“The Human Race” (2013) é o tipo de filme para ser assistido fora da binaridade do “gosto/não gosto”. Portanto, um filme para cinéfilos aventureiros. E com estômago para encarar o horror “gore”. O diretor e roteirista Paul Hough quer discutir a natureza humana: somos intrinsecamente maus, bastando uma oportunidade para a besta-fera em cada um de nós escapulir? Ou será que são as condições materiais nas quais estamos prisioneiros que nos induzem ao mal? Oitenta pessoas são abduzidas e despertam num circuito no qual devem correr desesperadamente pelas suas vidas, todos contra todos. A única maneira de sobreviver é não ser ultrapassado, e ter uma morte terrível. O veredito sobre a. questão da condição humana em “The Human Race” é gnóstica: o universo como uma arena mortal que nos condena à ignorância e a incerteza. Gerando propositalmente o medo, a angústia e ansiedade, os motores da violência e do egoísmo que fazem o deleite dos deuses demiurgos que apenas observam. Filme sugerido pelo nosso sagaz colaborador Felipe Resende.
De todos os animais do planeta, comparativamente os filhotes humanos são aqueles que nascem completamente indefesos e dependentes: nascemos nus, carecas, sem dentes ou presas, pequenos, lentos, descoordenados, quase cegos, sem conseguir sustentar a própria cabeça ou permanecer ereto.
Nascemos totalmente dependentes de sistemas (sejam familiares, sociais, institucionais etc.) que, ao crescermos, se alcançarmos um intelecto razoável, passamos a criticá-los e coloca-los em xeque.
Não é à toa que a filosofia gnóstica alimenta sérias desconfianças em relação a esse cosmos no qual nascemos: indefeso e impotente desde os primeiros instantes da existência, o indivíduo é presa fácil de um sistema no qual se ele não der as respostas comportamentais corretas, será condenado como pecador ou criminoso.
Essa condição ontológica humana começou no próprio Paraíso bíblico que, em muitos aspectos, pode ser considerado o primeiro reality show da História. Só que, naquela oportunidade, apenas para o deleite de um único espectador: o Deus Demiurgo do Velho Testamento – criou Adão e Eva, incapazes de distinguir o bem e o mau e ignorantes da sua origem e destino. Uma situação muito análoga ao nascimento de cada bebê humano há milhares de anos.
O Deus/Demiurgo criou a tentação (os frutos da árvore do conhecimento) e apenas ficou à espera da reação de um casal que, certamente, buscaria a verdade da sua condição. Até descobrir que aquele lugar não era exatamente um paraíso terrestre.
Disso decorre, para a filosofia gnóstica, que o “pecado” não estava no ser humano, mas na artimanha maquinada pelo Criador para que Adão e Eva incorressem no “erro” – e imputasse na humanidade uma natureza “em queda”, “pecadora” e “maligna”. Para depois, religiões e sacerdotes propagandistas ajudarem a doutrinar a humanidade como a verdadeira culpada da sua suposta natureza má. Uma natureza que necessitaria a todo custo ser controlada, dominada ou reprimida pelas instituições, da Igreja ao Estado.
“... A nossa situação a matou”
O filme The Human Race traz em seu argumento esse núcleo crítico do Gnosticismo, através de uma produção de baixo orçamento, sombria, com um terror “gore” e uma narrativa fria, seca, sem muitas explicações ou aprofundamento na personalidade dos protagonistas. Apenas uma competição, na qual a única maneira de sobreviver é... correr.
The Human Race é uma variação desse subgênero de filmes em torno de fantasias de esportes ou armadilhas que envolvem a luta pela sobrevivência – Rollerball (1975), Cube (1997), Jogos Mortais (2004), Corrida Mortal (2008), Jogos Vorazes (2012), entre inúmeros.
Uma críptica linha de diálogo a certa altura do filme dá todo sentido gnóstico ao argumento da narrativa no qual 80 pessoas despertam em um circuito no qual devem correr pelas suas vidas, todos contra todos: “Ele morreu por minha causa!”, desespera-se uma mulher. “Você não deve se culpar... a nossa situação a matou”, respondeu outro “competidor”.
