Terceiro filme da trilogia da paranoia do diretor John Frankenheimer, “O
Segundo Rosto” (Seconds, 1966) é uma obra que merece ser revisitada com cuidado,
47 anos depois. Isso porque a sua estranha fotografia granulada em preto e
branco com bizarros e claustrofóbicos planos de câmera acabaram criando um
verdadeiro clássico da paranoia e da esquizofrenia. Marca de uma década que
vivia o auge da Guerra Fria e um filme dotado de uma misteriosa sensibilidade
gnóstica que, mais tarde, produções como “Show de Truman”, “Matrix” e “Cidade das
Sombras” explorariam: uma sinistra “Companhia” promete fazer pessoas “renascerem”
em novas identidades, sob uma suposta promessa de liberdade e autorrealização.
Porém, o jogo é desigual e seus “clientes” descobrirão isso de uma terrível
maneira.
Um filme para ser revisitado com
todo cuidado. “O Segundo Rosto” (Seconds, 1966) de John Frankenheimer é o
terceiro filme da sua trilogia da paranoia, depois de “O Candidato da
Manchúria”, (The Manchurian Candidate, 1962) e “Sete Dias em Maio” (Seven Days
in May, 1964). Sua estranha e fascinante fotografia em preto e branco
granulada, os bizarros ângulos de câmera conseguidos através de lentes grande
angular (“olho de peixe”) e a utilização de câmera manual dão um aspecto
doentio e paranoico que muitos críticos chamaram de estilo sci fi noir. O visual é expressionista: é como se tivessem pego o
quadro “O Grito” de Edward Munch e dado vida cinematograficamente.
O filme
deve ser revisitado com cuidado porque, voltando a assisti-lo 47 anos depois,
percebemos que sua narrativa possui diversas camadas de interpretação. Se nos
filmes anteriores da trilogia a paranoia era imediatamente política, aqui o
diretor mergulha no psiquismo de um indivíduo com a suspeita de que o mundo ao
redor pode ser falso e conspirador. Essa é a primeira camada narrativa de o
“Segundo Rosto”, que faz lembrar a paranoia de personagens como os de Jim Carey
em “Show de Truman” ou de Keanu Reeves em “Matrix”.
Uma
secreta organização (“A Companhia”) descobre uma maneira de fazer as pessoas trocarem
de identidade através de uma combinação de cirurgia plástica, alimentação
especial e treinamentos físicos.
O filme acompanha a trajetória
de Arthur Hamilton (John Randolph), um banqueiro bem sucedido e de meia idade,
porém frustrado: casado há muito tempo, viu sua vida perder a paixão e o
propósito, enquanto seus interesses artísticos foram esquecidos em uma carreira
de homem de negócios. O telefone toca e do outro lado está um homem que Arthur
considerava morto. Ele ofereça a oportunidade de “renascer”, transformar-se em
outra pessoa, mais feliz e realizada. Através dessa ligação, Hamilton conhecerá
“A Companhia”: uma extensa rede secreta capaz de simular a morte de uma pessoa
e fazê-la “renascer” com um novo rosto, identidade e profissão e recolocá-la na
sociedade.
Arthur retira as ataduras
cirúrgicas do rosto, olha para o espelho e vê seu novo eu: Tony Wilson (Rock
Hudson), um artista plástico bem sucedido com uma bela casa à beira do mar em
Malibu. Caminhando pela praia conhecerá Nora (Salome Jens), uma linda, livre e
excitante jovem. Um dia, Nora conduz Tony a uma festa repleta de jovens hippies
celebrando a liberdade em uma orgia regada a vinho e música. Tudo perfeito
demais até a paranoia dominar o espírito de Tony Wilson: e se todos ao redor
dele forem também “renascidos” sob o controle da Companhia, e, no final, não
existir livre-arbítrio? Sua paranoia faz Tony descobrir que continua
interiormente tão vazio quanto antes, resignado e agindo física e psiquicamente
como um autômato guiado por alguém ou alguma coisa.
A paranoia de uma década
“O Segundo Rosto” reflete o
clima político do auge da Guerra Fria na década de 1960. Após a crise dos
mísseis de Cuba em 1962 que deixou o mundo à beira de uma Terceira Guerra
mundial nuclear, a paranoia e incerteza começam a dominar os temas do cinema e
TV dessa década. Séries de TV como “O Prisioneiro” (1967) ou “O Agente da
Uncle” (1964-68), a série de filmes de James Bond etc. são alguns exemplos de
produções ficcionais que refletem um mundo onde aparentemente não existe
escapatória: CIA ou KGB, Pentágono ou Kremlin, capitalismo ou comunismo, tudo
parece ser um único sistema conspiratório.
Em um mundo sem escapatória, só
restaria fazer um pacto com o próprio Diabo (“A Companhia”) em busca da eterna
juventude. Essa é outra camada interpretativa de “O Segundo Rosto”: o filme se
inspira na célebre parábola de “Fausto” de Goethe, obra que inspirou filósofos
(Schopenhauer e Nietzsche), pintores ( Delacroix e Duchamp ) , compositores (
Gounod, Busoni , e Frank Loesser ) , escritores ( Oscar Wilde, Thomas Mann e
Alfred Jarry ) e cineastas ( Murnau e Istvan Szabo).
