segunda-feira, agosto 27, 2018
Wilson Roberto Vieira Ferreira
“Hereditário” (“Hereditary”, 2018) é
um filme singularmente aterrorizante. Ele não cava apenas nos abismos sombrios
do nosso inconsciente. Explora
principalmente o fenômeno bem atual da incomunicabilidade familiar e do
processo psíquico de negação. Dois plots clássicos do gênero são explorados: o
Mal que ameaça a união familiar e o elemento narrativo do “convite” através do
qual o Mal pode ter a licença para entrar em nossas casas e pavimentar o
caminho ao inferno. Mas o singular em “Hereditário” é que o Mal vem do interior
do próprio lar:uma família que se sente
desconfortável com exposições francas de qualquer coisa que possa revelar o
interior um ao outro. Silêncios e mecanismos de negação encobrem traumas do
passado que pode retornar como uma demoníaca maldição.
O filme Hereditário
(Hereditary, 2018) é sobre demônios,
sejam eles reais ou internos, aqueles que estão na mente de cada um.
O filme de estreia de Ari Aster (escreveu e dirigiu) é
uma daqueles filmes inspirados em diversos clássicos (O Bebê de Rosemary, O Exorcista, Horror em Amityville, O Iluminado
etc.) que se conecta com a essência do gênero do horror e do fantástico: o
estranho, o aterrorizante e o bizarro como metáforas daquilo que a sociedade,
através das instituições, Ciência e Linguagem, tenta exorcizar – aqueles três
elementos freudianos que formariam as raízes do mal estar da civilização: a
finitude, a fúria do mundo exterior e os vínculos com os outros seres humanos.
Aquilo que certa vez Sartre definiu como o Inferno: o outro.
O medo e o mal
estar que não é verbalizado, é reprimido ou ignorado, relegado ao inconsciente,
ao esquecimento ou ao passado. Mas que pode retornar como uma maldição ou um
sintoma.
Hereditário começa como um psicodrama de uma
família, os Graham, um clã que parece amaldiçoado por uma má sorte e também uma
disposição genética para vários tipos de doenças mentais. Uma família que se
sente desconfortável com exposições francas de qualquer coisa que possa revelar
o interior um ao outro. Silêncios e processos de negação, eventualmente
quebrados por monólogos explosivos da mãe, constroem o quadro de uma família na
qual a incomunicabilidade é a fresta por onde cresce o Mal – tragédias e
recorrentes doenças mentais serão metáforas de algum tipo de maldição real que
aos poucos vai sendo revelada na narrativa.
Esse tema da família ameaçada pelo Mal é um plot por
excelência dos filmes de terror: a união familiar ameaçada por alguma entidade
ou monstro. Mas, a novidade em Hereditário
é que o Mal que desagrega vem do interior da própria família, de um passado
incompreendido cujos familiares parecem ter virado às costas, preocupados que
estão com seus próprios afazeres ou vidas pessoais.
A chave narrativa é logo dada no início, quando Anne
Graham, no serviço funerário de sua mãe, diz que a falecida era “uma mulher
muito reservada e privada... ela tinha rituais privados e amigos privados”. É a
senha para sermos introduzidos em algum mistério cuja força está presente
naquela família, latente e ameaçador. Enquanto o patológico processo de negação
da família parece se agravar a cada tragédia.
A família como geradora do próprio Mal que a destrói é um
tema religioso, bíblico, como a maioria dos temas do gênero terror: demônios
que ficam em uma família migrando de uma pessoa para outra estão presentes em
vários livros bíblicos como em Êxodo (Deus visita a maldade dos pais nos filhos
até a quarta geração...) ou Provérbios e Tiago – pais que fizeram votos com
demônios no passado e, por isso, têm direito legal de agirem.
Ao lado disso, Hereditário
aproxima do tema da doença mental como alguma coisa congênita ou geneticamente
hereditária, como uma nefasta herança familiar que paira como maldição sobre as
gerações futuras. Se no passado a doença mental era considerada contagiosa,
perigosa e até criminosa, hoje ela foi colocada no âmbito da genética e
hereditariedade – o discurso racional e científico que para os Graham será mais
uma forma de negação.
Negação que fragmenta e isola a família, que estará
pronta para receber uma ajuda, um convite. Aquilo que pavimenta as estradas que
levam para o Inferno.