Sem saberem como pararam ali ou o propósito de tudo aquilo, The Human Racecolocam os protagonistas numa situação análoga à natureza conspiratória do Paraíso bíblico: a ignorância e a incerteza geram o medo, a angústia e ansiedade. Os motores da violência e do egoísmo, para o deleite dos demiurgos organizadores de uma arena esportiva mortal.
O Filme
O filme já começa em um ritmo rápido, clipado, planos fechados, inclinados e tensos, repletos de elipses, flash backs e flash fowards: após serem cegados por uma luz branca vinda do céu, 80 pessoas que infortunadamente estavam em um mesmo quarteirão na cidade de Los Angeles, são abduzidos e despertam em um complexo institucional – na verdade, as cenas foram filmadas em um abandonado centro correcional juvenil.
Um purgatório de concreto no qual cada um ouve uma voz dizendo as regras da competição: “siga o caminho marcado. Se pisar na grama, morre. Se você for ultrapassado duas vezes, morre. CORRER OU MORRER”.
Não é necessário explicar o tipo de morte “gore” para cada um que for ultrapassado ou pisar fora do circuito: uma espécie de “síndrome de Scanners” – a cabeça incha e o crânio explode...
Em rápidos flash backs, somos introduzidos à biografia dos protagonistas: dois veteranos do exército (um deles com uma das pernas amputadas – Eddie MacGee e Paul McCarthy), sobreviventes do Afeganistão, um casal de surdo-mudos (Trista Robinson e T. Arthur Cottam) e um ex-ciclista profissional (Fred Coury).
As primeiras cenas são impactantes: acompanhamos uma jovem saindo de um hospital ao receber a boa notícia de que estava totalmente curada de um câncer. Para depois ser abduzida junto com o grupo e, sem querer, pisar na grama dentro da “corrida humana”. O resultado logicamente foi explosivo e mortal.
O que se percebe é que os sádicos organizadores selecionaram um grupo com condições físicas bem diversas: atletas, ex-atletas, surdos-mudos, amputados, velhos, jovens, crianças, mulheres grávidas, obesos, etc.
Cada vez que um corredor é mortalmente eliminado, a voz interna em cada um informa a cruel contagem regressiva.
Alguns tentam se apegar aos valores da dignidade humana e procuram encontrar uma solução coletiva. Outros se organizam em gangs para empurrar os concorrentes na grama fora do circuito, criando uma bizarra linha de cabeças explodindo em série.
Discutir a natureza humana
Com o passar do tempo, aos poucos a fibra humanista da dupla de veteranos do Afeganistão e de surdos-mudos vai sendo quebrada pelas cenas selvagens de luta pela sobrevivência. E ironicamente a personagem aparentemente mais vulnerável e frágil (a surda-muda) mostrará do que um ser humano é capaz de fazer (com requintes de selvageria e sangue) na luta pela própria vida.
The Human Race é um tipo de filme que, para ser fruído, deve ser assistido fora do critério crítico binário do “gosto/não gosto”. E compreender o tipo de filosofia que subjaz no argumento da narrativa.
O diretor e roteirista Paul Hough certamente quer discutir a natureza humana: somos intrinsecamente maus, bastando uma oportunidade para a besta-fera em cada um de nós escapulir? Ou será que são as condições materiais nas quais estamos prisioneiros que nos induzem ao mal?
“Você não deve se culpar, a situação a matou”, é a linha de diálogo com o veredito da questão central levantada no filme. Claramente, percebemos que a “arena humana” criada pelos aliens-demiurgos não tem saída para heroísmos ou soluções coletivas pautadas por valores humanitários. É soma zero: perde-perde.
O que se aproxima da cosmogonia gnóstica: tal como os competidores incautos do filme, entramos nesse mundo indefesos, vulneráveis, ignorantes sobre de onde viemos, como paramos aqui e qual o propósito do futuro. Medo, incerteza e angústia nos fazem mostrar o pior de nós mesmos.
Mas não seria esse o sádico e demiúrgico propósito da “Corrida Humana” nesse cosmos?
Ficha Técnica
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Título: The Humana Race
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Diretor: Paul Hough
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Roteiro: Paul Hough
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Elenco: Paul MacCarthy-Boyington, Eddie McGee, Trista Robisnson, T. Arthur Cottam, Brianna Jackson
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Produção: Paul Hough Entertainment
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Distribuição: XLrator Media
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Ano: 2013
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País: EUA
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