sábado, outubro 12, 2019

Filme "Bacurau" perde no cabo de guerra forma versus conteúdo



De um lado as atrizes Sonia Braga e Bárbara Colen. E do outro Udo Kier, ator notório nos gêneros gore e nazi-exploitation. De um lado a urgência da dupla de diretores Mendonça e Dornelles em expressar a atual crise sócio-política brasileira. Do outro, as demandas dos cânones do gênero para o mercado internacional. O aclamado filme “Bacurau” (2019) já foi suficientemente analisado, dissecado e, principalmente, sobrecodificado como um libelo libertário em tempos de obscurantismo. Porém, é necessário ver “Bacurau” por ele mesmo, como narrativa fílmica. E, principalmente, como o público não-intelectualizado interpreta o filme. Por isso, este “Cinegnose” preferiu assistir ao filme no circuito Spcine em um CEU de São Paulo, com um público não-cinéfilo. E o público refletiu a tensão entre forma (os cânones do gênero) e conteúdo (a crise brasileira) – a derrota no cabo de guerra forma X conteúdo para o maniqueísmo e soluções mágicas do gênero fílmico. Catarse da punição dos “políticos corruptos”, desvalorização da política e a “pílula mágica” que faria o povo sair da letargia é o que ficou na recepção de “Bacurau” para o distinto público. Para dialogar com o filme “Bacurau” é necessário também assistir ao filme cearense “O Clube dos Canibais”, produção que venceu esse cabo de guerra: luta de classes e “capitalismo gore”.


O filósofo alemão Hegel dizia que a coruja de Minerva só levantava voo ao entardecer, numa alusão à esperança de que a Razão sempre ganha força e levanta voo em momentos de crise e obscurantismo. 
E no Brasil, ao lado das corujas, quem também levanta voo é o bacurau, pássaro de hábitos noturnos. Ao contrário da coruja que possui garras e bico fortes para capturar presas como tradicional ave de rapina, o bacurau conta apenas com os seus voos acrobáticos e ágeis.
“Não é um passarinho, é um pássaro!”, reage um dos personagens ao pouco caso que uma suposta turista faz à ave que dá nome a uma pequena cidade no oeste de Pernambuco no aclamado filme Bacurau (2019).
Ao lado das lendas sertanejas e indígenas que cercam esse predador noturno, é mais um elemento de um filme que, até aqui, já foi super interpretado, analisado, dissecado etc. E não é para menos: Bacurau quer dar ao espectador um trabalho extra de descompactar seu subtexto, que parece densamente protegido por multicamadas de alusões, referências. Sejam dos cânones de gêneros cinematográficos que se misturam, sejam simbolismos ou alusões políticas do Brasil atual.


                  Alusões de um quadro político obscurantista, em crise. Mas se Hegel imaginava a coruja de Minerva como alegoria da Razão que nos salvaria, os co-diretores Kleber Mendonça e Juliano Dornelles imaginam o acrobático bacurau. 


