sexta-feira, julho 12, 2013

Os mortos são a comunidade que nos espera no filme "Les Revenants"


Décadas de corpos de decompondo, sustos e canibalismo no gênero cinematográfico dos mortos-vivos ajudaram a nos fazer esquecer do verdadeiro centro crítico do personagem do zumbi: a crítica social e metafísica por meio do arquétipo contemporâneo do personagem do “Estrangeiro”. O filme francês “Les Revenants” (2004) renova o gênero ao apresentar esse tenebroso personagem na própria acepção da palavra “zumbi”: “espectro”, “fantasma”. Mortos retornam inexplicavelmente do além-túmulo em uma pequena cidade. Eles não querem comer cérebros e nem matar. Voltam calados, como memórias vivas e indesejáveis, mas escondem um propósito.

O que acontece quando você cruza um filme de zumbis com o drama social? Temos um novo olhar para o gênero zumbis. O filme francês “Les Revenants” (2004) abre com uma clássica cena dos filmes do gênero: centenas de mortos-vivos percorrem lentamente as ruas de uma pequena cidade. Todos saem de um cemitério local, mas percebemos que há algo diferente. Eles não estão em decomposição e estão vestidos com suas melhores roupas como estivessem de saída para a missa de domingo. Não fazem gestos ameaçadores e nem grunhem. Apenas aparentam em seus rostos uma espécie de ausência.

O filme “Les Revenants” foi adaptado por Fabrice Colbert a uma série de TV homônima em 2012 com oito episódios apresentados pelo Canal + na França e BeTV na Bélgica.


Com um roteiro propositalmente cheio de buracos (não há explicações sobre o porquê dos mortos retornarem ou porque as pessoas não alertarem os outros sobre o estranho fenômeno), o filme cria uma atmosfera semelhante aos episódios da série clássica “Além da Imaginação”, o que dá a entender ao espectador que a presença dos zumbis naquela pequena cidade no interior da França é uma grande metáfora.

Os mortos recém-chegados tornam-se um problema social: o que fazer com eles? Como reintegrá-los às suas famílias, à sociedade e aos seus antigos trabalhos? Entes queridos que retornam podem, de uma hora para outra, tornarem-se indesejáveis. De início, o filme apresenta a interessante metáfora do problema social da integração dos imigrantes, do estrangeiro e da tolerância.

Mas essa estreia, na época, do diretor Robin Campillo oferece novos insights para a clássica mitologia cinematográfica dos zumbis. A principal delas é a “teoria do eco” – o sistema linguístico dos mortos vivos seria uma ilusão: ou eles imitam as expressões dos que estão vivos, ou agem como uma espécie de eco das expressões e situações da vida anterior. Combinados, criaria uma ilusão de comportamento normal.
Portanto, seriam incapazes de inovação, a temperatura dos seus corpos é cinco graus abaixo do normal, têm serias dificuldades para dormir porque são hiperativos e não param de caminhar e, à noite, ainda realizam estranhas reuniões: o que eles planejam nesses encontros furtivos?

“Les Revenants” apresenta narrativa com uma fotografia limpa e elegante que contrasta com o estado de choque das pessoas na cidade que não sabem o que fazer com os “intrusos” que, outrora, foram pessoas amadas. Muitas reviravoltas na trama são deixadas soltas o que torna o filme francês a típica história com um final aberto que permite múltiplas leituras: um alerta sobre a condição do imigrante na Europa? Uma visão crítica do problema previdenciário com o crescente envelhecimento da população? Uma história sobre como memórias e culpas podem se tornar verdadeiros fantasmas?

Zumbis como Estrangeiros


Em todas as leituras possíveis que podemos fazer sobre os mortos-vivos de Campillo, com certeza em todas elas estará a figura do zumbi como “O Estrangeiro”. Dentro dos arquétipos cinematográficos contemporâneos (ao lado dos personagens “O Viajante” e “O Detetive” – veja links abaixo), a figura do Estrangeiro é uma das mais exploradas em diversos gêneros: o personagem que pressente a inautenticidade do mundo onde ele se encontra. Aquele que demonstra desdém aos papéis sociais, padrões, modelos de felicidade. É um melancólico. Pretende se reconhecer no submundo, nas ruínas, em todos os lugares que estão acabando, no erro, no suicídio, na morte.


O personagem do Estrangeiro é tomado na cinematografia atual tanto no sentido daquele que veio de longe, de outras terras, dimensões ou planetas, como aquele que mantém uma relação de estranhamento e mal-estar onde vive, sentindo-se como um estrangeiro na sua própria família, trabalho ou sociedade.

