Muitos críticos consideram um filme sem foco, confuso e bagunçado. Mas é uma bela bagunça. Depois de tentar realiza-lo por quase 30 anos em meio a mortes, processos e separações, finalmente Terry Gilliam conseguiu apresentar “O Homem Que Matou Dom Quixote” (2018), a mais autobiográfica produção de Gilliam. Um narcísico diretor de filmes publicitários reencontra com atores de um velho filme de conclusão de curso da faculdade sobre Dom Quixote, no interior da Espanha. Para reviver, entre delírios e realidade, a trajetória do herói de Cervantes com um velho ator que nunca mais saiu do personagem. O filme faz uma grande metáfora do destino dos nossos sonhos e fantasias nas linhas de montagem da Indústria Cultural. E como Terry Gilliam vê-se a si próprio como um Dom Quixote que usa a arte e a imaginação para tentar derrotar monstros e moinhos de vento da indústria do entretenimento.
“Indústria Cultural” é um dos conceitos mais utilizados e menos compreendidos. Desenvolvidos pelos filósofos alemães Theodor Adorno e Max Horkheimer para analisar a situação da arte numa economia industrializada na primeira metade do século XX, é comumente criticado pelo “pessimismo” e até mesmo “moralismo” e “elitismo” de pensadores que supostamente condenavam a “vulgarização” da arte através da sua “mercantilização” e “massificação”.
“Massificação” que produz “lucros astronômicos” e gera “consumismo” em receptores “passivos” e “alienados” passou a ser a simplificação mais disseminada do complexo conceito de Indústria Cultural da chamada “Escola de Frankfurt”.
Reduzido a essa visão mais superficial o conceito deixa de representar aquilo que é mais importante na arte e deletério na indústria do entretenimento – mídia + publicidade + sociedade de consumo: a atrofia da fantasia, a regressão dos sentidos e o atrelamento do inconsciente ao ritmo da rotina de trabalho – o ritmo industrial do dia-a-dia. Até chegarmos a um ponto em que a embalagem dos produtos culturais é feita dos símbolos oníricos dos sonhos, desejos e fantasias, até confundir o sonho com a realidade.
Esse, digamos assim, núcleo duro do conceito de Indústria Cultural (a tensão entre Fantasia e Realidade, Arte e Indústria, Inconsciente e Consciente) é o tema que sempre permeou a cinegrafia do diretor Terry Gilliam – ex-integrante de trupe de humor britânico Monty Python.
Os heroís humanistas de Terry Gilliam
Se vivemos numa sociedade cuja indústria embala qualquer produto (de carros a filmes; de pastas de dentes a telenovelas) com sonhos e fantasias, será que a arte e a imaginação um dia terão forças para desconstruir um sistema que as submete? Essa parece ser a preocupação recorrente de Terry Gilliam, sempre com seus heróis humanistas, românticos e sonhadores – desde Sam Lowry (o burocrata que desafia um Estado totalitário em Brazil, O Filme), passando por Munchausen em As Aventuras do Barão de Munchausen (cuja imaginação delirante desafiava outro governo totalitário) até chegarmos ao monge budista Dr. Parnassus que tenta trazer Luz às Trevas do mundo em As Aventuras do Dr. Parnassus.
Não é para menos que Terry Gilliam tinha em mente, desde 1989, um projeto sobre o personagem Dom Quixote. A obra clássica “Dom Quixote” é prolixa, sinuosa e bizarra. Assim como estilo de Gilliam. Mas o projeto levou quase 30 anos em busca de financiamento, atores e locações, para finalmente ser terminado em meio a mortes (do ator John Hurt), processos (do ex-produtor do projeto Paulo Branco) e separações (a saída de Johnny Depp).
Por isso, O Homem Que Matou Dom Quixote (The Man Who Killed Don Quixote, 2018) muitas vezes parece sem foco, irregular e confuso. Principalmente na primeira meia hora das duas horas totais. Mas logo percebemos que esse é o filme mais autobiográfico de Guilliam, quase uma metalinguagem da própria produção.
Mas principalmente, descreve o destino dos nossos sonhos e fantasias nas linhas de montagem da Indústria Cultural. E como Terry Gilliam vê-se a si próprio como um Dom Quixote que usa a arte e a imaginação para derrotar monstros e moinhos de vento da indústria do entretenimento.