Corujas e bacurais

Essa comparação que esse humilde blogueiro quer fazer entre corujas e bacurais, não é meramente estética. Entre as duas aves há uma distância entre dois espíritos do tempo bem diversos – lá nos séculos XVIII-XIX a crença na Razão como caminho para superarmos a barbárie. Enquanto aqui no início desse século, o niilismo pós-moderno – a descrença na política, a crise da democracia, polarização e a perda de sentido em qualquer solução política mediada. 
Em cada sequência, Bacurau passa um senso de urgência pelo acúmulo de alusões e projeções futuras de um país destroçado: dentro de uma casa vazia vemos na tela da TV uma transmissão ao vivo de execuções públicas no Vale do Anhangabaú em São Paulo, num indício de que a pena de morte tornou-se constitucional e show televisivo; ruínas de uma escola municipal à beira de uma estrada de terra na qual vemos caixões espalhados; um alto-falante faz a contabilidade final dos mortos após a batalha contra os inimigos, listando os nomes das vítimas do povoado de Bacurau, entre elas “Marielle Franco” e “Maria Letícia”...
Futuro e presente se fundem, criando uma atmosfera hipo-utópica – projeta-se no futuro de forma hiperbólica as mazelas do presente. Na verdade, o futuro não existe, é apenas uma tela paródica ou cínica do presente.
É nesse ponto que o cinema de gênero no qual tenta se inscrever Bacurau vai criar uma tensão entre forma e conteúdo. Logo na primeira cena temos uma alusão de gênero: o caminhão cheio de caixões é uma referência ao Por um Punhado de Dólares (1964), clássico western espaguete de Sergio Leone – estratégia narrativa para preparar o espectador para a violência que está por vir.
Iconografias do gore (cabeças decepadas ou explodidas por tiros de bacamarte), sci-fi (um drone que pode ser um disco voador ou vice-e-versa) e realismo fantástico compõem as incursões de Bacurau no cinema de gênero.
                  Por isso, Mendonça e Dornelles inventaram uma cidade para servir de alegoria ultracínica. Uma espécie de Sucupira de “O Bem Amado” de Dias Gomes, traduzido por um meta-pastiche do gore de Tarantino ou Robert Rodriguez – não há como ao final do filme deixarmos de pensar: “aqueles gringos mexeram com os nordestinos errados. Assim como em “Machete”, o “mexicano errado” é o pesadelo dos vilões gringos que não sabem com quem se meteram.



Essa é a questão central a ser discutida em Bacurau: a urgência política que furiosamente tenta se sobressair em Bacurau parece ser contida ou mesmo ressignificada pelos cânones de gênero – cuja origem está no maniqueísmo construído pelo conflito dos três polos: os turistas norte-americanos que pretendem se divertir num safari humano, o povo unido de Bacurau e um prefeito corrupto.
Tensão entre forma e conteúdo. Problema da qual escapa outra produção nordestina ao mesmo tempo de gênero e com forte crítica social: O Clube dos Canibais (2018) do cearense Guto Parente – elite cearense, luta de classes e terror gore no qual o prato principal dos ricos são os subalternos das suas casas e empresas.
Para discutirmos essa questão central em Bacurau (a tensão da forma versus conteúdo), será necessário um diálogo entre esses os dois filmes.

O Filme

Estamos no “oeste de Pernambuco daqui a alguns anos”, como nos informa a narrativa. Teresa (Bárbara Colen) retorna a Bacurau para o velório de sua mãe, Carmelita (Lia de Itamaracá), uma inspiradora matriarca querida na cidade.
                  Bacurau é uma cidade que teve o seu progresso limitado por um prefeito corrupto, Tony Júnior (Thardelly Lima) que represou o suprimento de água potável. Diante da indiferença dos moradores que se trancam nas suas casas, Tony Jr. ainda tem a cara de pau de vir pedir votos para sua reeleição, em troca de um caminhão cheio de livros para a escola (livros num basculante que são despejados como lixo) e mantimentos com prazos de validade vencidos.



