Um relacionamento que se desintegra em dor, culpa e ressentimento no meio de um festival pagão de nove dias de sagração ao solstício do verão e à fertilidade, num vilarejo remoto no interior da Suécia. Como o terror se manifestaria em meio a tanto sol, brilho e cores de um campo aberto com flores campestres alucinógenas, festa, dança com homens e mulheres em túnicas brancas de linho cantando e tocando flautas? Esse é o “terror pastoral” (“folk terror”) do diretor e escritor Ari Aster ("Hereditário") no seu novo filme “Midsommar: O Mal Não Espera a Noite”, 2019. A ambição de Aster é criar um novo subgênero no terror: o Mal que vem à tona de dentro de nós mesmos, na incomunicabilidade dos relacionamentos, fazendo aflorar o nosso mal-estar diante da própria civilização, da morte, alteridade e do outro. E, quando determinados eventos convergem, encontramos o horror.
O terror no cinema talvez seja uma das formas simples de entretenimento: uma porta rangendo, uma edição inesperada ou o corte para o protagonista com o olhar fixo no contra-plano podem ser tudo o que precisamos para gritarmos e nos rendermos incondicionalmente ao horror.
Encontramos nesse gênero inúmeras variações e subgêneros. Mas, na essência, esse é o espírito dos filmes de terror.
Mas Ari Aster não segue o caminho fácil de uma fórmula consagrada. Prefere encontrar o Mal na incomunicabilidade de uma família (Hereditário, filme já analisado por esse Cinegnose – clique aqui) ou em um relacionamento desgastado no qual o casal vive em negação sem coragem de por um ponto final, como no seu segundo filme Midsommar - O Mal não Espera a Noite (2019).
Em Midsommar, Aster expõe seus personagens e seus drama interiores em um ambiente que parece ser a antítese dos cânones do gênero: não há portas rangendo, cantos escuros, névoa e atmosferas imersas nas trevas. Como o título em português nos informa, há uma espécie de, por assim dizer, “terror pastoral”: a constante luz do sol, flores silvestres, uma comunidade acolhedora vestindo túnicas brancas de linho num campo aberto sem nenhuma sombra ou recantos para o Mal se esconder ou planejar ataques furtivos.
Com seus dois filmes sequenciais (Hereditário e Midsommar), Ari Aster parece ter a pretensão de criar um novo subgênero: um terror interior produzido pelo desgaste diante de algum mal-estar, sempre vivido mas negado. Um mal-estar que envolve a própria civilização, nos termos colocados por Freud: a finitude, a fúria do mundo exterior e os nossos vínculos com outros seres humanos.
Ari Aster explora essas três condições do mal-estar como a fonte de todo terror: a morte, a alteridade e o outro. Além de levar ao limite a chamada suspensão da incredulidade, condição mínima para que o espectador mergulhe em uma narrativa ficcional: à beira de um relacionamento terminar, ele a convida para uma viagem à Suécia com seus amigos para participarem de algum tipo de Festival pagão do Solstício de Verão e celebração da Fertilidade...
Midsommar é um filme em que vemos o diretor no limite, quando o excesso de pretensão pode destruir a execução. Mas Ari Aster tem pleno domínio das convenções do gênero para inverte-las: que terror haveria num ambiente onde o sol nunca se põe (é o famoso “sol da meia-noite” dos países nórdicos) e todos são alegres e positivos num festival psicodélico de cores em profusão e drogas alucinógenas?
Finitude, alteridade e a existência do outro são o nosso inferno íntimo, que carregamos não importa para onde nos escondemos. Mesmo num lugar banhado pelo sol de verão, positividade e espiritualidade.
O Filme
Encontramos uma estudante americana chamada Dani (Florence Pugh) depois de sofrer uma devastadora tragédia familiar que envolveu assassinato e suicídio. Ela luta para reunir os pedaços da sua vida, enquanto lida também com a lenta desintegração de seu relacionamento com seu namorado chamado Christian (Jack Reynor).
Essa primeira parte do filme é lenta, mas fundamental para compreendermos o impactante final: Christian expressa, por assim dizer, uma “malevolência sem graça” – ele compreende o mau momento de sua namorada, diz até as coisas certas para tentar consolar Dani. Mas não tem a menor empatia. Na verdade, está à espera da primeira chance para cair fora de um relacionamento para ele sufocante.
