Outrora símbolo
da indústria automobilística dos EUA e agora abandonada e repleta de
desempregados, Detroit tornou-se nesse século cenário de uma série de filmes
que transitam entre o gótico, o terror e o mistério. “Corrente do Mal” (“It
Follows”, 2014) é mais um filme que tem a cidade como cenário: fantasmas de
pessoas mortas assombram não necessariamente pessoas da cidade, mas
adolescentes do subúrbio que fazem sexo – podem ser “contaminados” pelo Mal
transmissível sexualmente. Uma espécie de maldição no qual a vítima passa a ser
perseguida por entidades assassinas. E a única forma de se livrar do Mal é
fazendo sexo com outra pessoa para que a corrente continue. O diretor David
Mitchell leva ao paroxismo a nova representação do Mal iniciada no cinema com a
disseminação dos zumbis: o Mal não mais determinado ou centrado numa
monstruosidade, mas agora indeterminado, mutante e que se dissemina de forma
viral, exponencial e catastrófica. Há uma ironia em eleger Detroit como cenário
dessa nova ontologia do Mal – os fatores socioeconômicos que levaram a
decadência da cidade são os mesmos que fizeram emergir essa nova sensibilidade
da maldade. Filme sugerido pelo nosso leitor Felipe Resende.
A cidade de Detroit, EUA, outrora símbolo do
progresso técnico-industrial com as grandes fábricas de automóveis, hoje é o símbolo
pós-moderno dos resultados da globalização e desindustrialização – as grandes
fábricas foram para outros países, enquanto Detroit se tornou vazia, com casas
em ruínas e indigentes e desempregados vagam sem destino nas ruas.
Curiosamente nesse século XXI, Detroit também
se tornou cenário de diversos filmes, em sua maioria transitando entre o
gótico, o terror e o mistério combinado com nostalgia e estética vintage: Amantes Eternos (2013) onde um vampiro
milenar vive recluso cercado de discos de vinis guitarras antigas e
equipamentos de som analógicos, amaldiçoando YouTube e redes sociais;
Lost River (2014) com uma
estética vintage que emula Veludo Azul
de David Lynch e filmado em Detroit como uma cidade fictícia em ruínas na qual
os poucos moradores sofrem uma espécie de maldição que os impedem de sair de
lá; O Mistério da Rua 7 (2010) onde
demônios surgem na Detroit do século XXI para punir a humanidade.
E agora temos também Corrente do Mal (It Follows,
2014), filme indie de David Robert
Mitchell, que mistura terror, a decadência urbana da cidade e muita nostalgia
vintage. Com os incentivos fiscais distribuído pelo Estado de Michigan, o
governo tenta agitar um pouco os negócios locais. Mas a atração mesmo são as
ruínas transformadas em atmosfera sombria, como faz Corrente do Mal.
Mitchell retorna a alguma época nostálgica
dos subúrbios de classe média dos anos 70-80 com seus adolescentes em bikes BMX
- a não ser por um estranho dispositivo de e-book que uma adolescente usa em
forma de concha, para ler Dostoievski, dando uma estranha ambiguidade temporal.
O diretor também mexe com as convenções do
gênero terror dos filmes dessa época como Noite
dos Mortos Vivos ou Hora do Pesadelo.
Principalmente a questão do sexo, elemento chave na descoberta adolescente, mas
que nos filmes de terror o elemento desencadeador do Mal: quem faz sexo, morre!
Porém, Mitchell cria uma representação
ambígua para a sexualidade: é o veículo do Mal (numa óbvia referencia óbvia a
AIDS, motivo do clichê moralista do sexo no gênero terror). Mas, ao mesmo
tempo, pode ser uma forma de escapar do perigo – pelo menos momentaneamente.
Mas é do ponto de vista da Cineteratologia (o
estudo das representações da monstruosidade e do Mal no cinema) que Corrente do Mal vai abrir um novo campo
para o gênero: uma ambígua e indeterminada representação do Mal.
Se em postagens
anteriores este humilde blogueiro discutiu a tese da mudança da ontologia do
Mal no cinema a partir da chegada da praga zumbi, criando a chamada
“monstruosidade informe” (ao contrário da “disformidade” clássica), em Corrente
do Mal temos o paroxismo dessa informidade: o Mal que se dissemina nesse mundo
através do sexo de uma forma não apenas viral – é indeterminado, cuja maldição
dissemina entidades perseguidoras cuja natureza é objetiva/subjetiva,
visível/invisível criando situações de terror e tensão pela própria
imprevisibilidade narrativa.
O Filme
Corrente do Mal acompanha Jay (Maika Monroe), uma adolescente essencialmente
tímida e taciturna que mora em um subúrbio arborizado de Detroit junto com seus
amigos adolescentes, fãs de filme sci-fi e terror B dos anos 1950.
A narrativa é
constantemente pontuada pela trilha musical com sintetizadores vintage dos anos
1980 do compositor chamado Disasterpiece – propositalmente emulando a trilha
dos filmes de terror dessa época, para criar um distanciamento irônico
necessário para o filme fazer uma metalinguagem dos clichês do gênero.