Os primeiros sinais de que algo de anormal está ocorrendo começam a aparecer: o professor descobre que a cidade desapareceu de todos os mapas e imagens de satélite on line. Logo depois, a médica Domingas (Sônia Braga) descobre entre os mantimentos “doados” pelo prefeito, remédios de tarja preta que parecem simples analgésicos. Mas na verdade, são ansiolíticos para deixar todos na cidade “lesados”.
Um casal de motoqueiros forasteiros (Kerine Teles e Antônio Saboia) passa pela cidade, causando desconforto em todos, porque um pouco antes os moradores descobrem que ocorreu uma inexplicável chacina que vitimou toda a família de uma fazenda nas proximidades. 
Um violeiro toca um repente entre tom agressivo passivo e ironia, causando desconforto nos forasteiros que saem da cidade. O que deixa claro para o espectador que a união e resistência serão as armas daquela gente para vencer os inimigos – é o clima geral de resistência presente em produções anteriores como O Som ao Redor e, principalmente, Aquarius.
O filme torna-se cada vez mais sinistro com a chegada do caminhão pipa com água potável com furos de tiros, fazendo vazar o precioso líquido. E cadáveres em série nas sequências posteriores, (incluindo crianças) e mais dois moradores mortos por estarem no lugar errado na hora errada. 
Até aqui, o filme foca principalmente nos moradores de Bacurau, suas interações e flashs da história local proporcionadas pelas fotos das épocas do cangaço, presentes no museu da história da cidadezinha. E, principalmente, no retorno de Teresa e em Domingas, mostrando seu cotidiano como médica da pequena cidade.
                  Tudo muda quando entra em cena Michael (Udo Kier), o líder do grupo de turistas que está naquela região em busca de adrenalina e excitação: participar de um safari humano para assassinar seres humanos por puro esporte. “Tecnicamente, não estamos aqui”, afirma Michael para o grupo, garantindo que o mundo não saberá da sádica disputa que terá início. Aliás, Bacurau nem mais existe nos mapas...



A partir desse ponto, Mendonça e Dornelles optam pelo cinema de gênero: a dupla Teresa e Domingas perde a relevância na narrativa para as ações e linhas de diálogo serem monopolizadas por Michael. Udo Kier é um ator conhecido e veterano no gênero gore e nazi exploitation no mercado cinematográfico.
Na verdade, a narrativa não escolhe um personagem central ou uma heroína, como esperamos: os moradores respondem coletivamente, com a ajuda de Lunga (Silvero Pereira), uma espécie de cangaceiro/líder de milícia fora da lei. Escondido da polícia, resolve voltar à cena para enfrentar os yankees assassinos.

A tensão forma versus conteúdo – alerta de Spoilers à frente

Quanto mais a narrativa avança, mais vamos percebendo a tensão entre os cânones do gênero e a urgência do conteúdo sócio-político que a dupla quer expressar. Alguns focos dessa tensão narrativa:
(a) Há um claro maniqueísmo: o cínico Michael e o grupos de norte-americanos sedentos por tiros e adrenalina versus a comunidade unida de Bacurau – um povo simples, puro, com personagens folclóricos como o violeiro. De um lado a tradição popular (porém, mediada por celulares e tablets usados na escola pelo professor), e do outro a tecnologia militar com drones e GPS.
Não há diferenças ou estrutura de classes. Há apenas os vilões (o ex-nazista Michael, que resolveu se tornar um mercenário) e o prefeito corrupto que sufoca Bacurau. Estranho para um filme tão incensado pela esquerda: não há luta de classes ou contradições.
Diferente de Clube dos Canibais: um filme gore, mas que foge do maniqueísmo ao representar o canibalismo como a metáfora da própria luta de classes brasileira.
                  (b) Por isso, o filme reflete seu espírito do tempo: o niilismo político. A figura corrupta do prefeito Tony Jr. é a própria depreciação da Política, diariamente bombardeado pelos telejornais em tempos de Lava Jato – Política é intrinsecamente corrupta e imoral. Discurso que fez parir o “não-político” Bolsonaro, o comediante de direita Zelenskly na Ucrânia ou um ex-apresentador de reality show Donald Trump.