Dani sabe disso, mas vê em Christian a única coisa que tem para buscar apoio. Os amigos de seu namorado também são estudantes de pós-graduação em Antropologia – Josh (William J. Harper) tem como objeto da sua tese os rituais pagão europeus de verão; Mark (Will Poulter) é o festeiro do grupo e Pelle (Vilheim Blomgren) veio de uma pequena comunidade na Suécia.
Com o relacionamento se despedaçando e vivendo um processo de negação e culpa, Christian acaba convidando Dani para uma viagem de estudos que o grupo fará para a Europa. Mais precisamente, para o remoto povoado de Halsingland, terra natal de Pelle.
Lá ocorrerá um festival de nove dias de sagração ao solstício do verão que envolve um folclórico culto rúnico de fertilidade. Talvez seja a chance para o casal de reconciliar... ou a oportunidade para Christian criar um pretexto para cair fora da relação. É dessa contradição que magistralmente Ari Aster fará o Mal e o horror vir à tona.
Mas que mal pode acontecer num vilarejo acolhedor, cheia de flores silvestres alucinógenas, bangalôs com tetos triangulares, suecos sorridentes em túnicas brancas, dançando, cantando e tocando flautas?
Pelle é o mediador e explica para os anciãos que seus amigos querem transformar em objeto de tese essa utopia solar, pagã e verdejante. Há esquisitices para todos os lados: no meio do vilarejo vemos um urso prisioneiro em uma grande gaiola de madeira, bandeiras e afrescos com signos rúnicos e afrescos que descrevem alguns rituais bem extravagantes – muitos desses ícones revelam coisas macabras que ocorrerão à frente na trama.
Sacrifício e feminismo – alerta de Spoilers à frente
Não espere uma fiel descrição dos rituais runas germânicos do Norte da Europa. Ari Aster fez muitas pesquisas sobre tradições e folclore sueco, além das tradições germânicas, inglesas e espiritualistas envolvendo o solstício do verão. É visível pela riqueza de detalhes oferecida ao espectador. Mas tudo com uma leitura bem livre e inventiva para tudo se adaptar à narrativa do filme. Runas com muita licença poética.
Lentamente as coisas vão ficando brutais ao percebermos o desprezo que aquela comunidade dá ao indivíduo: só existem grandes ciclos de nascimento e morte, os grandes símbolos e arquétipos dentro dos quais o indivíduo é apenas uma parte em um gigantesco devir cósmico.
Em outras palavras, são previstos sacrifícios humanos – a anulação e o sacrifício individuais são a única condição para que o Todo funcione e os ciclos se completem.
Estão colocados os elementos desse novo subgênero do terror que Aster tem a pretensão de criar: o mal-estar diante da finitude (como aceitarmos a nossa finitude sabendo que o Universo é eterno?), da alteridade (americanos tentando lidar com um cultura totalmente estranha) e do outro – um relacionamento em crise cujo processo de negação esconde a chegada do Mal.
Ironicamente, Dani encontra naquela estranha comunidade o apoio e compaixão que jamais teve em seu relacionamento em crise. O final selvagem de Midsommar mostra a explosão de tanta tristeza e raiva de Dani, soando como vingança.
Mas com forte tom feminista: o matriarcado daquela comunidade parece querer se vingar da ordem masculina e patriarcal Ocidental representado por aqueles jovens americanos – afinal, eles estão ali ou atrás de drogas, festas e sexo (ecos do terror gore de O Albergue?) ou pelo desejo de transformar aquela cultura em simples objeto de pesquisa PHD.
Dani, involuntariamente transformada em Rainha do Verão no Festival, terá que escolher nove vítimas para o sacrifício humano nas chamas. E adivinha quem Dani escolherá entre eles?
Ficha Técnica
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Título: Midsommar: O Mal Não Espera a Noite
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Diretor: Ari Aster
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Roteiro: Ari Aster
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Elenco: Florence Pugh, Jack Reynor. Vilhelm Blomgren, William Jackson Harper, Will Poulter
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Produção: Proton Cinema, B-Reel Films
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Distribuição: Paris Filmes
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Ano: 2019
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País: EUA
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