O Filme
O Homem Que Matou Dom Quixote é livremente inspirado no clássico de Miguel de Cervantes. É transposto para a atualidade para contar uma estória sobre o cinema, traição e uma possível insanidade.
Começamos acompanhando Toby (Adam Driver) um narcísico e afetado diretor de filmes publicitários que roda uma produção no interior rural da Espanha. É considerado um pequeno gênio da indústria audiovisual. Mas está bloqueado criativamente. Parece ter perdido algo, enquanto está cercado por produtores ambiciosos que pretendem fisgar um cliente rico e poderoso: um bilionário russo, dono de uma marca de vodca chamado Alexei (Jordi Mollà).
Em um restaurante local, por acaso encontra um DVD pirata vendido por um cigano: é o seu próprio filme experimental de final de curso da faculdade de cinema, sobre Dom Quixote. Toby tenta então reencontrar os dois principais atores daquele antigo DVD: um velho chamado Javier (Jonathan Pryce), um sapateiro; e uma jovem chamada Angélica (a portuguesa Joana Ribeiro), filha de um taberneiro local.
Toby reencontra Javier transformado: parece que ele entrou no personagem e, desde então, jamais saiu – Javier acredita que é o próprio Dom Quixote. Ele é prisioneiro de um pequeno e bizarro negócio local: o prenderam em um pequeno trailer no qual é reprisado o seu papel naquele filme, repetido ad infinitum,para turistas dispostos a pagar pelo ingresso.
Javier/Dom Quixote está convencido que Toby é Sancho Pança e que veio libertá-lo. Para juntos, reencontrarem Angélica/Dulcineia. Que também é prisioneira, só que dessa vez num casamento por interesse – ela é amante justamente de Alexei, o novo rico russo grosseiro e abusivo, futuro cliente de Toby.
Aos poucos Toby cai em si de como seu projeto de conclusão de curso causou tantos males naquela pequena vila rural – querendo ser uma estrela de cinema, Angélica caiu nas mãos do russo; e Javier incorporou os métodos da Actor’s Studio de viver na realidade a ficção.
Mas as coisas só pioram quando a polícia local o persegue a mando do oligarca russo (Toby teve um affaire com uma das suas amantes) e foge com Javier/Quixote.
E, dessa maneira, a dupla sai pelos campos encontrando amigos, inimigos, monstros, imaginários e reais, num caos controlado em uma narrativa desafiadora tanto para Gilliam quanto para o espectador. Cujo ápice é uma gigantesca festa à fantasia em um palácio promovida pelo oligarca russo, sendo Toby/Sancho Pança e Javier/Quixote as estrelas principais de uma armadilha.
Metacrítica
O estilo Gilliam é a marca registrada do filme: a lente grande angular errante e nervosa, voos da fantasia, reviravoltas atrás de reviravoltas. Mas, principalmente, a luta de protagonistas “quixotescos” que têm como únicas armas a força da ficção e da fantasia contra figuras corrompidas pelo dinheiro e poder.
Está em O Homem Que Matou Dom Quixote uma metacrítica ao cinema e à própria Indústria Cultural: o cinema transforma ilusões em realidade para depois espectadores no mundo real tentarem viver de uma forma perversa aquelas ilusões aparentemente palpáveis. De como a indústria do cinema e audiovisual manipula nossos sonhos não porque os transformou em mercadorias ou forma de gerar lucros. Mas porque nos convence de que tudo aquilo é real, e pode conviver confortavelmente em nosso dia-a-dia inautêntico, corrompido e sem a menor fantasia que desafie por um mundo diferente.
A morte de Dom Quixote é o assassinato diário de sonhos e ilusões em cada produto da Indústria Cultural. Nos entretemos vendo narrativas que subliminarmente nos dizem que é impossível um mundo inteiramente outro.
Sonhos, desejos e fantasias viram apenas pedaços de objetos colocados na gigantesca fogueira no centro daquela festa à fantasia no palácio do bilionário vendedor de vodca.
Ficha Técnica
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Título: O Homem Que Matou Dom Quixote
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Diretor: Terry Gilliam
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Roteiro: Terry Gilliam, Tony Grisoni
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Elenco: Adam Driver, Jonathan Pryce, Jordi Mollà, Stellan Skarsgard, Olga Kurylenko
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Produção: Alacran Pictures, Tornasol Films, Entre Chien et Loup
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Distribuição: Screen Media Films
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Ano: 2018
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País: Espanha, Reino Unido, França, Portugal
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