O Filme
Sigilo, culpa e angústia cercam a família Graham. A mãe
de Annie (Toni Collete) faleceu de câncer, sacudindo a aparente harmonia entre
ela e marido Steve (Gabriel Byrne), e dois filhos adolescentes: o solene Peter
(Alex Wolff) e a estranhamente sinistra Charlie (Milly Shapiro) – outro
clássico do gênero terror: ela é capaz de criar brinquedos a partir de
materiais mórbidos como cabeças de pássaros...
Aos poucos vamos figurando a incomunicabilidade daquele
clã: Annie passa o tempo em sua oficina tentando finalizar uma exposição de
“dioramas” (miniaturas que parecem retratar a vida da sua própria família e
suas vidas emocionais), enquanto o marido desempenha o papel do estoico marido
bondoso. Peter deriva em sua vida com seu olhar triste em festas consumindo
maconha. E a menina Charlie, com o seu olhar morto como uma estátua, capaz de
comer uma barra de chocolate ao lado do caixão da própria avó, enquanto
obsessivamente faz desenhos em um pequeno caderno.
Todos tentam se recuperar da perda da matriarca da
família, todos fechando-se em si mesmos.
As erupções regulares de estranheza, surrealismo e
pesadelo acontecem ao longo do filme. Mas quanto mais ocorrem, ainda mais os
Graham tentam ignorar os traumas passado ou encobri-los.
Paradoxalmente, Hereditário
é um dos filmes mais violentos dos últimos tempos (corpos mutilados, queimados,
assassinatos, sangue), ao lado de sequências lentas, diálogos em voz baixa em
cenários em luz fraca, meia-luz, capaz de fazer o espectador esperar por coisas
terríveis que nem sempre acontecem – o leitor observará como a cada objeto
pontiagudo usado por qualquer razão pelo personagem, há sempre um sinistro
close-up.
Por isso, Hereditário
faz esse jogo em confundir a realidade com a percepção, assim como A Bruxa (The Witch, 2015): o Mal está apenas em nosso inconsciente, ou de
fato há uma maldição demoníaca?
O “convite”
Vemos os Grahams deitados na cama, deprimidos ao ponto da
paralisia. Vemos eles agarrando um ao outro, escondendo-se dentro de si,
prejudicando a si mesmos e aos outros. Há cenas nas quais vemos como
brutalmente as pessoas falam um com o outro, dizendo coisas profundamente
dolorosas que são tão mesquinhos e egoístas como elas são verdadeiras, causando
danos que nunca poderão ser desfeitos. Estão sofrendo tanto que precisam ver
alguém sofrendo ainda pior.
Essa bizarra combinação de incomunicabilidade e negação
dos Graham fará surgir o elemento do “convite” – desde o terror clássico, o Mal
só pode entrar na família através da aceitação de um convite.
Após flertar com grupos de autoajuda (sempre a busca de
uma ajuda externa, nunca encontrada entre os familiares), um encontro “casual”
fará encontrar uma espiritualista recém-convertida chamada Joan (Ann Dowd, a
“Tia Lídia” da série The Handmaid’s Tale)
que demonstra para ela uma prática de contato com um familiar falecido. Que,
claro, tentará reproduzir em sua casa diante dos atônitos Peter e o marido
Steve.
Será o embarque sem retorno para o Inferno. É quando Hereditário deriva do estranho, do
bizarro e do aterrorizante, para a loucura final.
Por isso Hereditário é um filme singularmente
aterrorizante: ele não cava apenas nos mais profundos e escuros abismos dos
nossos pesadelos no inconsciente. O filme também explora o fenômeno bem atual
da incomunicabilidade familiar e o processo psíquico de negação.
Familiares que se transformam em meros
sobreviventes que se agarram em qualquer destroço que surja num mar revolto:
sejam os discursos da autoajuda ou, na grande metáfora do filme, Joan, a
espiritualista que estenderá o elemento decisivo do “convite”.
Ficha Técnica
Título: Hereditário
Diretor: Ari Aster
Roteiro: Ari
Aster
Elenco:Toni
Collette, Milly Shapiro, Gabriel Byrne, Alex Wolff, Ann Dowd
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Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, organizado pelo Prof. Dr. Ciro Marcondes Filho e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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