Ao lado de parques de parques de diversões, hospitais e suas variações (asilos, manicômios e enfermarias) são um dos principais “locus” de ação nos filmes de terror ou thrillers. Assim como os parques de diversões, hospitais também perpetuam arquétipos das suas origens medievais brutais e violentas. A produção Netflix “Fratura” (Fractured, 2019) é mais um filme que renova essa mitologia, acrescentando a paranoia contemporânea, típico traço das sociedades burocratizadas cujos propósitos fogem do nosso controle. Pais desesperados levam sua pequena filha com suspeita de fratura a um hospital. Lá, mãe e filha desaparecem. Ninguém lembra da entrada delas no hospital enquanto o pai suspeita de que está ocorrendo algum tipo de conspiração. Ou ele está enlouquecendo? Mais uma sugestão do nosso onisciente colaborador Felipe Resende.
No universo dos arquétipos cinematográficos do horror, certamente parques de diversões e circos estão nos primeiros lugares do ranking. O que é compreensível: as suas origens estão lá na Era Vitoriana no século XIX onde parques de variedades e circos viviam de shows com aberrações humanas, zoológicas, além de espetáculos de mágicos, ocultistas e médiuns.
Por baixo da superfície de risos, alegria e diversão, pulsa a mitologia do estranho e do assustador, representado no cinema por palhaços assassinos, zumbis, acidentes etc.
Com os hospitais é a mesma coisa, também locus privilegiado do thriller e do horror no cinema. Isso porque sob a superfície terapêutica, da saúde e do acolhimento, pulsa também uma mitologia de origens assustadoras – são instituições cujas origens medievais tinham a função de segregar um contingente de mendigos, loucos, prostitutas, portadores de moléstias transmissíveis etc.
A transformação dessa instituição como centro terapêutico a partir do século XVIII, depois de sucessivas reformas para erradicar a insalubridade, é historicamente recente. Por isso, ainda os hospitais estão associados ao atavismo do medo, horror e conspirações. Principalmente com a sua transformação em centros tecnológicos, grandes complexos burocráticos com portas de contenção, corredores labirínticos, portarias e seguranças que impedem a entradas de pessoas não-autorizadas.
Poderíamos pensar numa lista imensa de filmes do gênero em que hospitais se confundem com enfermarias, asilos e manicômios: protagonistas que passam a noite em hospitais abandonados, paciente em alas psiquiátricas imersas em conspirações etc. – clique aqui.
A produção Netflix Fratura (Fractured, 2019) é mais um filme que se insere nessa longa lista desse subgênero do thriller de horror que explora situações inerentemente assustadoras: longos corredores, cores frias e iluminação branca, drogas que nos entorpecem até perdermos a noção do tempo, tubos, drenos, eletrodos adesivos em nosso corpo conectados a fios.
Fratura tem a mesma “pegada” paranoica de filmes como A Dama Oculta (The Lady Vanishes, 1938), O Segundo Rosto (Seconds, 1966), Plano de Voo (2005), Ilha do Medo (Shutter Island, 2010) – grande parte do filme acompanhamos o protagonista tentando convencer as autoridades de que sua esposa e sua filha estão presas em algum lugar no hospital. E teremos que decidir se ele está louco ou se todos do hospital estão conspirando para que assim pensemos.
O Filme
O filme abre com Ray (Sam Worthington) retornando de uma desastrosa reunião familiar do Dia de Ação de Graças com sua esposa Joanne (Lily Rabe) e com a pequena filha Peri (Lucy Capri), no banco de trás do carro. Enquanto Ray e Joanne têm uma tensa discussão de relacionamento com o marido no volante.
Há uma tensão no ar em relação a Ray, “o cara com quem eu me casei há seis anos”, diz a esposa. Ray parece disperso, sem élan para lutar por oportunidades melhores na vida profissional. A iluminação desbotada, o céu de chumbo e uma desolação invernal nos informa que algo nada bom está para ocorrer.