Os mortos-vivos de “Les Revenants” possuem essa dupla dimensão do Estrangeiro: vieram do além túmulo e, definitivamente, estão deslocados na sociedade. Estão em estado de afasia e, ao mesmo tempo, estão hiperativos. Como ninguém sabem o porquê deles retornarem tentam enquadrá-los novamente a trabalhos repetitivos e maquinais, já que perderam a capacidade de inovação linguística. Descobrem uma droga para acalmá-los e forçarem a dormir à noite.

Mas eles são notívagos e nada produtivos. Possuem uma misteriosa vida social noturna onde se encontram para planejarem alguma coisa que escapa à compreensão humana. Tal como o arquétipo do Estrangeiro, são fascinados pela noite, o underground (o que planejam tem algo a ver com túneis – não podemos dizer mais nada senão produziremos um grande spoiler), por isso são insones.

Melancolia hiperativa dos zumbis


 “Le Revenants” expõe o personagem do Estrangeiro a um aspecto que se aproxima da filosofia gnóstica de Mani: a melancolia hiperativa e agressiva. No filme, os mortos-vivos são diagnosticados como afásicos e ausentes, vivendo apenas de ecos do passado. São na verdade melancólicos porque prisioneiros. Os vivos tentam confiná-los, discipliná-los, submetê-los à rotina do trabalho/casa, mas eles permanecem “ausentes”, imitam os gestos e papéis dos vivos apenas como estratégia de resistência para encobrir um propósito.

Para Mani, que viveu no Irã no século III DC, a chave para escapar da conspiração dentro de um cosmos dominado por forças tão opostas (o Bem e o Mal) é a melancolia. A partir dessa verdadeira falha na racionalidade o homem recusaria os códigos de uma sociedade inautêntica por meio do desdém, depressão e tristeza. A melancolia agressiva de Mani sugere a exposição da ferida aberta do espírito ao negar os consolos do mundo material.


Os mortos-vivos de “Les Revenants” não querem matar, vampirizar ou infectar. Eles parecem assumir a própria acepção da palavra “zumbi”, que significa “fantasma” ou “espectro”. Eles trazem de volta memórias incômodas para os vivos. Mas não apenas as memórias familiares, mas principalmente uma de natureza mais ontológica e metafísica: os mortos são a comunidade que nos espera.

Em uma sociedade consumista e hedonista que valoriza todas as formas de “consolo” nesse mundo por meio do prolongamento artificial da juventude e da própria vida por meio de uma Medicina que se transformou em commodity, a lembrança da morte torna-se incômoda porque afronta os próprios códigos que sustentam nossa forma de viver.

Por isso a estranha melancolia dos mortos-vivos no filme (interpretado como “afasia” pelos vivos) é um protesto ativo de não acomodação à sociedade.

A grande virtude de “Les Revenants” é explicitar esse tema do Estrangeiro no gênero cinematográfico dos mortos-vivos. Camadas e mais camadas de violência, sustos, corpos se desfazendo e canibalismo ao longo das décadas ajudaram a esconder o centro de crítica social e metafísica desse gênero

O fascínio pelos zumbis viria dessa estranha condição de “estrangeiros” que eles parecem inspirar, fazendo-nos recordar da nossa própria condição humana: nem vivos e nem mortos, lembranças familiares nos fazem vagar por esse mundo, mas, ao mesmo tempo, a dor e a fome tornam esse mundo hostil, como se não fizéssemos parte dele. A revolta deles vai além da crítica social e política. Há uma revolta metafísica e gnóstica: nem a vida e nem a morte. O zumbi nos faz lembrar que a morte não é libertação: em um sentido gnóstico apenas nos faz retornar a esse mundo por meio da reencarnação, reproduzindo um ciclo vicioso infernal.

Por isso, os zumbis parecem querer nos lembrar que jamais escaparemos do passado, de todas as histórias que nos causaram dor e que demonstram a nossa condição “estrangeira” em um cosmos hostil. 

Ficha Técnica

  • Título: Les Revenants
  • Diretor: Robin Campillo
  • Roteiro: Robin Campillo, Brigitte Tijou
  • Elenco: Géraldine Pailhas, Jonathan Zaccaï, Frédéric Pierrot
  • Produção: Haut et Court, France 3 Cinéma
  • Distribuição: Hault et Court
  • Ano: 2004
  • País: França

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