(c) A luta de classes é substituída pelo preconceito de classes. A dupla de motoqueiros que dá ajuda logística aos mercenários americanos são assessores do poder Judiciário. São de São Paulo e Rio de Janeiro e se consideram tão melhores quanto os americanos. Afinal, também são brancos e racialmente superiores aos nordestinos daquele fim de mundo.   
Claro, aqueles necro-turistas somente estão ali após uma negociação com o prefeito corrupto, que pensa nos dólares que irá ganhar. Não há estruturas de exploração. Há apenas um político corrupto que pretende se livrar daquela cidade que é uma pedra no seu sapato.
Em outras palavras: toda tragédia que observamos parece ser mais produto do preconceito do que de uma estrutura perversa de exploração – a estrutura do próprio capitalismo.
Mais uma vez, o contraste é o filme Clube dos Canibais, onde a luta de classes e a exploração são o tema central – por assim dizer, o filme figura um “capitalismo gore”.
(d) Se de um lado há uma depreciação da política e a despolitização dos conflitos (tudo é apenas resultado do preconceito e intolerância), também há uma despolitização da própria consciência de classe com uma espécie de pensamento mágico que parece impulsionar a luta dos moradores.
Há uma relação mágica e totêmica (de “totemismo”, a crença na existência de um parentesco mítico entre seres humanos e animais) entre os moradores e o pássaro bacurau. Por isso são corajosos, unidos e destemidos – mitologia criada pelo Museu Histórico da cidade, elemento central da narrativa.
Mas sua coragem e predisposição a matar vem mesmo da ingestão de uma droga forte psicotrópica – se Tony Jr. quer deixar os moradores “lesados” com um remédio tarja preta, Bacurau tem o antídoto que os encoraja para a luta.
                  Pode até ser um elemento narrativo do realismo fantástico latino-americano inserido nos cânones de um gênero internacional. Porém, colocado ao lado de um prefeito corrupto e bandidos preconceituosos e racistas, temos um quadro niilista de desvalorização da Política – só resta a solução químico-mágica para criar uma revolução.


CEU Butantã - Spcine

“Bacurau” para não-cinéfilos

Um quadro não muito diferente do discurso martelado diariamente pela mídia corporativa: o povo deve se manter unido contra os políticos corruptos. Esse foi o mote das domingueiras de bolsomínios com camisetas da CBF pedindo punição aos corruptos e uma intervenção salvadora de não-políticos – os militares. 
Por isso, esse humilde blogueiro decidiu assistir ao filme Bacurau no CEU Butantã em São Paulo, dentro do circuito Spcine. Ao contrário das salas de cinema cults com cinéfilos sobrecodificando o filme, seria mais interessante ver a reação do público menos intelectualizado.
O resultado foi o que mais temia: involuntariamente Bacurau reforçou o niilismo anti-política da grande mídia. A sequência final do castigo imposto pelos moradores ao prefeito Tony Jr. (seminu, colocado amarrado num jegue, com uma máscara de lobisomem, condenado a vagar no deserto sob o sol a pino) foi catártica para a plateia.
Duas frases este editor do Cinegnose mais ouviu na saída da sala de projeção: “é isso que esses políticos merecem!”... e “o brasileiro tá precisando dessa droga pra ficar mais corajoso!”, numa alusão ao “psicotrópico forte”, como descreve a personagem Domingas.
Sem querer fazer teorias conspiratórias, talvez seja por isso que a Globo Filmes assinou a co-produção de Bacurau: no final, a narrativa do filme dá uma continuidade ao discurso diário dos telejornais da rede. 
No cabo de guerra entre as convenções do gênero e a urgência da denúncia do atual cenário político brasileiro, Mendonça e Dornelles perdem para a onipresença nazi-exploitation de Udo Kier.
Parece que a coruja de Minerva de Hegel vai levar mais um tempo para levantar voo no crepúsculo brasileiro. 



Ficha Técnica 


Título: Bacurau
Criador: Juliano Dornelles e Kleber Mendonça Filho
Roteiro: Kleber Mendonça e Juliano Dornelles
Elenco: Barbara Colen, Thomas Aquino, Sônia Braga, Udo Kier, Thardelly Lima, Silvero Pereira, Lia de Itamaracá
Produção: Globo Filmes, CinemaScópio Produções, Arte France Cinéma, Símio Filmes
Distribuição: Vitrine Filmes
Ano: 2019
País: Brasil, França

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