Tony/Arthur vai tentar “renascer”
como um jovem e boêmio artista, mas descobrirá da pior maneira possível que a
sua busca por liberdade e realização individual é uma mera aparência de um jogo
comandado pelos invisíveis cordões da Companhia. Não há pacto possível, e o
jogo é totalmente assimétrico.
Lembrando muito o argumento do
filme do diretor David Fincher “Vidas em Jogo” (The Game, 1997) onde o protagonista
se envolve com uma empresa de recreação que propõe um “jogo” que aos pouco
domina sua vida ao ponto de não saber onde termina a ficção e começa a
realidade, “O Segundo Rosto” tematiza essa dúvida paranoica que pode se
estender à própria vida: até que ponto as nossas opções e escolhas são
realmente livres e dirigidas unicamente pelo nosso livre-arbítrio?
Curioso é o paralelo que
implicitamente o filme faz com a sociedade de consumo onde os cidadãos são
transformados em consumidores, sob a ilusão de que todos os desejos podem ser
realizados pelo consumo e que supostamente o cliente sempre manda e tem a
liberdade de escolha em suas mãos. E Tony/Arthur (sempre chamado eufemisticamente
de “cliente” pela Companhia) vai descobrir essa verdade de uma terrível forma.
Sensibilidade gnóstica
Outro nível de interpretação
para esse filme é a sua evidente sensibilidade gnóstica: corporações demiúrgicas
das quais não sabemos onde suas influências começam e terminam, reflexões sobre
a identidade (ou sobre perda da identidade), paranoia como desconfiança radical
sobre a própria natureza da realidade e das relações humanas, discussões sobre
o livre-arbítrio colocando como pano de fundo uma realidade ilusória.
Assistindo ao filme, vem a nós a
lembrança de “Show de Truman”, “Matrix”, mas, principalmente, de “Cidade das
Sombras” (Dark City, 1998) onde aliens imemoriais mantém a humanidade aprisionada
em uma gigantesca cidade-laboratório dentro da qual as identidades dos
habitantes são arbitrariamente criadas e manipuladas pelos demiurgos
extra-terrestres.
Mas o tipo de paranoia explorada
pelo filme é de um tipo que se aproxima bastante do sistema do pensador
gnóstico Valentim (Professor gnóstico
nascido em Cartago em torno de 100 DC, aluno de São Paulo, quase se tornou papa):
se o iniciado começa a suspeitar de que os objetos ao redor são ilusórios,
como, então, poderá discernir entre a sanidade das suas percepções e a
insanidade que o mundo pretende rotulá-lo? Como separar o desejo do medo?
Através da paranoia.
Diferente da estrita concepção narcísica de paranoia – a ideia de que o
sujeito tem de que o mundo está focado em uma perseguição contra si próprio – a
concepção valentiniana está no limite entre a sanidade e a loucura, através de
uma desconfiança radical em relação ao mundo ao redor que está dado. Vivendo nesta espécie de limbo, corre o risco
de cair para um lado ou para o outro: tornar-se irremediavelmente insano ou
preparar-se para ocultar-se em uma lúcida loucura habitando um espaço entre a
claridade e a instabilidade emocional.
A revolta de Rock Hudson
Mas há ainda uma última camada interpretativa: a presença do ator Rock
Hudson em um papel totalmente diferente das comédias românticas feitas com
Doris Day que fizeram criar para ele a imagem de um galã másculo e sedutor em
Hollywood. Ao contrário, em “O Segundo Rosto” aqueles que estavam acostumados
com a imagem tradicional, se espantaram ao ver um Rock Hudson fazer um
personagem inseguro e reduzido a cacos emocionais ao longo da narrativa.
Há algo de auto-referencial no
filme: assim como vemos um protagonista que na ficção revolta-se contra a identidade
criada para ele pela sociedade e pela Companhia, da mesma forma na vida real Hudson
parece se rebelar contra o estereótipo que Hollywood criara até então para ele.
O que ainda reforça essa tese é que Rock Hudson era homossexual: sua vida
particular nada tinha a ver com a identidade atribuída a ele pelo cinema e fãs.
Parece que, ao supreendentemente convidá-lo a estrelar o protagonista desse
filme “bizarro e assustador” (assim Hudson se referia ao filme), o diretor Frankenheimer
deu a Rock Hudson uma excelente oportunidade para se rebelar.
Por isso, “O Segundo Rosto”
tornou-se um filme atemporal, embora com a marca datada de uma década
politicamente paranoica. Quanto mais o tempo passa, novas camadas
interpretativas podem ser descobertas nele, por ser um filme sobre a alienação
e os limites da ciência. Um filme que fala tanto para o nosso tempo como para a
sua própria época.
Ficha Técnica
- Título: O Segundo Rosto (Seconds)
- Diretor: John Frankenheimer
- Roteiro: Lewis John Carlino baseado em livro homônimo de David Ely
- Elenco: Rock Hudson, John Randolph, Salome Jens, Will Gear, Jeff Corey
- Produção: Joel Productions, John Frankenheimer Productions Inc.
- Distribuição: Paramount Pictures
- Ano: 1966
- País: EUA