Até que um dia
perde a virgindade com seu namorado Hugh (Jake Weary), dentro de um carro no
estacionamento de uma fábrica abandonada da cidade – o filme faz uma crítica
social com a oposição entre o subúrbio das classes médias com a cidade em
ruínas e habitada por desempregados e miseráveis.
Para em seguida
ser sedada com clorofórmio e raptada pelo namorado que a amarra em uma cadeira
de rodas num estacionamento abandonado para lhe revelar um terrível segredo:
ela é a mais recente vítima de algum tipo de maldição sexualmente transmissível.
A partir daquele momento será perseguida por criaturas parecidas com zumbis que
tentarão matá-la da pior maneira possível.
A única forma
de passar esse fardo para outra pessoa é através do sexo. Mas terá que ser
solidária com a próxima pessoa da corrente pois, se ela for morta, as entidades
assassinas retornarão atrás dela.
O clichê da decisão errada
Corrente do Mal ainda explora outro clichê dos filmes de terror: o fato dos
protagonistas tomarem as decisões mais erradas e inverossímeis possíveis,
desembocando nas clássicas cenas de susto, terror e morte.
Os adolescentes
decidem dar tiros nas criaturas-zumbis – eles até caem, mas levantam-se como se
nada tivesse acontecido. Ou, numa estratégia ao estilo Scooby-Doo, ainda tentam
eletrocutar uma piscina com secadores de cabelo e monitores de TV para criar
uma espécie de ratoeira para matar as entidades. Tudo inverossímil e inútil
numa espécie de exercício metalinguístico dos clichês do terror.
Essas criaturas
são lentas, porém determinadas. E o que é pior: poderão surgir de qualquer
lugar nos grandes espaços nos quais os planos de câmera inserem os
protagonistas, planos que lembram muito os do filme Paris, Texas de Win Wenders – influência admitida pelo diretor.
A criatura
poderá ser qualquer uma em uma multidão ou algum extra que esteja passando pela
cena. Propositalmente, David Mitchell inseriu muitos extras nas cenas para
criar essa constante tensão no espectador.
O detalhe é que
essas criaturas-zumbis somente serão visíveis pelos amaldiçoados, embora os
outros possam ver e sentir os efeitos físicos dessas entidades perseguidoras
invisíveis.
A nova ontologia do Mal
Em postagens
anteriores, este humilde blogueiro vem expondo a tese de que desde a chegada
dos zumbis, ocorreu uma mudança na ontologia do Mal e da monstruosidade no
cinema. Monstros e as representações do Mal tornaram-se instáveis, informes,
poli-dimensionais, mutantes. Suas manifestações ocorrem de forma
indeterminadas, dissipativas, caóticas, exponenciais e virais – clique aqui.
Bem diferente
das representações clássicas, bem determinadas num monstro (Drácula, O Monstro da Lagoa Negra etc.),
num cientista louco (Dr. Frankenstein ou Rowang, o cientista do filme Metrópolis) ou ainda um assassino serial
do tipo Jack, O Estripador. O máximo de complexidade dessas representações do
Mal aconteciam nas divisões de personalidade, como em Dr Jeckyll and Mr Hyde.
Corrente do Mal parece alcançar o paroxismo dessa nova ontologia do Mal: uma
maldição que consegue chegar a esse mundo através do sexo (e na combinação
adolescência e terror torna-se explosivo) criando uma disseminação não só viral
e exponencial – as criaturas perseguidoras são mutantes, informes, cujas formas
muitas vezes são projeções do próprio psiquismo das vítimas. São determinadas
(caminham em linha reta e nadas as impede) e indeterminadas – nunca se sabe de
onde surgirão. Parecem estar em algum lugar incerto entre a entre a vigília e a
alucinação.
Mas há em Corrente do Mal uma profunda ironia. As
raízes sócio econômicas dessa nova ontologia do Mal (todo imaginário ou
sensibilidade só ganha sentido em determinadas condições históricas) estão na
globalização e financeirização das sociedades – cuja instabilidade e liquidez
valoriza o paradigma de princípios como a fragmentação, mutabilidade, incerteza
e neutralização ética e moral – a perversidade do Mal não está em alguma
imoralidade, mas na sua natureza neutra de disseminação viral.
O irônico de tudo isso é que o filme tem como
verdadeiro protagonista a cidade de Detroit, que se transformou em cenário cinematográfico.
Uma cidade icônica por ser vítima desse movimento socioeconômico que dá sentido
à nova ontologia do Mal no cinema.
Ficha Técnica
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Título: Corrente do Mal (It Follows)
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Diretor: David Robert Mitchell
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Roteiro: David
Robert Mitchell
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Elenco: Maika Monroe, Jake Weary, Keir Gilchrist, Lili Sepe, Daniel
Zovatto
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Produção: Nothern Lights Films, Animal Kingdom
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Distribuição: Radius-TWC
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Ano: 2014
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País: EUA
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