
abaixo do normal, têm serias dificuldades para dormir porque são hiperativos e
não param de caminhar e, à noite, ainda realizam estranhas reuniões: o que eles
planejam nesses encontros furtivos?
“Les
Revenants” apresenta narrativa com uma fotografia limpa e elegante que
contrasta com o estado de choque das pessoas na cidade que não sabem o que
fazer com os “intrusos” que, outrora, foram pessoas amadas. Muitas reviravoltas
na trama são deixadas soltas o que torna o filme francês a típica história com
um final aberto que permite múltiplas leituras: um alerta sobre a condição do
imigrante na Europa? Uma visão crítica do problema previdenciário com o
crescente envelhecimento da população? Uma história sobre como memórias e
culpas podem se tornar verdadeiros fantasmas?
Zumbis como Estrangeiros
Em
todas as leituras possíveis que podemos fazer sobre os mortos-vivos de
Campillo, com certeza em todas elas estará a figura do zumbi como “O
Estrangeiro”. Dentro dos arquétipos cinematográficos contemporâneos (ao lado
dos personagens “O Viajante” e “O Detetive” – veja links abaixo), a figura do
Estrangeiro é uma das mais exploradas em diversos gêneros: o personagem que pressente
a inautenticidade do mundo onde ele se encontra. Aquele que demonstra desdém
aos papéis sociais, padrões, modelos de felicidade. É um melancólico. Pretende
se reconhecer no submundo, nas ruínas, em todos os lugares que estão acabando,
no erro, no suicídio, na morte.
O personagem do Estrangeiro é
tomado na cinematografia atual tanto no sentido daquele que veio de longe, de
outras terras, dimensões ou planetas, como aquele que mantém uma relação de
estranhamento e mal-estar onde vive, sentindo-se como um estrangeiro na sua
própria família, trabalho ou sociedade.
Os mortos-vivos de “Les
Revenants” possuem essa dupla dimensão do Estrangeiro: vieram do além túmulo e,
definitivamente, estão deslocados na sociedade. Estão em estado de afasia e, ao
mesmo tempo, estão hiperativos. Como ninguém sabem o porquê deles retornarem tentam
enquadrá-los novamente a trabalhos repetitivos e maquinais, já que perderam a
capacidade de inovação linguística. Descobrem uma droga para acalmá-los e
forçarem a dormir à noite.
Mas eles são notívagos e nada
produtivos. Possuem uma misteriosa vida social noturna onde se encontram para
planejarem alguma coisa que escapa à compreensão humana. Tal como o arquétipo
do Estrangeiro, são fascinados pela noite, o underground (o que planejam tem
algo a ver com túneis – não podemos dizer mais nada senão produziremos um
grande spoiler), por isso são
insones.
Melancolia hiperativa dos zumbis
“Le Revenants” expõe o personagem do
Estrangeiro a um aspecto que se aproxima da filosofia gnóstica de Mani: a
melancolia hiperativa e agressiva. No filme, os mortos-vivos são diagnosticados
como afásicos e ausentes, vivendo apenas de ecos do passado. São na verdade
melancólicos porque prisioneiros. Os vivos tentam confiná-los, discipliná-los,
submetê-los à rotina do trabalho/casa, mas eles permanecem “ausentes”, imitam
os gestos e papéis dos vivos apenas como estratégia de resistência para
encobrir um propósito.
Para Mani, que viveu no Irã no
século III DC, a chave para escapar da conspiração dentro de um cosmos dominado
por forças tão opostas (o Bem e o Mal) é a melancolia. A partir dessa
verdadeira falha na racionalidade o homem recusaria os códigos de uma sociedade
inautêntica por meio do desdém, depressão e tristeza. A melancolia agressiva de
Mani sugere a exposição da ferida aberta do espírito ao negar os consolos do
mundo material.
Os mortos-vivos de “Les
Revenants” não querem matar, vampirizar ou infectar. Eles parecem assumir a
própria acepção da palavra “zumbi”, que significa “fantasma” ou “espectro”.
Eles trazem de volta memórias incômodas para os vivos. Mas não apenas as
memórias familiares, mas principalmente uma de natureza mais ontológica e
metafísica: os mortos são a comunidade que nos espera.
Em
uma sociedade consumista e hedonista que valoriza todas as formas de “consolo”
nesse mundo por meio do prolongamento artificial da juventude e da própria vida
por meio de uma Medicina que se transformou em commodity, a lembrança da morte torna-se incômoda porque
afronta os próprios códigos que sustentam nossa forma de viver.
Por isso a estranha melancolia
dos mortos-vivos no filme (interpretado como “afasia” pelos vivos) é um
protesto ativo de não acomodação à sociedade.
A grande virtude de “Les
Revenants” é explicitar esse tema do Estrangeiro no gênero cinematográfico dos
mortos-vivos. Camadas e mais camadas de violência, sustos, corpos se desfazendo
e canibalismo ao longo das décadas ajudaram a esconder o centro de crítica social
e metafísica desse gênero
O
fascínio pelos zumbis viria dessa estranha condição de “estrangeiros” que eles
parecem inspirar, fazendo-nos recordar da nossa própria condição humana: nem
vivos e nem mortos, lembranças familiares nos fazem vagar por esse mundo, mas,
ao mesmo tempo, a dor e a fome tornam esse mundo hostil, como se não fizéssemos
parte dele. A revolta deles vai além da crítica social e política. Há uma
revolta metafísica e gnóstica: nem a vida e nem a morte. O zumbi nos faz
lembrar que a morte não é libertação: em um sentido gnóstico apenas nos faz
retornar a esse mundo por meio da reencarnação, reproduzindo um ciclo vicioso
infernal.
Por
isso, os zumbis parecem querer nos lembrar que jamais escaparemos do passado,
de todas as histórias que nos causaram dor e que demonstram a nossa condição
“estrangeira” em um cosmos hostil.
Ficha Técnica
- Título: Les Revenants
- Diretor: Robin Campillo
- Roteiro: Robin Campillo, Brigitte Tijou
- Elenco: Géraldine Pailhas, Jonathan Zaccaï, Frédéric Pierrot
- Produção: Haut et Court, France 3 Cinéma
- Distribuição: Hault et Court
- Ano: 2004
- País: França
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