Tudo nos leva a um acidente muito bem orquestrado em um posto de gasolina de beira de estrada: a pequena Peri cai em um buraco em um canteiro de obras, junto com Ray que tenta segurá-la. A menina aparentemente quebrou um braço e os pais entram em pânico, levando-a a um hospital mais próximo.
Depois de lidar com a burocracia dos formulários da recepção e os horrores dos planos médicos (o filme descreve um exemplo raramente dramatizado sobre a burocracia desgastante envolvida no pagamento dos gastos de saúde, além da frieza e indiferenças dos complexos hospitalares), Ray se depara com algo mais horripilante.
Ele pega no sono na sala de espera enquanto aguarda sua esposa levar Peri à tomografia. Para nunca mais voltarem. E tudo tende a piorar: o hospital afirma que elas nunca estiveram lá. Apenas ele, com a cabeça machucada e sangrando.
Logicamente, Ray não se conforma e tenta entrar à força, para ser contido por seguranças, sedado e preso em uma sala.
A partir daí, o filme quer nos transformar em detetives de poltrona: há algum tipo de conspiração envolvendo tráfico de órgãos humanos ou Ray está imerso em algum processo grave de negação psíquica, escondendo alguma coisa muito grave que teria ocorrido com sua família?
A prepotência médica, os olhares cifrados de enfermeiros e funcionários e a violência dos seguranças parecem nos informar que há algo de sinistro funcionando nos bastidores. Mas Ray também parece um cara problemático: um alcoólatra em recuperação que tenta superar alguma tragédia no passado, com sua primeira esposa falecida.
A paranoia de uma instituição total
O problema de Fratura é que ficamos pensando o que diretores como John Carpenter e David Cronenberg fariam com esse argumento narrativo. Ao contrário, o diretor Brad Anderson (The Machinist, Mistério da Rua 7) surpreendentemente dá pouca importância em explorar visualmente a atmosfera de pesadelo de um hospital – os corredores, a sinistra assepsia, a iluminação, tudo enquadrado em planos de câmera desequilibrados, assimétricos e distorcidos. Nada que expresse a atmosfera de conspiração. Apenas uma configuração única, plana.
O filme poderia se aprofundar visualmente na expressão dessa mitologia das origens das instituições hospitalares: como “instituições totais” (instituições separadas da sociedade que leva uma vida fechada e formalmente administrada, como definia Irwing Goffman) ou “instituição de sociedade disciplinar” (introjetar a dominação no cotidiano do homem moderno, M. Foucault), tornam-se um dos locus favoritos dos filmes de horror.
Mas Fratura aproxima a paranoia da mercantilização da saúde e dos corpos nessas instituições: o hospital figurado pelo filme não fica muito distante dos nossos hospitais públicos e mesmo das redes de atendimento dos planos de saúde vendidos para as classes médias – burocracia, atendimento frio e longos tempos de espera.
Ray desespera-se com supostas evidências de tráfico de órgãos e o desaparecimento de sua família na burocracia de formulários, pranchetas e telas de computadores da recepção. Por isso o filme expressa bastante a paranoia como o mal-estar psíquico da vida moderna – complexos tecnológicos e a expansão de instituições totais tornam-se incompreensíveis e misteriosos para a percepção individual. Seus propósitos fogem da compreensão individual, tornando-se persecutórios.
Motivo pelo qual hospitais e variações (asilos, manicômios, enfermarias etc.) são um prato cheio para o thriller e filmes de terror. A forma como nossos próprios corpos podem ser controlados ou mantidos vivos por instituições impessoais por trás de máquinas e dispositivos tecnológicos.
O que rende até esquetes de humor negro, como a do grupo inglês Monty Python no filme O Sentido da Vida (1983): a euforia do dono de um hospital com a compra de máquinas que fazem “pin!”, menos por salvar vidas e muito mais pela estética publicitária.
Ficha Técnica
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Título: Fratura
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Diretor: Brad Anderson
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Roteiro: Alan B. McEnroy
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Elenco: Sam Worthington. Lily Rabe, Lucy Capri, Stephen Tobolowsky, Adjoa Andoh
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Produção: Crow Island Films, Koji Productions
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Distribuição: Netflix
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Ano: 2019
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País: EUA
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